sexta-feira, 29 de abril de 2022

UNESCO CHANCELA O GEOPARQUE CAMINHO DO CÂNION SUL: O QUE MUDARÁ AGORA NA VIDA DE MILHARES DE CATARINENSES NO EXTREMO SUL DE SANTA CATARINA? 
GEOSSÍTIO CAMINHO DOS CANIONS - FOTO JAIRO



O dia vinte e um de abril de 2022 foi marcado por um acontecimento importante para o Extremo Sul de Santa Catarina, que certamente mudará o modo de pensar e ver a região daqui para a frente. Nesse dia aconteceu em Paris, capital da França, a divulgação dos novos geoparques chancelados pela UNESCO. Dentre os que receberam a chancela está o Geoparque Caminho dos Cânions Sul, formado por quatro municípios catarinenses e três gaúchos. Quando se fala que transformará a vida de milhares de pessoas, me refiro ao aumento do fluxo de turistas para essa região no intuito de apreciar as belezas naturais e culturais aqui proporcionadas. 

CACHOEIRA - TRILHA DO PALMIRO - FOTO JAIRO

RIO ROCINHA - TIMBÉ DO SUL



Para quem já viajou e conhece um pouco o mundo, sabe que são os países constituídos por geoparques e outros atrativos históricos e culturais os mais procurados por turistas. Conhecendo fragmentos do território brasileiro, América Andina, África do Sul, países escandinavos, Turquia, Grécia, Rússia, leste asiático e oriente médio, cheguei à conclusão que o Brasil, particularmente a região sul, não fica atrás desses em atrativos paisagísticos e culturais. Enquanto o Camboja, pequeno país do leste asiático, abalado no passado recente por guerras genocidas, anualmente essa minúscula nação recebe cerca de vinte a trinta milhões de turista. 

TODA A COMPLEXIDADE DO BIOMA DA MATA ATLÂNTICA - FOTO JAIRO



O Brasil, no entanto, a visita de turistas estrangeiros pouco supera os dez milhões. Lembro de ter visitado a pequena cidade de São Pedro de Atacama, uma região inóspita no norte do Chile. Olhando a cidade, imagem de satélite, por exemplo, será muito difícil de avistá-la devido ao pequeno tamanho. Ao transitar pelas ruas de chão batido e construções centenárias, foi possível perceber que mais de 80% dos turistas eram europeus e americanos. Afinal o que de espetacular havia em São Pedro, de solo árido e pouca vegetação, para atrair tanta gente e de lugares tão distantes? A resposta estava há alguns quilômetros da li, são os famosos gêiseres, rios subterrâneos que diariamente, bem cedinho, guinchos de água quente são lançados a grande altura. 

O FAMOSO PORTAL DO PALMIRO - FOTO JAIRO


 Esse fenômeno natural depende de algumas combinações importantes, baixa temperatura e a presença do sol, sendo mais impressionante no inverno. Nenhum dos países que visitei foi possível identificar peculiaridades na geologia, na geografia, das quais superassem as do sul do Brasil. Mesmo o Vietnam com a sua singular Baia de Halong Bay; a África do Sul, com o desfiladeiro do Rio Blyde e a Montanha da Mesa, na Cidade do Cabo, ambas não apresentavam tanta beleza e atrativos quanto os municípios que integram o Geoparque Caminho do Cânion Sul. Tive mais convicção disso no dia da chancela do geoparque quando eu e mais seis pessoas visitamos uma das trilhas no município de Timbé do sul.
 
A BIOTICA DA MATA ATLÂNTICA - FOTO JAIRO


O curioso nessa expedição foi saber que no momento que chegávamos à Trilha do Palmiro, o geoparque caminho do cânion estava sendo divulgado em Paris. Penso ter sido nós primeiros cidadãos/ãs a inaugurarem oficialmente o geoparque. Para mim nunca foi segredo sobre as potencialidades naturais, históricas e culturais reunidas nesse complexo conjunto geomorfológico formado há mais de 200 milhões de anos. Ao mesmo tempo em que nos alegra a noticia da chancela do geoparque, no fundo fica um sentimento de apreensão, expectativa, quanto ao futuro de toda essa frágil beleza. O que nos acalenta é saber que de quatro em quatro ano inspeções serão feitas na região que engloba o geoparque. O não cumprimento do plano resultará em perda da certificação da UNESCO
 
COMPLEXO ECOSSISTEMA DO BIOMA DA MATA ATLÂNTICA - FOTO JAIRO


 Quando lanço dúvidas acerca do futuro do parque, meu argumento se fundamenta no modo como os gestores públicos locais tratam da coisa pública. As rivalidades e disputas partidárias históricas sempre dominaram o cenário dessa região, considerada uma das mais atrasadas economicamente do estado catarinense. O que prevalece nos municípios do extremo sul do estado é o permanente ciclo vicioso da descontinuidade dos projetos iniciados por governos anteriores. As rivalidades e as acirradas disputas envolvendo oligarquias e facções partidárias atravessaram gerações, culminando com novas siglas, porém controlada pelos mesmos grupos dominantes. 

A FLORESTA E SEUS SEGREDOS - FOTO JAIRO


Na realidade são esses partidos e grupos de poder que continuam tendo hegemonia na condução das políticas pouco progressistas regionalmente. Para um empreendimento tão importante como o geoparque caminho do cânion sul, um dos primeiro desafios das elites políticas locais é a superação dos ranços políticos históricos. A construção de uma unidade suprapartidária entre os municípios que integram o geoparque e os demais deve ser continuamente exercitada daqui para frente. Não há dúvida que os impressionantes cânions, a exuberante floreta da mata atlântica e as inúmeras cachoeiras de águas cristalinas são e serão atrativos ao aumento progressivo do fluxo de turistas para a região.
 
FERRAMENTAS RUDIMENTARES REVELAM A PRESENÇA HUMANA - FOTO JAIRO


 O fato é que o território onde está o geoparque oferece uma versatilidade atrações para todo o tipo de público nas quatro estações. Não há lugar no mundo onde é possível em pouco mais de uma hora sair de uma altitude de 0 metro para quase dois mil metros, com temperaturas que podem variar de 30 graus até zero. Um dos desafios de todo o segmento político da região do extremo sul de Santa Catarina e norte do Rio Grande do Sul é fazer com que cada habitante dos dois territórios tome consciência dos impactos dessa chancela à vida de cada um. 

VESTÍGIOS PRÉ HISTÓRICOS - FOTO JAIRO


Um caminho importante à sensibilização coletiva é sem duvida a escola. A inserção nos currículos escolares de temas transdisciplinares relativos a tudo que se relaciona ao geoparque produzirá grandes transformações na cultura local. Além da transversalidade, o próprio currículo deverá sofrer adaptações, enriquecê-los com temáticas multidisciplinares, ou seja, assuntos que envolvam duas ou mais disciplinas na sua condição. Tal argumento em defesa da escola como instrumento de construção de um olhar cuidadoso e critico da nossa pequena aldeia foram às experiências tidas nos quase quarenta anos de vida docente. 

