A PANDEMIA DO CORONA VÍRUS REVELA O ELEVADO
GRAU DAS CONTRADIÇÕES E DESIGUALDADES SOCIAIS
A morte por asfixiamento de um homem negro
nos Estados Unidos por um militar branco acendeu o estopim de um problema
social histórico de difícil cicatrização. Tanto nos Estados Unidos quanto no
Brasil o problema racial tem a sua raiz no sistema de colonização quando negros
africanos foram capturados e transladados de suas terras às colônias inglesas, espanholas
e portuguesas. A questão racial não se resume apenas aos povos de etnia
africana. Dependendo o momento e o contexto histórico, grupos sociais
minoritários foram e são submetidos a regimes de servidão e tratamento subumano.
Os ciganos, os judeus, durante a segunda
guerra mundial foram alvos de perseguição e executados sumariamente pelo regime
nazista. Nos conflitos que se sucedem no oriente médio minorias curdas sofrem
perseguições de regimes sanguinários, como o que aconteceu durante o governo de
Saddan Hussein, onde armas químicas foram lançadas sobre territórios curdos
levaram a morte centenas de milhares de pessoas.
O caso do assassinato do homem negro nos
Estados Unidos serve de exemplo para levantar a discussão sobre um problema que
se torna mais intenso em tempos de crises estruturais. É muito difícil
acreditar numa solução imediata de um problema quase crônico que moldou a
cultura de uma sociedade. No caso dos Estados Unidos, as manifestações dão
demonstrações explícitas das brutalidades sofridas pelos grupos negros dos
quais representam expressiva parcela da sociedade americana.
Todos os dias centenas de negros e latinos
fazem o ritual da via crucies de permanecer vivos em um país altamente
preconceituoso. A criação de políticas públicas como o direito a educação e
saúde à população seria um dos caminhos possíveis para minimizar os impactos
das desigualdades econômicas e sociais entre brancos e negros. Entretanto, para
que tais políticas pudessem se concretizar, a eleição de governos com programas
mais social poderia minimizar esses desequilíbrios em níveis salariais e de
direitos. A eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados
Unidos, ajudou a elevar um pouco o grau de auto estima da população negra.
Alguns programas como Obama Care determinava
que todo o cidadão americano tivesse direito a um convênio de saúde particular.
É claro que esse sistema em nada se compara ao SUS, que é um programa no qual
garante direito à assistência gratuita à saúde a toda população brasileira. A
não existência de uma política consistente de saúde pública nos Estados Unidos
foi e é casa do espantoso número de óbitos provocados pela pandemia do Corona
Vírus.
Nesse
espectro, quem mais sofre os efeitos da pandemia são os que residem nas
comunidades carentes e cujas rendas impossibilitam cobrir o tratamento da
doença. A luta dos negros nos Estados Unidos por igualdade de direito é antiga.
Muitos filmes foram produzidos trazendo fragmentos dessas lutas, protagonizando
fatos e personalidades desconhecidas do público em geral que tiveram alguma
relevância no contexto político e social da época. Dentre as obras
cinematográficas do gênero destacamos os longas Mississipi em Chamas, Treze
Anos de Escravidão e Harriet.
Assistir esses filmes, entre outros tantos do
gênero, ajudam a compreender o sofrimento de uma população asfixiada em guetos
desprovidos das mínimas condições de infraestrura para uma existência digna. É
por essa razão que nos Estados Unidos as manifestações de negros e brancos por
direitos se tornam tão visíveis e contundentes quando comparadas com a do
Brasil. O fato é que o fim da escravidão nos Estados Unidos ocorreu frente a um
caudal de revoltas nascidas no campo, que se espalhou por vilarejos e cidades
do sul do país.
No Brasil, tanto os movimentos pró-independência,
república e abolicionismo se deram frente a um cenário pouco violento e sem a
participação de seus principais atores sociais, as classes subjugadas. Nesse
contexto, as rupturas políticas pacíficas forjaram um cenário social atípico
dando a impressão de que o Brasil viveria uma democracia racial. Os absurdos registros
de mortes por assassinatos e outros meios violentos revelam um Brasil repleto
de contradições.
A casa grande e a senzala, que simbolizaram o
modelo de sociedade de uma época permanecem intactas ainda hoje, como se o
passado insistisse permanecer dia após dia sendo reproduzido. As favelas e
outros ambientes habitados majoritariamente por grupos marginalizados, negros
em especial, representam metaforicamente a grande senzala da casa grande
chamada sistema político. O Estado como instituição, constituído por um
complexo conjunto sistêmico de poderes, figurativamente, assumiu o papel da “casa
grande” que reproduz as mesmas formas de dominação e exploração social.
A elite brasileira no final do século XIX foi
impelida a instaurar a Lei Áurea como estratégia para se desvencilhar, entre
outros compromissos, dos processos indenizatórios já oficializados em 1850, com
a nova lei de terra, que excluía o cativo liberto do direito a um pedaços de
terra. Conceder liberdade ao cativo pode ser compreendido como sendo uma nova
ordem de submissão, tão ou mais perversa que o anterior, a escravidão. Sem
direito a uma gleba de terra para subsistir a não ser que comprasse, o escravo
liberto foi lançado ao relento, forçado agora a se dirigir às periferias das
cidades, transformado em força ou reserva de trabalho barato às novas
estruturas de produção.
