sábado, 27 de junho de 2020

A APROVAÇÃO DO PROJETO DE LEI N.4.162/19 NO SENADO E O AGRAVAMENTO DAS DESIGUALDADES DOS SERVIÇOS DE SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL



Há algum tempo havia o temor de que os conflitos catastróficos que ameaçariam a existência humana se dariam entre as grandes potências econômicas pelas disputas das áreas produtoras de petróleo no planeta. O tempo passou e embora o petróleo continuasse sendo o recurso energético principal, essa commoditie não mostra indícios de que possa desencadear guerras globais pelo seu controle. Cada vez mais o petróleo vem assumindo uma condição secundária e até mesmo de vilão frente aos problemas ambientais que comprometem a sobrevivência do ser humano.
Vivemos hoje num novo cenário. O que está gerando inquietação das entidades que monitoram o clima global é que já há visíveis alterações nos ciclos climáticos, impactando ecossistemas inteiros. A progressiva redução dos fluxos de chuvas e o degelo progressivo de regiões montanhosas pelo aquecimento, ambas estão comprometendo o abastecimento dos mananciais hídricos que servem milhões de pessoas. A água, no entanto, vem se tornando um recurso cada vez mais escasso, caro e que já protagoniza conflitos no mundo inteiro.
O Brasil, junto com a Argentina, Uruguai e Paraguai, estão posicionados sobre uma das maiores reservas de água doce do planeta, o Aquífero Guarani. Mesmo com toda essa infinidade de água, milhões de brasileiros sofrem com desabastecimento e baixa qualidade da água que chega às residências. Ninguém poderia imaginar que a capital do estado da Amazônia, Manaus, pudesse sofrer com a escassez de água para o abastecimento público. Isso porque, o estado é cortado por um dos principais rios do mundo, o rio amazonas.
O problema em Manaus como de outras cidades brasileiras, está no manejo incorreto desse recurso, agravada pelo despejo de efluentes domésticos, agrícolas e industriais nos cursos hídricos. É incrível que um país do tamanho do Brasil e com imensa abundância de água esteja sofrendo à falta dela. A escassez do líquido não ocorre exclusivamente pela redução das chuvas, mas pela sua depreciação para o consumo.  Por décadas o tema saneamento básico sempre foi negligenciado pelos governos que transitaram por Brasília, por estados e milhares de municípios brasileiros. Há um discurso antigo e que hoje em dia prevalece como verdade pelos políticos de que enterrar cano não ganha política.  
Talvez esse discurso não seja totalmente verdadeiro, mas deve ser considerado quando olhado o Brasil através de uma lente de aumento e constatado que mais de cem milhões de brasileiros não tem rede de tratamento de esgoto. Os investimentos nesse setor sempre foram minguados nos orçamentos federais. Não é segredo para ninguém que a cada dólar investido em saneamento, o país economizaria quatro em saúde pública.
Se essa máxima fosse levada a contendo pelas autoridades, teríamos uma população menos afetada por doenças endêmicas como dengue, zika vírus, entre outras moléstias cujos vetores são parasitas oriundos de locais sem saneamento básico. De acordo com a constituição federal, o acesso a esses serviços é um direito assegurado a todos os cidadãos e de responsabilidade do Estado.
Água, saneamento básico, ambos jamais deveriam ser compreendidos como um produto, cujo lucro deverá ser calculado na ponta do lápis. Mas, infelizmente, dezenas de artigos e dispositivos da constituição brasileira vêm sendo negligenciado, principalmente por quem deveria resguardá-la como um documento sagrado e que não o faz, o próprio presidente da república. Os artigos, parágrafos, centenas de incisos e alíneas presentes na constituição foram construídos por cidadãos/ãs eleitas/os pelo povo brasileiro para representá-los, pensando em legislar para promover dignidade a todos/as brasileiros/as.
Entretanto, parcela dos eleitos faz parte de uma classe abastada, onde atuam articulando ações em proveito próprio e de grupos que representas. Todas as reformas estruturais em curso no Brasil, raros foram os projetos que tiveram sido beneficiados os cidadãos mais desprovidos. Reformas trabalhista, previdenciária, são só alguns exemplos de projetos aprovados pelos “representantes do povo” no congresso nacional. Tanto a primeira quanto a segunda medida sancionada, tiveram como premissa suprimir benefícios conquistados. Portanto, a redução do papel do Estado na proteção dos direitos dos brasileiros segue sua terrível saga impiedosa.
Agora é a vez da água e de tudo que gira em torno dela. Para o capital sedento por lucro fácil, o Brasil é uma mina de ouro inexplorada. A PL 4.162/19, aprovada no senado na quarta feira, 24 de junho, deu o salvo conduto ao agravamento da crise de abastecimento e tratamento de esgoto às populações mais vulneráveis no Brasil. Por que a crise? A resposta é simples. Quando o Estado assume a coordenação do sistema de saneamento básico, não há, intrinsecamente, o interesse tácito de obter lucros, como acontece com o setor particular.