PALEOTOCA - TIMBÉ DO SUL - FOTO JAIRO


Sempre defendi a tese de que somente cuidamos daquilo que conhecemos ou que construímos em cooperação. Sair do pequeno reduto, casa ou escola, desbravar uma floreta, uma montanha ou uma bacia hidrográfica, é infinito os leques de informações adquiridas que nos transformarão. Afinal como isso poder ser concretizado de fato. Nada melhor do que relatar a experiência vivida pelas seis pessoas, dia 21 de abril, na Trilha do Palmiro, município de Timbé do Sul. No imaginário de cada um dos integrantes do grupo, entre eles uma criança de 9 ano, era visitar uma paleotoca e uma cachoeira. 

EDUCAÇÃO AMBIENTAL - FOTO JAIRO
CACHOEIRA DAS BROMÉLIAS



Na chegada o grupo foi recepcionado por um cidadão de meia idade, de baixa estatura e vestido com roupa camuflada, parecendo um militar do exército. Ante de iniciar a trilha o grupo se reuniu para uma foto. Já no começo da caminhada o guia relatou alguns episódios relevantes relativos ao famoso puma ou leão baio, animal endêmico dessa área dos campos de cima da serra. Cerca de duzentos metros à frente encontramos a primeira placa do geoparque com os dizeres GEOSSITIO – PORTAL DO PALMIRO. 

RELATOS SOBRE A MEGA FAUNA - FOTO JAIRO



Claro que o que chamou mesmo a atenção foi exatamente o nome da trilha Portal do Palmiro. A dúvida foi esclarecida mais a frente quando deparamos com um grande buraco na rocha, um “portal” onde todos teriam de atravessá-lo para seguir a trilha. Uma placa fixada na entrada dava explicações sobre a escolha do nome da trilha. De fato a historia ou estória do portal se assemelha a outros tantos relatos de tesouros escondidos por religiosos ou piratas, como tachos com moedas de ouro, etc. Durante a jornada conferimos o refinado conhecimento empírico do guia sobre os segredos da floreta. Não é segredo para ninguém que as florestas, o bioma da mata atlântica, por exemplo, habitam espécies de plantas e animais ainda desconhecidos pela ciência. 

GRUPO HUMANO XOKLENG - FOTO JAIRO


Entretanto, é um dos biomas mais ameaçados por ações antrópicas. Proteger esse frágil ecossistema é a garantia de no futuro descobertos importantes de medicamentos aconteçam. Além de assegurar a proteção das floretas é preciso também garantir a sobrevivência das populações tradicionais que vivem nela, pois são detentoras de um vasto conhecimento dos seus mistérios. O seu Valdovino, nosso guia na trilha do Palmiro, é um exemplo real de sabedoria popular, devendo receber todas as atenções das comunidades cientificas. 
FORMAS COMPLEXAS DE COMUNICAÇÃO - FOTO JAIRO



Durante as quatro horas de trilha, nosso guia nos colocou diante de dez ou mais plantas, de espécies comestíveis, àquelas que servem de antídotos contra doenças e ataques de animais peçonhentos, como serpentes. Mascamos uma planta que adormeceu a boca. Segundo o guia, os indígenas que habitavam essa parte da mata atlântica mascavam o caule para extrair dentes, pois servia de anestésico. Mas a planta que impressionou o grupo foi uma que, conforme relatou o guia, uma única gotinha pode causar a morte de uma pessoa em pouco tempo. 

XAXIM - ESPECIE DA MATA ATLÂNTICA - FOTO JAIRO


Se tais relatos têm consistência ou não, o fato é que todo esse importante acervo cientifico a céu aberto está bem pertinho de nós, e pode revolucionar o mundo da ciência se for dado à devida atenção. Próxima de uma das muitas cachoeiras na trilha do Palmiro nosso guia nos indagou sobre a presença ou não de indígenas naquela região. De repente ele aparece com um fragmento de pedra laçada afirmando categoricamente ser um instrumento cortante utilizado pelos “bugres”. Na realidade sua convicção tem consistência, pois todo o costão da serra geral foi habitado no passado por indígenas do grupo Xokleng, entre outras etnias. 
DIVERSIDADE DE PLANTAS - FOTO JAIRO



 A presença de animais gigantes na região como tatus e bicho preguiças, entre outros, cada vez mais a pesquisa vem trazendo respostas positivas. Quem não acredita ou que queira tirar dúvidas basta visitar as famosas paleotocas nos municípios de Morro Grande e Timbé do sul. Paleotocas são escavações feitas em rochas areníticas há 8, 9, 10 mil ano por mamíferos gigantes, como bicho preguiça e tatu. Duas horas mais ou menos de caminhada, finalmente chegamos às imponentes paleotocas. Nossa entrada se deu pelos fundos, através de um buraco ou orifício estreito. Em poucos segundos já estávamos no seu interior com altura superando a três metros. 

OS DESAFIOS NA TRILHA DO PALMIRO - FOTO JAIRO


Cruzando o primeiro túnel, enfim estávamos na entrada principal, formada por dois grandes buracos na parede. Embora existam placas informativas sobre a paleotoca e suas peculiaridades, todas as atenções do grupo foram direcionadas as explicações do guia, rica em detalhes. A presença de profundas ranhuras nas paredes são provas cabais de que os túneis gigantes foram feitos por animais de garras afiadas para se proteger de ataques de predadores. Como acontece nesses ambientes, ambos sempre serviram de abrigo para outros animais ou até mesmo ocupação humana. Para historiadores, paleontólogos, geógrafos e outras áreas afins, as paredes de paleotocas guardam infinidades de informações explicativas de distintos períodos geológicos e pré-históricos.
 
MATA ATLÂNTICA, UM TESOURO A SER DESVENDADO - FOTO JAIRO
 

O sentimento dominante naquele instante era de estarmos chegando a um lugar desconhecido das instituições de pesquisas, universidades, escolas e milhares de pessoas do extremo sul. O que me impressionou quando retornei e fui consultar as fontes disponíveis sobre o tema foi constatar a existência de inúmeras publicações a disposição. Claro que para o geoparque caminho do cânion sul obter a chancela da UNESCO foi necessário mobilizar a região, como forma de cumprir com todas as demandas recomendadas pelo órgão avaliador. 

A SABEDORIA TRADICIONAL - FOTO JAIRO


Incrível, portanto, foi à enormidade de estudos já efetuados, sobretudo nas áreas da arqueologia, paleontologia, antropologia e historiografia. São dissertações, artigos científicos, livros e inúmeros podcast disponíveis em formato digital nas mídias eletrônicas. Entre os relevantes trabalhos produzidos destacamos o livro dedicado ao público infantil, cujo titulo é TURMA O GEOPARQUINHO EM: SONHANDO COM O GEOPARQUE NO SUL DO BRASIL. A obra faz uma narrativa lúdica das etapas de construção do projeto. Enfim, estamos diante do desafio de fazer chegar a cada cidadão/ã informações de que a região do extremo sul de Santa Catarina está no mapa dos principais destinos turísticos do planeta. 