O plano de incentivo a imigração de europeus
teve o propósito de “civilizar o Brasil”, ou seja, acelerar o “branqueamento”
da população local. Esse artifício também conhecido por eugenização se manteve
ativo durante os séculos XX e XXI. Atualmente mais da metade dos homicídios
ocorridos no Brasil às vítimas são pessoas negras. É claro que os epicentros
dessas tragédias anunciadas ocorrem em locais totalmente desprovidos de atenção
do Estado.
Entre 2000 a 2017, segundo o Atlas da
Violência do IPEA, a diferença do número de homicídios entre pessoas negras e
brancas foi gigantesca. Os dados revelam que há realmente uma política de
eugenização recorrente no Brasil. Foram assassinadas nesse intervalo de tempo
495 mil pessoas negras no Brasil.
Enquanto, o número de homicídios envolvendo
pessoas brancas foi menor, 147 mil. A baixa escolaridade e a falta de
perspectiva de futuro são fatores determinantes no formado da realidade que vai
se assentar nas comunidades pobres do Brasil. O tráfico e o desmesurado poder
das milícias, influenciados pelo distanciamento do Estado, se revelam como
aparelhos não oficiais que prestam serviços a essas comunidades em troca de
benefícios.
É preciso, também, desconstruir certos
estereótipos criados sobre essas áreas habitadas majoritariamente por grupos
marginalizados, não exclusivamente de negros como é insistentemente exibido e
aceito como verdade pela coletividade. Brancos e negros desassistidos convivem
e compartilham os mesmos desejos e sonhos de dias melhores, de que a miséria e
a violência sejam suprimidas para sempre. Inúmeras organizações assistenciais
do terceiro setor, nascidas nas comunidades desamparadas, atuam oferecendo a
população programas de ajuda, principalmente no campo cultural. São ações que
proporcionam o empoderamento das famílias, jovens, elevando desse modo a autoestima.
Mas somente isso não basta. É necessário
desconstruir conceitos e modelos de distribuição espacial que são culturalmente
definidos com naturais. Contextualizá-lo sob a ótica de uma hierarquia de poder
e subjugação dos corpos nesses espaços é o caminho para superação e conquista da
soberania. A geografia territorial traz à luz revelações substancias para
entender como se dá o controle dos corpos de grupos subjugados.
O preconceito é uma construção histórica,
materializada a partir do modelo de ordenação os espaços. Paraisópolis,
comunidade do alemão, rocinha, Vidigal, entre outros nomes atribuídos ao gênero
favelas, soam no imaginário coletivo como ambientes desclassificados, não é
mesmo? Leblon, Copacabana, Ipanema,
Lebron, Avenida Paulista, Jardim Europa, Vila Olímpica, qual o sentido
desses vocábulos nos nossos sentidos? Claro que a sonoridade é carregada de
simbolismos de poder. Quem vive, majoritariamente, nesses bairros ricos,
brancos ou negros? .
Desmantelar símbolos e conceitos serve para
refletir o modo como uma sociedade foi arquitetada em todos os seus parâmetros,
geográficos, sociais e culturais. Dar visibilidade as contradições, as
injustiças envolvendo grupos sociais segregados é o primeiro passo para um
rearranjo no modo de ver e compreender a sociedade. As manifestações contra o
racismo nos Estados Unidos e em outros países têm o propósito de repensar
certos paradigmas, de habitação, relacionamento e comportamento convencionados
a partir de conceitos de classe.
É importante entender que a territorialidade
e a distribuição dos espaços ocupados são construções históricas e, portanto,
possíveis de sofrerem mutações e transformações. Confere aos novos agentes
sociais de plantão, as massas segregadas, a tarefa de manifestar, tornar
visíveis as contradições de um modelo produtivo perverso que os amedrontam e os
sufocam cotidianamente. Enquanto o direito constitucional a educação de qualidade
não for assegurado a todos, não há como vislumbrar a curto e médio prazo uma
sociedade mais humana e justa. No entanto, não podemos persistir no erro de
acreditar que o Estado, moldado sob uma ótica burguesa e excludente, vá
garantir tais direitos a todos/as sem resistência e pressão das massas
subjugadas.
Como aconteceu nos Estados Unidos, no Brasil
os movimentos negros e todos aqueles que não compartilham com o esse modelo perverso
de gestão que os sufocam, devem também se rebelar, irem às ruas, expondo as chagas
não cicatrizadas das chibatas que demonizam o inconsciente coletivo. Convalescer-se
dessas terríveis pústulas ainda não dissipadas acontecerá a partir de um
processo catártico coletivo. O ato de sair às ruas, de se expor, gritar, é uma
forma catártica para a libertação, de exorcizar o ódio inconsciente que nos cega
e nos reprime.
Prof. Jairo Cezar
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