É óbvio que as estatais ou autarquias que prestam esses serviços nos estados e municípios, a rentabilidade financeira é maior nos centros urbanos mais povoados. A expansão das redes de abastecimento e saneamento para os bairros e comunidades do interior, áreas de assentamentos, etc., os custos desses serviços são compensados a partir das tarifas superavitárias das áreas mais habitadas.
Analisando o cenário nacional dos serviços de saneamento prestados pelas companhias estatais, deixa explícito que o Brasil está longe de zerar o déficit de saneamento básico. Hoje, 35 milhões de brasileiros não têm suas residências servidas com água tratada. Esse número equivale a três países do tamanho de Portugal. Em tempo de Pandemia de Corona Vírus, chega ser ridículo ouvir de prefeitos e governadores frases do tipo: lave as mãos várias vezes ao dia para ficar protegido do vírus.
Em inúmeras comunidades pobres do Brasil, centenas, milhares de famílias não tem acesso a água potável. Como fazer, portanto, para higienizar as mãos? A propaganda divulgada pelo governo e de outros defensores da mercantilização da água, a mídia entreguista, em especial, é de que com a privatização, até 2033, o Brasil irá resolver esse grave problema. Um tema tão complexo, que exigiria uma discussão mais prolongada com a sociedade, foi rapidamente resolvido por 61 senadores. Tudo isso aconteceu de forma virtual, ou seja, cada senador votou a partir de sua confortável e protegida residência.
O que causa mais estarrecimento diante desse tema é que muitos desses representantes do povo no senado, pouco sabem sobre saneamento básico, desconhecem a terrível realidade dos rincões brasileiros. É possível também que desconheçam experiências nada exitosas de países e cidades no mundo que reestatizaram esses serviços por terem as empresas contratantes descumprindo os contratos.
É óbvio que se não tivesse havido a pandemia, o projeto do marco legal do saneamento básico poderia ter tido maior dificuldade de ser aprovado devido às pressões advindas de segmentos ligados a esse setor e da população em geral. O novo marco regulatório do saneamento público que foi aprovado obriga a existência de licitações desses serviços agora em diante. Seguindo a premissa do capital, lucro em primeiro lugar, no instante que uma empresa privada ganhar a concorrência para a prestação desses serviços, quem garante que áreas menos habitadas, terão os mesmos benefícios que as mais povoadas.
Sobre as licitações para a aquisição dos serviços, o Brasil possui uma cultura que mostra pouca transparência ou lisura nessas tramitações. Quem diz que de agora em diante as coisas vão ser diferentes? Isso poderia ser verdade se existisse uma estrutura do Estado capaz de acompanhar e fiscalizar todos os trâmites contratuais desses serviços.
O novo marco regulatório determina que a empresa que ganhar a licitação tem a obrigação de garantir cobertura de 99% do atendimento de água à população, e 90% para o esgoto. Estabelece também que não poderá haver a interrupção desses serviços, mesmo em caso de atrasos de pagamentos por parte dos usuários. E por que tanta pressa na aprovação desse projeto? Outro dado curioso foi a indicação para relator do projeto, o senador Tasso Jereissati, PSDB, do Ceará.
 Informações dão conta de que seja sócio proprietário de empresa no estado do Seara ligada ao segmento de bebidas, como a coca cola. São exatamente essas grandes potências do setor de refrigerantes e produtos afins, que estão por trás dessa grande manobra do capital, abocanhar uma das maiores e mais importantes riquezas do planeta, a água. Os países ou cidades que passaram pela experiência da privatização da água e saneamento tiveram os serviços cancelados por não cumprirem os acordos estabelecidos em estatutos.
Será que agora será diferente no Brasil?  Nos Estados Unidos, o congresso americano esta discutindo uma lei que propõe ao governo americano investir 35 bilhões de dólares ao ano para revisar a infra-estruturar de água no país. Um país tão rico, ainda hoje parte da população sofre por problemas de abastecimento e água, contaminada por chumbo nas tubulações inadequadas. Antes da pandemia, 14 milhões de famílias americanas mantinham as contas de água atrasadas devido o preço elevado cobrado pelas companhias. Desde o ano de 2010, o aumento das tarifas superou os 40%.
No Brasil, em 2007 foi sancionada lei que criou o plano nacional de saneamento básico. Entre os vários dispositivos contidos na legislação, havia um item que assegurou parcerias entre empresas públicas e privadas. O fato é que o plano deveria passar por revisões, que não aconteceu. Desde a aprovação do plano, os municípios brasileiros gastaram milhões de reais na elaboração de seus planos de saneamento. O problema, portanto, não é a falta de um marco legal, é o modo como o tema é tratado no Brasil, negligenciado pelas autoridades.   
Uma das medidas tomadas pelo governo Temer foi acabar com o ministério das cidades, cuja atribuição era fomentar ações dentre combater o déficit de saneamento básico.   A Emenda 95 que limitou o aporte de recursos para vários setores, em especial à saúde e saneamento, reflete negativamente hoje na pandemia do corona vírus, com hospitais públicos sucateados por falta de recursos.  