OS ENCANTOS DA TRILHA DO PALMEITO - FOTO JAIRO

TRILHA DO PALMIRO - TIMBÉ DO SUL



 Entretanto, insisto em ressaltar o que mencionei no inicio desse texto, que todo sistema de ensino formal deve sofrer adaptações para assegurar um futuro promissor do geoparque. Revisar os currículos das unidades de ensino dos municípios que integram o geoparque é visto como uma das prioridades dos gestores. A geografia, a historia, a biologia, a sociologia, todas essas e outras áreas do conhecimento devem conter elementos do saber que remetam ao geoparque. Conhecer cada metro quadrado desse imenso território, suas peculiaridades e fragilidades, fará com que cada um assuma a função de guardião da floresta. 
 Prof. Jairo Cesa

quinta-feira, 21 de abril de 2022

 

MOVIMENTO TERRA LIVRE: A RESITÊNCIA CONTRA O GENOCÍDIO INDÍGENA INTITUCIONALIZADO PERMANECE

O encontro em Brasília que reúne mais de cinco mil representantes das populações indígenas, deve se configurar como um dos fatos mais relevantes e decisivos dos últimos tempos à garantia da sobrevivência às mais de 300 etnias. Nesse ano o tema escolhido para o 18 evento foi – “Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política”. Nos quinhentos e vinte e dois anos de ocupação de suas terras pelos portugueses, a luta hoje dos que resistem ao permanente genocídio é a demarcação das áreas ainda não regularizadas, entre outras demandas.   

A ascensão de um neofascista/genocida à presidência da república resultou em um abissal retrocesso às poucas conquistas asseguradas constitucionalmente. O avanço do agronegócio, a grilagem homicida, o garimpo ilegal, são alguns dos inúmeros modos ilícitos utilizados pelo capital para ocupar, expulsar e matar indígenas e demais comunidades tradicionais.

Um dos temas polêmicos na agenda de debates no acampamento Terra Livre Brasília será o PL 191/2020 que trata sobre a mineração em terras indígenas. O tema mineração ganhou mais relevância nos últimos dias em decorrência dos conflitos que estão ocorrendo no leste da Europa envolvendo Ucrânia e Rússia.  A Rússia, por exemplo, é um dos maiores exportadores de potássio do mundo, insumo químico necessário ao agronegócio. Mais de 70% desse fertilizante é importado pelo Brasil.

Frente ao conflito na Ucrânia e a dificuldade para a importação desse e outros insumos, o governo Brasileiro, de modo astuto, pôs na pauta de prioridades do congresso nacional a votação urgente do PL 191/2020 que permite a mineração em terras indígenas em caráter emergencial. A justificativa da urgência do PL se deve ao fato de as jazidas desse mineral estar em territórios indígenas, argumento esse que não condiz com a realidade. Conforme levantamento geológico sobre recursos minerais no Brasil, somente 11% dos milhões de toneladas de potássio estão em área indígenas. Sendo assim, 2/3 de todo o potássio brasileiro estão nos estados do Sergipe, Minas Gerais e São Paulo.

Então ficou claro, mais uma vez que o governo federal se utiliza de artifícios enganosos para continuar passando a boiada sobre legislações de proteção ao meio ambiente, comunidades indígenas e quilombolas. Essa PL, em questão, já de entrada afronta a própria constituição federal, nos seus artigos 231§ 7º; 171 §§ 3 e 4. Além de afrontar regras constitucionais, o projeto de lei desconsidera acordos assinados pelo governo brasileiro na convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

Mesmo com as investidas do atual governo federal e do congresso nacional em querer exterminar os verdadeiros donos das terras invadidas pelos portugueses há mais de quinhentos anos, o 18 encontro Terra Livre em Brasília, mostrou que os povos indígenas estão preparados para resistir. Um dos temas norteadores do encontro foi estimular a participação indígena nos pleitos eleitorais municipais, estaduais e federais. Essa demanda de cunho eleitoral é compatível ao tema do encontro, pautada na demarcação territorial e no aldeamento da política.

É consenso de que tendo maior representatividade de indígenas em espaços importantes de decisão como o congresso, por exemplos, muitos projetos de lei em tramitação hoje e que impactariam a vida desses povos poderiam ter mais dificuldades para a sua aprovação. Nas eleições municipais de 2020 houve 2.111 candidatos indígenas. Desse total foram eleitos 236, sendo 214 vereadores, 10 prefeitos, 12 vice-prefeitos. Dos 513 deputados federais eleitos em 2018, há apena uma deputada indígena eleita pelo estado de Roraima.

Não há duvida que o aspecto institucional seja importante como instrumento paliativo de resistência as investidas do capital. No entanto, somente esse dispositivo não, lop0se mostra suficiente para assegurar todos os direitos, principalmente à salvação do planeta. Pode ser útil como estratégia de construção de novos consensos, de um empoderamento político das bases.

É consenso que a eleições previstas para o próximo mês de outubro é decisiva a sobrevivência para as mais de trezentas etnias que habitam o território brasileiro. O esforço desses grupos e dos mais de cem milhões de brasileiros é por um fim definitivo nesse terrível cenário de retrocessos sociais, ambientais, patrocinado pelo governo Bolsonaro e o congresso nacional. As propostas que estão em pauta no congresso para serem votadas ou ratificadas pelo TF dão uma noção do tamanho da encrenca que atinge diretamente as populações indígenas.

Além do PL 191/20 que permitirá a mineração em território indígena, existem também o PL 6299/02, que flexibiliza o uso de agrotóxico; o PL 2159/21, que trata sobre o afrouxamento da licença ambientai e os PLs 2633/20 – 510/21, relativo à grilagem de terras públicas. Os ataques não se encerram por aí. O assunto mais polêmico e recheado de muita expectativa por todas as nações indígenas é a votação no próximo me de junto no TF do PL 490/07 obre o marco temporal, ou seja, sare ocupada por indígena depois da constituição de 1988.  

Toda a polêmica se deu a partir do processo demarcatório envolvendo a terra indígena Ibirama La Klãnõ, habitada por povos das etnias Xokleng, Kaigang e Guarani.   Quem conhece um pouco da historia desses povos no estado de Santa Catarina sabe da tragédia que se abateu sobre ele, com destaque os Xokleng, literalmente dizimados pela ação de bugreiros, para escravisá-los ou limpar o território atendendo interesses das companhias de imigração.

Os poucos índios que sobreviveram à hecatombe vivem em pequenos enclaves/reservas, permanentemente ameaçados por ações de grupos econômicos e até mesmo pelo próprio Estado interessado em tomar as terras para projetos de infraestrutura. O caso do povo Guarani Mbyá na região do Morro dos Cavalos, Palhoça/C, é um bom exemplo de violência patrocinada pelo Estado. Tanto esse povo quanto outros tantos espalhados pelo território brasileiro vivem sob permanente ameaça de caçadores, garimpeiros, madeireiros e grileiros e do próprio governo federal e do congresso com projetos de leis homicidas. 

