ATÉ
QUE PONTO ARTE, CULTURA, ECOLOGIA E HISTÓRIA NÃO SÃO SINÔNIMOS DE MATURIDADE POLÍTICA
Três
dias depois do início dos atos de bloqueios em rodovias federias e ocupações
nas frentes de quartéis por bolsonaristas pedindo intervenção federal, eu e
minha companheira nos deslocamos até o município de Blumenau para participar de
curso na área da psicanálise. No caminho era possível observar dezenas de
manchas pretas sobre as pistas da Br 101 e 470, resultado da queima de pneus,
paus para impedir a passagem de caminhões. Essas ações geraram incertezas e
desabastecimentos de combustíveis, alimentos, medicamentos, etc, em muitos municípios
de Santa Catarina.
Incrível
foi perceber que havia em alguns desses pontos manifestantes vestidos com camisetas
da seleção brasileira sacudindo a bandeira brasileira. De fato a expectativa
tanto minha quanto da minha companheira era exatamente o cenário dos tumultos no
município de Blumenau, considerado um dos epicentros de manifestações pró Bolsonaro
no estado. Chegando ao município, que demonstrava estar aparentemente calmo, aproveitei
minha estadia lá já que o curso quem participaria era somente minha
companheira, fui transitar pela cidade e conhecer seus atrativos históricos e culturais.
Blumenau
é um município catarinense conhecido nacionalmente e até internacionalmente pelos
traços germânicos, fato esse que contribuiu para a criação em 1983 da
Octoberfest, maior festa da cerveja do mundo depois da Octoberfest de Munique,
na Alemanha. É sabido também que esse
importante acontecimento festivo no município se deu motivado por uma tragédia
ocorrida nesse mesmo ano, uma das maiores enchentes já registradas na região
nos últimos tempos. Todos os anos, no mês de outubro, milhares de turistas
brasileiros e estrangeiros são atraídos para lá para apreciar as cervejas, os chope
e mais um pacote de atrações que fortalecem ainda mais o sentimento germânico
trazido pelos descendentes europeus no começo do século XIX.
Caminhando
pela extensa e arborizada calçada construída a margem direita do rio que corta
a cidade, o rio Itajaí-açu, é possível chegar a uma quase centenária ponte de
ferro inaugurada em 1931 e que serviu de trilhos para o trem que ia até ao
porto de Itajaí. Junto a essa antiga ponte, que atualmente foi revitalizada e
aberta para o transito de veículos leves, está o estonteante prédio da
prefeitura, todo construído em estilo enxaimel, traços e linhas arquitetônicas
que relembram as construções alemãs. Por ser sábado não foi possível adentrar
ao interior da prefeitura, pois estava fechada ao público.
Foto Jairo |
Porém,
todos que diariamente acessam o seu interior não têm como não serem atraídos
pelos enormes banners coloridos com imagens de plantas, flores, insetos,
fixados nas vidraças do prédio. A primeira impressão é que os painéis seriam
para homenagear o fundador da cidade, o alemão Hermann Blumenau. Mas não é. Os
cerca de vinte painéis distribuídos nos dois lados das paredes da prefeitura
são para homenagear outro cidadão tão o mais importante para os munícipes que o
fundador Blumenau, o filósofo, médico, naturalista Fritz Muller.
Foto Jairo |
Devido
às revoluções liberais que se desencadeou na Europa, Alemanha em especial,
Muller e sua família viajam para o Brasil em 1852, para nunca mais voltar à
terra natal, uma viagem de quase noventa dias até a chegada ao destino,
Blumenau. Em desterro, nessa mesma época, foi acometida por um surto de febre
amarela que matou muitas pessoas, principalmente professores e religiosos. Já
em Blumenau Muller teve que se dedicar a construção de sua residência, bem
modesta, e o preparo da terra para produzir alimentos.
Quatro
anos depois, o presidente da província de Santa Catarina, por indicação do Dr.