O discurso insistentemente compartilhado por setores conservadores de que a privatização do saneamento irá melhorar a qualidade dos serviços oferecidos a população, muitas vezes não condiz com a realidade. Atualmente dos quinze municípios que aparecem no ranque nacional dos melhores em saneamento, apenas dois são atendidos por empresas particulares, Niterói/RJ e Limeira/SP. O que há por trás dessa manobra privatista é o lobby de grandes concessionárias, algumas estrangeiras, interessadas em assumir os serviços no Brasil. Algumas dessas companhias perderam concessões nos países que atuaram, por prestações de serviços de péssima qualidade.
A SABESP, uma das maiores companhias estatais do mundo que presta serviço no estado de São Paulo, teve em 2019 um lucro líquido de 1.2 bilhão de reais. Esse valor é 113,9% superior ao mesmo período do ano anterior. É bem provável que esses dados não tiveram espaços nos debates entre os senadores durante a tramitação do projeto de forma virtual. Possivelmente também não tiveram espaço nas sessões virtuais as experiências negativas de países e cidades no mundo inteiro onde o Estado foi forçado a reassumir o controle das concessionárias.
Para solucionar o déficit do saneamento básico no Brasil serão necessários investimentos próximos a um bilhão de reais. Os defensores do projeto acreditam que com o novo marco legal, um grande volume de capital estrangeiro será atraído para o Brasil. Pela experiência que se tem, é possível que os bilhões que serão investidos no saneamento, virá do BNDES, que é dinheiro público. Outra estratégia adotada por essas concessionárias estrangeiras será por meio da cobrança de tarifas dos serviços prestados.
A lei aprovada determina que a ANA (Agência Nacional de Águas) será a entidade reguladora do marco legal do saneamento. Isso poderá gerar problema, pois a ANA já atua com dificuldades na gestão dos recursos hídricos, principalmente em tratando dos comitês das bacias hidrográficas espalhadas pelo Brasil. Acrescentar novas atribuições ao órgão sem muni-la de uma estrutura adequada, impactará até mesmo os trabalhos que já estão sendo executados. Falta pessoal concursado para essas novas atribuições.
O tema marco legal do saneamento básico deverá ser tema prioritário dos candidatos às próximas eleições municipais. Muitos municípios, a exemplo de Araranguá já possui um plano de saneamento básico efetivado em 2014. Entretanto, muitos dos pontos contidos no plano não foram executados, cujos prazos já expiraram há algum tempo. A gestão eficiente da água bem com a destinação correta dos resíduos sólidos deverá ser tratada com prioridade pelos próximos gestores.   
O futuro do órgão responsável pela gestão da água e esgoto no município deverá também ser tema prioritário das discussões dos futuros gestores. Com o novo marco legal do saneamento, qual o comportamento do novo administrador público em relação ao SAMAE, se será mantida como uma autarquia pública ou entregue a uma concessionária a exemplo de outros municípios como o Balneário Arroio do Silva.
Embora o município de Araranguá possua três mananciais de abastecimento público, o fato é que ambos não há plano de sustentável de uso da água. Quase a metade da água tratada e servida ao município é desperdiçada, ou por vazamento ou por imprudência da população. Com o novo marco legal do saneamento, é possível que o Samae permaneça sob a tutela pública? Se o fator for financeiro e qualidade dos serviços, a justificativa não será plausível para o município entregar a iniciativa privada, pois o órgão é superavitário. Esse é um aspecto preocupante a partir do novo marco regulatório. Todas as empresas, públicas e privadas, com contratos ativos deverão provar eficiência nos serviços. Se os serviços não estão correspondendo, os contratos poderão perder validade, abrindo novos editais de licitação.   
Em âmbito estadual, a situação é um pouco mais delicada. Embora 98% a população do estado é servida com água potável, no aspecto tratamento de efluentes, o estado é um dos piores entre os demais da federação, atinge somente 28% das residências. A CASAN, empresa pública de água e saneamento no estado, está em 195 municípios, 66% do total do estado. A empresa cobre 2.7 milhões de pessoas, ou 39% da totalidade de habitantes.
Atualmente, independente do tamanho do município e da quantidade de habitantes, a empresa estatal atende todos, com tarifas que possibilitam os usuários pagarem. O sistema que a empresa adota é o financiamento cruzado, ou seja, os municípios com maior densidade demográfica onde a CASAN obtém maior lucratividade nas prestações de serviços compensam os déficits dos municípios menores.
Com o novo Marco, por exemplo, caso haja a privatização da estatal ou parte dela, a concessionária vencedora no processo licitatório vai querer, é claro, apensa o filé, deixando o osso para o Estado. Municípios como Ermo e dezenas de outros espalhados no estado, cuja população não supera os cinco mil habitantes terão provavelmente problemas com os serviços prestados pela estatal. A tendência era a fragilização no atendimento dos usuários e na provável elevação das tarifas a serem cobradas.         
Prof. Jairo Cezar
             
2020-26-06 Programa Faixa Livre – Anna Lúcia Britto
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