A questão envolvendo a área em litígio em Ibirama reivindicada pelo povo Xokleng, a decisão a ser tomada pelo STF em junho próximo, caso seja favorável a esse povo, influenciará em muitos outros casos similares em todo o Brasil. A tese defendida por governistas e até mesmo por um integrante do STF favorável ao marco temporal é de que a terra pretendida estava já ocupada por pequenas propriedades agrícolas ou fazendeiros.

É claro que até a data da seção do supremo haverá uma forte mobilização dos povos indígenas e da população em geral para que a corte decida contrário ao Marco Temporal. Na hipótese de vitória ao PL 490, não teremos dúvida que se deflagrará em território brasileiro uma verdadeira ação genocida às populações indígenas que não cederão a mais uma violência branca contra o pouco do que sobrou da suas terras tomadas há mais de quinhentos anos.

Prof. Jairo Cesa   

  

     

        

quinta-feira, 14 de abril de 2022

 

O QUE SE ESPERA DE ARARANGUÁ  PARA OS PRÓXIMOS DEZ ANOS?

No dia 08 de abril de 2022 foram iniciadas as etapas do Plano para o desenvolvimento socioeconômico decenal  da região da AMESC. Araranguá foi o primeiro município a dar o ponta pé inicial do plano por ser sede regional. A  UNESC e o SEBRAE são as entidades coordenadoras do plano, cuja entrega do documento dos municípios envolvidos prevista para o próximo mês de novembro.  Não há dúvida que programa dessa dimensão, que traçará diretrizes ao  desenvolvimento equilibrado para os próximos anos à uma região tão carente como é a AMESC é motivo de satisfação e expectativa.

Conforme os discursos e as proposições elencadas durante o WORKSHOP ocorrido nas dependências da UNESC, sexta feira, dia 8 de abril, Araranguá e a região da AMESC certamente terão demandas históricas infraestruturais resolvidas. Quem conhece um pouco do nosso passado político, sabe que o extremo sul do estado teve um modelo de desenvolvimento forjado por oligarquias, que se mantém atuantes governando e decidindo pleitos eleitorais.

Se fizermos uma retrospectiva de todos os legisladores e gestores públicos que atuaram nas câmaras municipais e no executivo dos municípios da AMESC, majoritariamente compunham partidos conservadores, centralistas, pouco ou nada adeptos a rupturas e transformações estruturais. Embora muitos partidos tenham mudado de nome  ao longo do tempo, o que não mudou foram suas essências ideológicas, calcado num  desenvolvimento verticalizado, elitista e burguês.

No evento de sexta feira na UNESC cerca de cem pessoas participaram, porém, como já é costumeiro lá estavam  um ou dois vereadores. A presença do chefe do executivo municipal, do vice, todo o seu secretariado, representantes de associações de bairros e partidos políticos seria obrigação de estarem presentes. Mas não foi exatamente o que aconteceu. Portanto, isso já foi um mau sinal de que esse plano como outros tantos elaborados pouco ou nenhum resultado terão.

Aqui podemos citar alguns exemplos que alimentam tal desconfiança negativa acerca desse plano. O primeiro deles foi quando da elaboração do plano diretor municipal, que embora no discurso dissesse que fosse participativo, quem menos participou da sua construção foram os próprios vereadores, exceto um ou dois que mantinham presença assídua. O segundo exemplo  foi o plano municipal  de saneamento básico elaborado pela própria UNESC em 2014. Afinal, quantas foram as demandas elencadas nesse plano já concretizadas? Penso que poucos da atual administração conhecem a fundo o plano.

 no primeiro encontro de lançamento do plano de desenvolvimento regional, em março de 2022, nas dependência do auditório José Linhares, no shopping das fabricas, foi quase unânime nas falas das autoridades e de outros setores presentes ser o turismo o segmento que dinamizará a economia  do município. Na UNESC, a dinâmica adotada para envolver todos os participantes,  foi entregar aleatoriamente a cada um  numerais de 1 a seis. Os indivíduos, contendo os mesmos números, se reuniram em mesas distintas, onde debateram os vários temas lançados pela equipe coordenadora. No final das discussões, cada grupo apresentou suas respostas acerca das potencialidades, problemas e desafios. O que impressionou foi ter sido o tema água pouco enfatizado pelos grupos.

Integrante de um dos grupos fez severas criticas acerca do modo como as administrações públicas lidam com planos ou projetos executados por governos passados. Disse que é regra no município a cultura da descontinuidade, da sabotagem, da negação aos programas iniciados nos governos anteriores não alinhados ao arco de alianças partidário. Outro exemplo concreto de negligenciamento é o projeto ORLA, Plano de Gestão Integrada  da faixa costeira de Araranguá, que levou três anos para ser concluído, de 2014 a 2016.

Nesse plano, que envolveu dezenas de participantes e mais de 70 reuniões e oficinas realizadas, saiu um documento contendo mais de 200 demandas para o desenvolvimento da faixa costeira em curto, médio e longo prazo. O que marcou mesmo esse importante evento foi a assinatura no final de 2016 de  três decretos municipais criando três unidades de conservação. A postura adotada pelos governos que se sucederam foi  alterar pontos aprovados no PGI do projeto Orla, atendendo pressões de particulares ou grupos econômicos. A explícita omissão aos decretos relativos as UC criadas em 2016 também são comportamentos nada republicanos dos gestores municipais.   

Outra prova de que  estamos submetidos a uma cultura de governos alheios  a aquilo que foi elencado por administrações anteriores  é o projeto orla. Na fala de um dos participantes, do segmento empresarial,  presente no encontro da UNESC, as proposições expostas por ele, relativa ao seu grupo, exibiu explicito desconhecimento a tudo que foi pensado, planejado e o que já foi executado para a dinamização do turismo no Baln.  Morro dos Conventos e demais comunidades costeiras. Se o  comportamento das atuais elites políticas e econômicas é de negligenciar ou sabotar programas voltados ao desenvolvimento, quem garante que daqui quatro, cinco o mais anos tudo isso que está sendo pensado e planejado não vai também ser deixado de lado, nas gavetas ou estantes das administrações para serem comidas pelas traças.

Prof. Jairo Cesa

 

 

 

 

        

segunda-feira, 11 de abril de 2022

 

O FUTURO INCERTO DO COMPLEXO LAGUNAR (LAGO DOURADO, LAGOA DA SERRA, LAGOA DO CAVERÁ E LAGOA DO SOMBRIO) SITUADOS NO EXTREMO SUL DE SANTA CATARINA

Há décadas o extremo sul de Santa Catarina vem sofrendo com a progressiva deterioração do seu complexo lagunar, a exemplo da lagoa do caverá e lagoa do sombrio. Foram dezenas de incursões, reuniões, audiências públicas, manifestações de segmentos da justiça, legislativo e executivo nesse interminável martírio de salvamento das duas importantes lagoas. Sobre a lagoa do Sombrio, quem se desloca frequentemente em direção ao rio grande do sul deve ter percebido que dia após dia o fluxo de água desse manancial vem dando lugar a vegetação e a pecuária.