Blumenau, convidou Fritz para lecionar matemática e ciência no Liceu da
capital. Liceu é comparado com escolas de nível médio ou técnico atualmente. Tendo os estudos interrompidos na Alemanha
devido às revoluções, na capital da província, Desterro, é despertado a
continuar suas pesquisas de doutorado iniciado no país germânico. Foi a rica
diversidade de espécies da flora e da fauna da mata atlântica, o que mais lhe encantou,
lhe motivando a pesquisar e conhecer seus segredos e peculiaridades de todo o
ecossistema. O envolvimento foi tanto que lhe motivou a criar um jardim botânico
e um laboratório de química e física.
Foto Jairo |
Retornando
a Blumenau, Muller dividiu o seu tempo na atividade camponesa e a pesquisa. O
rio Itajaí-açu, que atravessa a cidade de Blumenau foi o seu campo de
investigação. Espécies botânicas como orquídeas e bromélias se tornaram suas
grandes paixões investigativas. Essas e outras habilidades intelectuais contribuíram
para que fosse convidado a ocupar o cargo de naturalista viajante no museu
nacional do Rio de Janeiro. Entretanto, embora tendo aceitado e sendo
insistentemente convidado para residir na capital do Brasil, Rio de Janeiro,
decidiu manter residência em Blumenau.
A paixão era tanta pela botânica, que decidiu elaborar cartilhas didáticas para oportunizar crianças a aprenderem sobre o assunto. Os desenhos ilustrativos dos livrinhos foram elaborados pelo próprio Muller. Nas suas investigações sempre teve o acompanhamento de suas filhas, em especial, de Rosa, sua filha predileta. Essa participação da família de Fritz nas pesquisas e estudos foram características observadas em seus irmãos e primos que também acompanhavam os estudos de seus pais e avós na Alemanha.
Tem
uma passagem curiosa na vida de Muller que vale a pena mencionar. Relatou Muller
que a sua filha Rosa identificou um fenômeno pouco ou ainda não estudado em
botânica, que era o movimento do caule das plantas seguindo o movimento do sol.
O próprio Darwin, em resposta a Muller, disse que o fenômeno observado pela
filha de Muller era muito curioso e que valeria a pena prosseguir os estudos.
Muller faleceu em maio de 1897, porém seu legado nos estudos da ecologia
continuou e permanece bem vivo e ajudando na preservação do bioma da mata
atlântica e de outros ecossistemas.
Foto Jairo |
Lendo
os banners sobre a vida e os feitos de Fritz Muller para a ciência, aproveitei
para fotografá-los e enviá-los ao meu filho adolescente que reside em Caxias do
Sul. Lembro que quando ele estava com quatro ou cinco anos adquiri uma lupa e
juntos começamos a observar plantas e pequenos insetos. No jardim onde resido
havia uma árvore cujas folhas possuíam algumas protuberâncias, muito parecidas
com verrugas comuns em pés e mãos humanas. Juntos partíamos aquelas verrugas
nas folhas e notamos que havia no seu interior minúscula larva que se
transformara em uma vespinha. Lembro do deslumbramento nos olhos do meu filho
quando observou o inseto com a lupa.
Outra
experiência que fizemos foi recolher da horta folhas de couve contendo ovinhos
de uma borboleta branca grudadinhos nelas.
Organizamos uma pequena caixa de papelão e dentro inserimos as folhas
contendo os ovinhos, cobrindo-os com uma tela. Diariamente acompanhamos a
metamorfose daqueles minúsculos ovinhos. Em trinta dias, pouco mais ou pouco
menos, os ovinhos viraram larvas, que cresciam na medida em que se alimentavam
com as folhas de couve. As larvas/lagartas viraram pupas e, posteriormente,
novamente borboletas. Trago essas vivências tidas com meu filho
sobre ecologia para lembrar a rotina de estudos e pesquisas de Fritz Muller,
sempre acompanhado de sua filha predileta, Rosa.