Já a lagoa do caverá, que sempre foi prestigiada e romantizada pela população do extremo sul por ser o maior manancial de água doce de estado, vem sucumbido diariamente. Observando os sistemas de monitoramento de precipitação de chuvas instalados na região, constataremos que nos últimos 10 anos os índices pluviométricos anuaís são visivelmente menores e irregulares. A dúvida é por que tanto desinteresse das autoridades em resolver um problema que tecnicamente é bem simples e com um custo considerado baixo, considerando os impactos futuros da perda desse complexo lagunar. 

É obvio que não é consenso de todos que vivem na região a solução do problema das lagoas, em especial da lagoa do caverá. Primeiro por que há anos empresas se instaram junto as suas margens para a exploração da terra turfa, transformada em substratos para a agricultura e combustível para as cerâmicas da região.  O segundo aspecto a ser considerado com empecilho ao processo de salvação da lagoa se deve as inúmeras propriedades e fazendas existentes no seu entorno que são beneficiadas com o seu encurtamento diário. 

Desde a ocorrência do furacão Catarina em 2004 o cenário da lagoa vem se tornando crítico. Há menos de 10 anos expectativas davam conta de que o problema seria finalmente resolvido.  Um projeto de salvamento da lagoa foi elaborado, porém empacou devido às burocracias ou pressões de setores desinteressados no salvamento do complexo. O argumento dos órgãos estatais era de que para a construção do barramento requereria estudos ou análises ambientais mais complexos e com custos maiores. Até hoje setores do estado e demais segmentos políticos vem insistindo na tese de barramento, que não é exatamente o que deve ser construído para conter a excessiva vazão da água. Para conter o fluxo e fazer com que nível da lagoa volte ao seu patamar original, a instalação de um vertedouro já solucionaria o problema.

Acontece que voltar ao nível anterior, a água cobriria espaços hoje ocupados pela mineração e a pecuária. Portanto aqui está o imbróglio que muita gente importante da política local não quer se envolver com receio de impactar o seu curral eleitoral. Em 2015 mais ou menos foi criada uma comissão específica no comitê da bacia do rio Araranguá para tratar exclusivamente do problema da lagoa do caverá. O problema na época era de que tanto a lagoa do caverá quanto a do sombrio são vertentes que correm em direção ao rio mampituba, portanto, fugiam da alçada da bacia do rio Araranguá.

Com a integração das vertentes do rio Mampituba, lado catarinense, a bacia do rio Araranguá as discussões e soluções de demandas como a desse complexo lagunar poderiam ser facilitadas. Mais de cinco se passaram quando da inserção do Mampituba ao Araranguá sem que o drama do manancial hídrico do caverá tivesse alguma luz de solução. Para quem não acredita que as lagoas vêm realmente secando basta observar as imagens captadas pelo Google Earth nos últimos trinta anos. É de causar espanto.

Já é regra de quatro em quarto anos quase todos os candidatos da região a cargos majoritários e proporcionais nas esferas estaduais terem como uma das suas demandas de pauta a solução do problema da lagoa do caverá e do sombrio. Nos pleitos municipais também a lagoa é pauta obrigatória nos debates. Muitos talvez não saibam que a água que vem se perdendo dessa lagoa é considerada uma das melhores de todos os mananciais que integram o complexo lagunar do sul catarinense.

E o que se deve a esse cenário? A resposta é simples. Parcela significativa da água que abastece a lagoa suas nascentes estão no seu entorno, e parte delas protegidas por uma densa floresta da mata atlântica.  Com tais características similares a água captada no açude belinzzoni, o custo pelo tratamento seria estratosfericamente menor que vem sendo adotado nas ETAs do município.

No mês de fevereiro estive novamente no manancial e na oportunidade conversei com alguns moradores e lideranças locais empenhadas no salvamento da lagoa. Todos demonstravam explicita preocupação, principalmente pelo fato das frequentes estiagens que estão ocorrendo, acelerando ainda mais o secagem da mesma. Confessou uma das lideranças da região que participou no bairro de reunião junto com o poder público, onde foi tratada entre outros assuntos a instalação de uma ETA (Estação de Tratamento de Água) para a captação de água visando o abastecimento da população do entorno. De pronto a liderança argumentou que á construção do sistema deverá estar condicionada a instalação do vertedouro, que é uma reivindicação antiga.

Um fato que chamou a atenção e que merece uma reflexão mais apurada foi a decisão do governo do estado de encaminhar solucionar rápida ao problema do assoreamento da barra da lagoa do camacho, no município de Jaguaruna. Lembro que no ano passado pecadores junto com a população promoveram protestos quando centenas de peixes apareceram mortos encalhados no canal.

Não demorou muito para que o governo do estado agilizasse os tramites legais destinando cerca de dez milhões dos cofres públicos para o desassoreamento da barra do camacho. Em termos de importância, tanto a barra do camacho quanto as lagoas do caverá e sombrio ambas são demandas importantes e emergenciais. Se a lagoa do camacho o problema é o assoreamento onde impacta a vida de mais de 1500 famílias, o manancial do caverá, por exemplo, ocupa uma área extensa que cobre cinco municípios.

É claro que nesse momento a água do manancial não está sendo captada para atender os municípios limítrofes. No entanto, se levarmos em consideração os projetos infraestruturais em curso na região, como as pavimentações de rodovias importantes, acreditamos que os municípios costeiros do extremo sul terão um boom de crescimento nos próximos 10 a vinte anos.  Haverá, com certeza, o crescimento abrupto populacional associado ao aumento da demanda por água.

As expectativas climáticas não são nada favoráveis quanto ao restabelecimento da normalidade do fluxo de chuvas na região. O setor que vem se mostrando mais impactado com tais anomalias é o da rizicultura, que reponde por mais de 50% de toda água fornecida pela bacia do rio Araranguá.  Mais demandas que ofertas de água tendem a gerar conflitos são questões obvias. O comitê da bacia do rio Araranguá, ultimamente, vem tomando muito do eu tempo em demandas de conciliações de conflitos por disputas de água entre setores ligados a agricultura e a indústria.

A situação não foi tão dramática para o comitê, entre dezembro a março de 2021/2022, meses assolados por uma histórica estiagem, pelo fato da safra de arroz já estar quase concluída não demandando de muita água. Porém, outros setores foram drasticamente impactados inferindo em prejuízos milionários. Municípios como Içara houve falta de água para o consumo humano nas comunidades o interior. Carros pipas foram alocados pelo município para levar água às residências.   

Mesmo com toda a incidência de estiagem que anualmente assola nossa região e o estado catarinense, a população e o poder publico não vem dando as devidas atenções aos alertas do clima global. Era de se esperar que o tema estiagem e o futuro da água tornar-se-ia pauta obrigatória nos programas de todos os candidatos a cargos políticos majoritários e proporcionais. Nada disso, o tema água ainda é assunto secundário em quase todos os setores.   

Um exemplo considerado preocupante aconteceu na última sexta feira, 8 de abril, na dependência da UNESC, pólo Araranguá. O encontro, coordenado pela própria instituição de ensino, apresentou um WORKSHOP com o tema Plano de Desenvolvimento de Araranguá: seu município voando mais alto. A proposta, no entanto, foi discutir com a sociedade o futuro do município para os próximos 10 anos. Nos vários grupos criados para discutir temas relevantes como problemas, demandas e potencialidades oferecidos pelo município, acreditem, pouco se falou sobre demanda de água, menos ainda na recuperação do manancial lagoa do caverá.

Planejar o desenvolvimento do município para a próxima década ou décadas sem colocar a demanda de água como tema principal é um erro imperdoável a qualquer administração pública. Para o município de Araranguá a questão é muito mais complexa quando se sabe que a previsão para os próximos dez anos é um crescimento expressivo da população.  Tendo três mananciais para o abastecimento público, nos últimos cinco anos a demanda por água foi maior que a oferta disponibilizada.

Quem observou os mananciais lago dourado e lagoa da erra durante os meses de dezembro de 2021 e fevereiro de 2022 deve ter percebido um cenário extremamente preocupante. Por ser um período de férias de verão, a população atendida por esses dois mananciais duplicou abruptamente. Dia apos dia era possível observar a nítida redução dos níveis de água das duas lagoas. O problema foi atenuado com o fim da feria e o retorno da chuva no me de março. Acontece que o déficit de água permanecerá, pois as previsões são de menos chuvas para os próximos anos.      

Se o município de Araranguá tende a elevar suas taxas de crescimento populacional de 70 mil para 120 habitantes para os próximos dez ou vinte anos, tendência também prevista para os municípios costeiros que integram o complexo lagunar, caverá e Sombrio, a demanda por água naturalmente dobrará ou triplicará nesse período. Sem um plano regionalizado de monitoramento desses e outros mananciais, avaliando seus gargalos e disponibilidades de água, não há duvida que o extremo sul irá enfrentar os mesmos problemas comuns em cidades grandes a exemplo de São Paulo com falta de água.

Prof. Jairo Cesa   

   

quarta-feira, 6 de abril de 2022

 

O GOLPE MILITAR DE 1964: VERDADES E MENTIRAS SOBRE ESSE TRÁGICO PERÍODO DA NOSSA HISTÓRIA RECENTE

No inicio da minha carreira como professor de história fui convidado para lecionar no Colégio Objetivo que permaneceu em Araranguá por alguns anos durante a década de 1990. Na época tive a oportunidade de conhecer a professora Derlei de Luca, que também atuava nesse mesmo colégio em Araranguá e Criciúma. A Professora e militante política Derlei teve a sua vida quase destruída durante a ditadura militar, sendo presa e torturada nos porões do DOPS.  Lembro na época que a aulas proferidas por ela eram sempre acompanhadas com expectativa e entusiasmo pelos estudantes, pois estava ali, na frente deles/as, nada mais nada menos que alguém que sentiu na pele, no corpo e na alma, toda a maldade e perversidade de um regime sanguinário.

Derlei, no entanto, jamais restabeleceu plenamente sua vida emocional, carregou consigo o trauma e os fantasmas da ditadura e dos torturadores até o fim da sua vida, em 2017, quando morreu vitima de um câncer aos 71 anos de idade. Muito do que aprendi sobre os porões da ditadura militar, DOPS, etc, foi com a brilhante professora. Na época eu me sentia extremamente lisonjeada por estar compartilhando o mesmo ambiente com alguém tão simbólico, tão importante na luta contra a repressão. Em 2002 a professora Derlei publicou o seu livro: No Corpo e na Alma, obra contendo 605 páginas

Em 2015, a professora Derlei participou de audiência da Comissão Nacional da Verdade, momento pelo qual detalhou sua triste trajetória durante o tempo que ficou detida e torturada pelo regime militar. O incrível em tudo isso é que Derlei foi presa por engano, pois o que os militares realmente queriam era prender uma tal de Maria Aparecida Costa, integrante da ANL (Ação Libertadora Nacional) do grupo revolucionário liderado por Maringella.

As conversas que tive com a professora me impulsionaram a pesquisar mais sobre o período, pois minha bagagem teórica e bibliográfica acerca do tema ainda era precária. Na época algumas obras adquiridas, a exemplo do livro “Brasil Nunca Mais”, definiu com certa clareza minha visão sobre o mundo e posição política. Um país que havia saído há cerca de uma década de uma terrível ditadura era fundamental estar munido com obras críticas para lecionar com estudantes do ensino médio. A intenção jamais foi ideologizá-los e sim fazê-los refletir toda a conjuntura histórica, política e econômico dos pais a partir da proclamação da República, até o desencadeamento do golpe de 1964.

 Nas minhas buscas, encontrei o livro “Brasil Vivo 2 – A República”, escrito pelos professores Marcus Vinício Ribeiro, Chico Alencar e Claudius Ceccon. Muito dos relatos contidos nesses livros e outros de níveis didáticos e paradidáticos, eram incompatíveis com outras tantas obras disponíveis.    Até hoje permanece no imaginário social de milhões de brasileiros a impressão que o golpe militar ocorreu em 31 de março de 1964 e não 01 de abril. Até nisso os militares foram audaciosos. Imaginavam que se desse como data oficial ao fato o 01 de abril, como sendo um ato revolucionário, resultaria em piada, pois o dia primeiro de abril é reconhecido como dia da mentira.  

Pouca gente sabe que a saída dos militares dos quartéis para a concretização do golpe se deu em primeiro de abril, e que o processo de vacância do cargo de presidente aconteceu em 02 de abril. Com o fim do regime militar, muitos dos algozes mandantes ou torturadores permaneceram ativos e impunes durante a redemocratização do Brasil até os dias de hoje. Diferentes de países como a Argentina onde muitos dos militares que protagonizaram tantas brutalidades durante a ditadura naquele país foram presos e condenados.

Quase quarenta anos depois do final oficial do regime repressor o fantasma dos torturadores permanece assombrando. Quem achava que o 1964 e seus desdobramentos ficaria para sempre somente disponíveis em arquivos e na nossa memória, como algo que jamais seria repetido na nossa história, está completamente enganado. Em 2016 o Congresso Nacional brasileiro protagonizou um dos fatos mais tenebrosos da nossa curta história de redemocratização política. O espetáculo circense aconteceu quando foi votado o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Claro que nesse dia não foi necessária a saída de militares dos quartéis, com tanques, cavalos e outros equipamentos bélicos, como aconteceu no dia 1 de abril de 1964. O processo foi mais sutil, bastava ir ao parlatório da câmara falar algumas bobagens e sacramentar o golpe falando “Sim”.

Esse “teatro” golpista marcava o fim de um complexo processo de construção da nossa democracia. Agora as portas estavam completamente escancaradas para que as forças repressoras do capital iniciassem suas incursões de ataques e destruição a tudo que representava avanços sociais aos trabalhadores. Retirar direitos não bastava era preciso aprofundar o caos social forjando um cenário de ódio e medo no interior da sociedade.  O fato é que muitos dos parlamentares que se pronunciaram favoráveis a deposição de Dilma Rousseff também ajudaram a dar vida e esperança aos militares de regressarem ao comando do Estado brasileiro. Porém o retorno não poderia se dar em forma de golpe, mas sob um manto “democrático”.  