O
mausoléu onde estão os restos mortais do fundador da cidade, Hermann Blumenau e
de seus familiares também é outro lugar de visitação obrigatória. Entretanto, acredito
que todos que visitam Blumenau, quando tem em mão o mapa com o roteiro
turístico, o local que deve aguçar o desejo em conhecer, principalmente ao público
infantil, é o cemitério de gatos. Isso mesmo, cemitério dos gatos!! Para
entender o porquê existir em Blumenau um cemitério de gatos, se faz necessário
primeiro conhecer um pouco da história da sua idealizadora, uma cidadã
blumenauense cujo nome é Edith Gearther.
Edith
era sobrinha neta de Hermann Blumenau. Seu pai e mãe foram os fundadores do
teatro da cidade. Por ter perdido os pais muito cedo, se transferiu para a
Argentina onde já estavam morando alguns de seus irmãos. Lá conheceu uma atriz
de teatro que lhe inspirou a seguir a carreira artística. Isso lhe motivou a
morar na Alemanha e estudar arte dramática por quatro anos. Representou
inúmeras peças, muitas das quais de renomados escritores da dramaturgia mundial,
como Goethe, e Shakespeare. Depois de 25 anos vivendo na Europa, retornou para
Blumenau, onde criou um ambiente propício para a leitura, cultivo de flores e
cuidados com animais.
Foto Jairo |
Embora gostasse de animais, sua predileção sempre foi de gatos, tendo em sua vida mais de cinqüenta felinos. Como forma de dar um final respeitoso aos mesmos, no fundo de sua casa, no meio de jardim botânico, os animais foram enterrados e pequenos túmulos foram edificados contendo as imagens e os nomes dos felinos. Na década de 1950, data do centenário de Blumenau, Edith doou à municipalidade, a casa construída por seu pai, hoje museu da família colonial, e uma área de terra onde está o Jardim Botânico, a Biblioteca Pública, o Arquivo Histórico. Edith faleceu em 1967, com a idade de 85 anos.
Foto Jairo |
Não
há dúvida que por todos os cantos do município de Blumenau é possível respirar
arte, cultura e ecologia, algo pouco comum no restante dos municípios catarinenses.
Entretanto, é importante destacar que geralmente a presença de vastos atrativos
históricos e culturais em um mesmo local não são suficientes para elevar os
níveis de maturidade política e tolerância social da população. Claro que
quanto mais cultura, arte disponível à população maior seria de fato o grau de
pertencimento e de interação étno-cultural.
Parece
que quando nos referimos a maturidade e tolerância política esses adjetivos não
condizem a realidade do município de Blumenau e de muitos outros do estado de Santa
Catarina. O resultado eleitoral do segundo turno, que deu a vitória ao
candidato do PT à presidência da República, fez desencadear graus de
intolerância e violência política de opositores há muito tempo não vistos no
Brasil. Mesmo com a desobstrução das rodovias federais ocupadas por populares
no dia 02 de novembro, no dia 05 ainda era possível observar focos de pessoas
ocupando as margens, protestando contra os resultados das urnas e pedindo
intervenção federal.
Ainda
em Blumenau percebia a enorme quantidade de automóveis e motocicletas desfilando
pelas ruas e avenidas portando a bandeira do Brasil, objeto representativo de apoio
bolsonarista ao candidato derrotado. Em qualquer direção que se olhava o que se
observava eram indivíduos trajando camisetas da seleção brasileira de futebol,
bem como lojas decoradas com as cores da bandeira do Brasil. Tudo isso fazia
aflorar sentimentos de apreensão e dúvidas quanto ao futuro da democracia
brasileira. Vendo todo aquele cenário de delírio coletivo, passei a imaginar
que era o único que não comungava com tamanha loucura.
Prof.
Jairo Cesa
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