A vitória de Bolsonaro ao cargo de presidente em 2018 simbolizava o retorno do período de chumbo com verniz de democracia. A chegada ao poder de um militar do exército abriria as portas do executivo ao acomodamento de centenas de generais e demais militares de patentes inferiores. No governo há pouco mais de três anos, algo que os generais se dedicaram e vem se dedicando com bastante insistência é desconstruir o fatídico primeiro de abril de 1964.

Todo empenho é transformar o 31 de abril e não o 01 de abril de 1964 como sendo o “marco importante ao restabelecimento da paz e harmonia social, fortemente ameaçada pelo fantasma do comunismo”. Foi exatamente isso o que o governo do capitão Bolsonaro e de seus generais vem se empenhando todos os anos. Mas isso não se dá exclusivamente por meio do discurso. Para os generais e seus asseclas era necessário forjar conceitos, narrativas, de modo que a população o entendesse como algo maléfico, abominável o que estava por vir. Para a concretização dessas narrativas e valores compatíveis aos discursos conservadores, seria necessário escolher cuidadosamente os nomes dos ocupantes aos postos de destaques do executivo federal, como o Ministério da Educação e da Cultura. Isso explica o motivo do MEC ter tido cinco ministros ocupando a pasta em pouco mais de três anos de governo Bolsonaro.  

Quem leciona história, sociologia ou áreas afins certamente deve estar tendo grandes dificuldades no seu trabalho docente, principalmente quando da abordagem de temas relacionados ao regime militar e assuntos similares. O primeiro desafio é desconstruir inverdades nos livros didáticos e agora agravadas quando generais insistem no discurso afirmando ser o 31 de março a data comemorativa à libertação do Brasil da investida “comunista”.

O que estava mesmo ocorrendo no Brasil a partir do início dos anos 1960 era uma forte mobilização social por reforma agrária, melhorias na educação, segurança, saúde, etc. A burguesia dominante nacional e internacional da época se sentia ameaçada de que tais mobilizações populares pudessem por em xeque seu poder hegemônico.  Forjar uma ameaça comunista foi uma estratégia bem salutar. Para isso seria necessário demonizar o termo comunismo, transformando em algo mau, monstruoso. Até hoje esse conceito é assim interpretado por muita gente.  

Com o sucesso da empreita golpista era o momento de sair às ruas e “caçar as bruxas”, perseguir, prender, torturar todos que de uma forma ou de outro tivessem agindo contrários a retomada do “desenvolvimento”, como alegam os militares. No último dia 31 de março, mais uma vez os generais insistiram em lançar nota comemorativa à data. Quem teve acesso aos escritos deve ter percebido os absurdos contidos nesse documento. O empenho dessas figuras remanescentes do golpe de 1964 é dar configurações distintas aos fatos, afirmando categoricamente que as prisões, as censuras, o fechamento do congresso e outros absurdos foram necessários.

Quem sofreu na pele, no corpo toda a atrocidade do regime sabe muito bem que as ações dos militares em perseguir, torturar e matar opositores foram traçadas por organismos internacionais como a CIA. Dizer que a democracia brasileira estava ameaçada por forças totalitárias é uma inverdade. Nomes como Lacerda e Kubitscheck, integrantes da burguesia brasileira, já estavam sendo cogitados a disputar as eleições gerais de 1965.  

Um dos momentos mais repugnantes da nossa história recente aconteceu na plenária de cassação da presidente Dilma Rousseff na câmara federal em 2016. Durante as falas dos parlamentares justificando seus votos favoráveis ou não ao impeachment, o parlamentar Jair Bolsonaro argumentou seu voto favorável homenageando um dos maiores torturadores do regime militar, Brilhante Ustra. A intenção era afetar frontalmente o brio da presidente, sendo uma das vítimas confessa do torturador Ustra. Muitos não imaginavam que naquele momento estava sendo chocado o ovo da serpente, que dois anos depois ocuparia o posto de presidente da república.   

Mais uma vez reitero a importância de jamais nos abstermos aos fatos, pois somente eles poderão ser nossos aliados contra todo tipo de brutalidade sofrida pela humanidade. Precisamos também lembrar sempre das vítimas das guerras, de governos genocidas, de insistir na ideia doentia de pureza racial. Tudo isso são registros e cuja humanidade tem a obrigação de saber, para que fatos semelhantes jamais ocorram.

Não podemos também permitir que governos genocidas e seus generais oportunistas queiram, como um passe de mágica, apagar dos livros de história todo o rastro de dor, medo, vivido por milhares de cidadãos/ãs, durante a ditadura. Que o sangue derramado e toda a dor sofrida pela professora Derlei nunca seja esquecida. Que seu sorriso, seu semblante calmo, doce, afetivo, nunca saia da nossa memória. Que sua alma descanse em paz.

Prof. Jairo Cesa    

  

     

  

        

sábado, 2 de abril de 2022

 

 

CORRUPÇÃO E TRÁFICO DE INFLUÊNCIA DOMINAM AS ESTRUTURAS DO MEC (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA)

Desde o instante que Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil há quase quatro anos, a país viveu e ainda vive um dos seus maiores retrocessos sociais e econômicos em mais de 130 anos de república. Cabe aqui destacar que o modo atabalhoado como Bolsonaro gerencia o Brasil não causa surpresa para muitos críticos que já vinham alertando a população antes mesmo do pleito eleitoral de 2018. Os alertas eram para que não votassem nele e outros candidatos do seu partido sob o risco de estarmos elegendo pessoas em escrúpulo que levariam o Brasil a bancarrota. O fato é que nem tudo no governo Bolsonaro pode ser considerado como ruim.

O que consideramos positivo em sua gestão foi o fato trazer à luz toda a podridão de uma estrutura política falida e de uma parcela reprimida da sociedade que cultua sentimentos de ódio. A pandemia do COVID 19 foi de certo modo um teste importante para mostrar que a escolha de um péssimo governo pode ser trágica para uma nação inteira. Desde o inicio da Pandemia, o governo Bolsonaro se colocou como um dos opositores às recomendações da OMS e demais organizações de saúde a não proliferação rápida do vírus.

Tal negacionismo criminoso contribuiu para que a metade das 650 mil vítimas fatais do COVID no Brasil tivesse sido ele o responsável quando defendia o contágio de rebanho e o uso de medicamentos comprovadamente não eficazes contra o vírus.  A escolha dos nomes para ocupar os postos de comando dos principais ministérios do governo Bolsonaro seguiram critérios políticos não muito republicanos, que levaram na quase completa destruição das estruturas do Estado Brasileiro. Nessa linha de desastres protagonizada pelo presidente da república não se excluiu uma das pastas mais importantes de qualquer nação séria, o ministério da educação. Mais uma vez não surpreendeu aos críticos os desdobramentos dessa importante pasta ocupada por pessoas desqualificadas à importância do cargo.

Em pouco mais de três anos de governo, quatro ministros revezaram o MEC deixando um passivo de entulhos administrativos. Falsários, golpistas, proselitistas, etc, são essas as definições que as futuras gerações terão desses mercenários alojados no MEC, um importante órgão que tem por premissa cultivar valores e a formação de cidadãos íntegros e éticos.  Para alcançar esses níveis de humanização, a educação deve ser laica, com escolas bem estruturadas e professores capacitados profissionalmente. Tudo parecia que importantes demandas educacionais reprimidas como a elevação do percentual do PIB para 10%, rapidamente se tornaria realidade com a promulgada a nova LDB, lei n. 9394/96.

Na década posterior à promulgação da nova legislação educacional, muitos foram os desafios enfrentados para que fosse possível consolidar o mínimo de conquistas, dentre elas a permanência e o fortalecimento de uma escola pública e laica.  A luta pela profissionalização com legislações que assegurassem um piso salarial nacional justo, além da gestão democrática, ambas são conquistas importantes que jamais deverão retroceder. Parece que não é exatamente o que pensam ou almejam os novos/velhos detentores do poder.   

Claro que não, quando se sabe que para assegurarem privilégios e certos sistemas de poderes falidos como é atualmente o legislativo, por exemplo, se munem em manter a população na ignorância absoluta. É consenso que é através da escola que são lançados os alicerces de uma boa ou má sociedade. Mudar conceitos, valores, estruturas de poder, entre outros, requer anos, décadas de investimentos e a continuidade de projetos que propiciem tais transformações.

Entretanto, tem-se a impressão de estar caindo em um profundo abismo, ressuscitando das catacumbas do passado longínquo tudo de errado cometido por gerações alucinadas por dogmas religiosos, tendo sido milhões de pessoas brutalmente mortas pelo simples fato de discordarem. O crescimento vertiginoso de templos neopetencontais no Brasil são prenúncios de que algo muito estranho está germinando, que resultará em monstros devoradores de mentes cegadas por discursos de falsos profetas. Quando lideranças nacionais adotam concepções contrarias ao que é designado pelo Estado republicano, como “Brasil acima de todos e Deus acima de tudo”, esse é o momento de atenção absoluta, pois tal expressão é repleta de simbologia não construtiva.   

As inúmeras vezes em que Bolsonaro apareceu com congressistas religiosos em oração e outras vezes defendendo a indicação de um ministro terrivelmente religioso para o STF, tudo isso são prenúncios de uma possível guinada a regimes teocráticos. O fato é que o presidente não está só nessa enfadonha empreitada.  Além de uma poderosa bancada evangélica sitiada no congresso nacional, o governo brasileiro vem pavimentando seu terreno ideológico extremista apoiando e financiando a abertura de escolas cívico-militar em todo o Brasil. A criação de uma tríade Deus, Pátria e Família, ambos são carregados de ideologias ultraconservadoras. Essa foi a mesma tríade que fez convergir milhares de pessoa em passeata defendendo o golpe militar de 1964.

Não é de hoje que os polpudos recursos do ministério da educação vêm sendo golpeado por um punhado de aventureiros, mal intencionados, chancelados pelo próprio chefe da pasta.  São quase 50 bilhões o orçamento administrado pelo MEC, o maior entre os demais ministérios. Entretanto, mesmo com toda essa grana, o país se desponta como um do piores do ranque em quase todas as áreas entre os que compõem a OCDE. Nos três anos de governo Bolsonaro a pasta do MEC foi ocupada por quatro ministros, todos, portanto, sem o mínimo de competência e postura ética à altura do cargo.  

O primeiro dessa corja de malfeitores foi o colombiano naturalizado brasileiro, Ricardo Vélez Rodrigues. Ficou pouco mais de um ano, sendo demitido devido a disputas dentro do próprio ministério, envolvendo grupos opositores interessados no cargo. Um dos fatos considerados polêmicos em seu curto mandato foi querer interferir no conteúdo de livros didáticos. O caso mais emblemático foi querer mudar a forma como o golpe militar de 1964 era ensinado na escola, ou seja, mostrar que não houve golpe e sim uma revolução, cujos militares seriam lembrados como heróis e não como algozes.  

No lugar de Rodrigues, Bolsonaro indicou um tal de Abrahan Veintraub,  considerado o ministro linha dura e fiel escudeiro do chefe do executivo.  Durante o pouco tempo que ficou no cargo, Veintraub procurou levar à frente as políticas de desmontes na educação.   O fato que reverberaria em sua demissão foi uma reunião no palácio do planalto com outros ministros em 2021, onde atacou o STF afirmando que poria todos na cadeia. No lugar de Veintraub Bolsonaro indicou Carlo Decotelli. Permaneceu cinco dias a frente da pasta. O motivo do pouco tempo foi pelo fato de ter mentido em relação a sua formação acadêmica.

Diante da vacância do cargo de Ministro da Educação era de se esperar que o próximo a ocupar essa importante pasta não se distinguiria ao nível dos anteriores.  No entanto quase todos/a os críticos queimaram a língua, pois o nome escolhido foi um professor de uma conceituada universidade brasileira, a Mackenzie de São Paulo. A dúvida que permeou o imaginário de todos era como um professor, pastor presbiteriano, se comportaria frente a um Estado Laico? Não precisou muito tempo para que o novo ministro destilasse todo o seu ódio aos diferentes. Chegou ao cúmulo em afirmar que o homossexualismo era resultado de famílias desajustadas.

O ápice da demissão de Ribeiro foi noticias veiculadas pela imprensa de estar favorecendo deputados evangélicos, onde intermediavam com prefeituras aliadas a liberação de verbas do MEC para projetos voltados à educação. Um áudio vazado apareceu o ministro falando com um tal Deputado Pastor Gilmar. Afirmou o ministro no áudio que o pastor e seus amigos teriam prioridade em liberação de verbas do ministério a pedido do presidente da república.  

O caso é tão nefasto que esses deputados e seus amigos pediam propina aos prefeitos para que os recursos oferecidos fossem liberados. Há relatos de ter havido solicitação de pagamentos em barras de ouro. Observe o triste cenário que foi transformado o MEC, um ministério que deveria ser tratado como a prioridade das prioridades, virou um antro de malfeitores, corruptos, a serviço de eu chefe maior, o presidente da república.   

Tudo isso explica por que no Brasil ainda se elege governos que transformam ministérios em currais eleitorais. O dinheiro do MEC que deveria ser para a construção/reformas de escolas e fomentar programas de formação de professores são desviados para beneficiar pastores, construir igrejas e azeitar campanhas eleitorais de políticos corruptos. Tirar dinheiro para a compra de merenda, materiais pedagógicos, bem como dar um pouco de alento aos milhares de professores e estudantes submetidos a ricos diários de prédios escolares virem abaixo, é um escárnio à dignidade humana.   Até quando teremos que conviver com tamanhas aberrações?

Prof. Jairo Cesa