quarta-feira, 6 de abril de 2022

 

O GOLPE MILITAR DE 1964: VERDADES E MENTIRAS SOBRE ESSE TRÁGICO PERÍODO DA NOSSA HISTÓRIA RECENTE

No inicio da minha carreira como professor de história fui convidado para lecionar no Colégio Objetivo que permaneceu em Araranguá por alguns anos durante a década de 1990. Na época tive a oportunidade de conhecer a professora Derlei de Luca, que também atuava nesse mesmo colégio em Araranguá e Criciúma. A Professora e militante política Derlei teve a sua vida quase destruída durante a ditadura militar, sendo presa e torturada nos porões do DOPS.  Lembro na época que a aulas proferidas por ela eram sempre acompanhadas com expectativa e entusiasmo pelos estudantes, pois estava ali, na frente deles/as, nada mais nada menos que alguém que sentiu na pele, no corpo e na alma, toda a maldade e perversidade de um regime sanguinário.

Derlei, no entanto, jamais restabeleceu plenamente sua vida emocional, carregou consigo o trauma e os fantasmas da ditadura e dos torturadores até o fim da sua vida, em 2017, quando morreu vitima de um câncer aos 71 anos de idade. Muito do que aprendi sobre os porões da ditadura militar, DOPS, etc, foi com a brilhante professora. Na época eu me sentia extremamente lisonjeada por estar compartilhando o mesmo ambiente com alguém tão simbólico, tão importante na luta contra a repressão. Em 2002 a professora Derlei publicou o seu livro: No Corpo e na Alma, obra contendo 605 páginas

Em 2015, a professora Derlei participou de audiência da Comissão Nacional da Verdade, momento pelo qual detalhou sua triste trajetória durante o tempo que ficou detida e torturada pelo regime militar. O incrível em tudo isso é que Derlei foi presa por engano, pois o que os militares realmente queriam era prender uma tal de Maria Aparecida Costa, integrante da ANL (Ação Libertadora Nacional) do grupo revolucionário liderado por Maringella.

As conversas que tive com a professora me impulsionaram a pesquisar mais sobre o período, pois minha bagagem teórica e bibliográfica acerca do tema ainda era precária. Na época algumas obras adquiridas, a exemplo do livro “Brasil Nunca Mais”, definiu com certa clareza minha visão sobre o mundo e posição política. Um país que havia saído há cerca de uma década de uma terrível ditadura era fundamental estar munido com obras críticas para lecionar com estudantes do ensino médio. A intenção jamais foi ideologizá-los e sim fazê-los refletir toda a conjuntura histórica, política e econômico dos pais a partir da proclamação da República, até o desencadeamento do golpe de 1964.

 Nas minhas buscas, encontrei o livro “Brasil Vivo 2 – A República”, escrito pelos professores Marcus Vinício Ribeiro, Chico Alencar e Claudius Ceccon. Muito dos relatos contidos nesses livros e outros de níveis didáticos e paradidáticos, eram incompatíveis com outras tantas obras disponíveis.    Até hoje permanece no imaginário social de milhões de brasileiros a impressão que o golpe militar ocorreu em 31 de março de 1964 e não 01 de abril. Até nisso os militares foram audaciosos. Imaginavam que se desse como data oficial ao fato o 01 de abril, como sendo um ato revolucionário, resultaria em piada, pois o dia primeiro de abril é reconhecido como dia da mentira.  

Pouca gente sabe que a saída dos militares dos quartéis para a concretização do golpe se deu em primeiro de abril, e que o processo de vacância do cargo de presidente aconteceu em 02 de abril. Com o fim do regime militar, muitos dos algozes mandantes ou torturadores permaneceram ativos e impunes durante a redemocratização do Brasil até os dias de hoje. Diferentes de países como a Argentina onde muitos dos militares que protagonizaram tantas brutalidades durante a ditadura naquele país foram presos e condenados.

Quase quarenta anos depois do final oficial do regime repressor o fantasma dos torturadores permanece assombrando. Quem achava que o 1964 e seus desdobramentos ficaria para sempre somente disponíveis em arquivos e na nossa memória, como algo que jamais seria repetido na nossa história, está completamente enganado. Em 2016 o Congresso Nacional brasileiro protagonizou um dos fatos mais tenebrosos da nossa curta história de redemocratização política. O espetáculo circense aconteceu quando foi votado o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Claro que nesse dia não foi necessária a saída de militares dos quartéis, com tanques, cavalos e outros equipamentos bélicos, como aconteceu no dia 1 de abril de 1964. O processo foi mais sutil, bastava ir ao parlatório da câmara falar algumas bobagens e sacramentar o golpe falando “Sim”.

Esse “teatro” golpista marcava o fim de um complexo processo de construção da nossa democracia. Agora as portas estavam completamente escancaradas para que as forças repressoras do capital iniciassem suas incursões de ataques e destruição a tudo que representava avanços sociais aos trabalhadores. Retirar direitos não bastava era preciso aprofundar o caos social forjando um cenário de ódio e medo no interior da sociedade.  O fato é que muitos dos parlamentares que se pronunciaram favoráveis a deposição de Dilma Rousseff também ajudaram a dar vida e esperança aos militares de regressarem ao comando do Estado brasileiro. Porém o retorno não poderia se dar em forma de golpe, mas sob um manto “democrático”.  

A vitória de Bolsonaro ao cargo de presidente em 2018 simbolizava o retorno do período de chumbo com verniz de democracia. A chegada ao poder de um militar do exército abriria as portas do executivo ao acomodamento de centenas de generais e demais militares de patentes inferiores. No governo há pouco mais de três anos, algo que os generais se dedicaram e vem se dedicando com bastante insistência é desconstruir o fatídico primeiro de abril de 1964.

Todo empenho é transformar o 31 de abril e não o 01 de abril de 1964 como sendo o “marco importante ao restabelecimento da paz e harmonia social, fortemente ameaçada pelo fantasma do comunismo”. Foi exatamente isso o que o governo do capitão Bolsonaro e de seus generais vem se empenhando todos os anos. Mas isso não se dá exclusivamente por meio do discurso. Para os generais e seus asseclas era necessário forjar conceitos, narrativas, de modo que a população o entendesse como algo maléfico, abominável o que estava por vir. Para a concretização dessas narrativas e valores compatíveis aos discursos conservadores, seria necessário escolher cuidadosamente os nomes dos ocupantes aos postos de destaques do executivo federal, como o Ministério da Educação e da Cultura. Isso explica o motivo do MEC ter tido cinco ministros ocupando a pasta em pouco mais de três anos de governo Bolsonaro.  

Quem leciona história, sociologia ou áreas afins certamente deve estar tendo grandes dificuldades no seu trabalho docente, principalmente quando da abordagem de temas relacionados ao regime militar e assuntos similares. O primeiro desafio é desconstruir inverdades nos livros didáticos e agora agravadas quando generais insistem no discurso afirmando ser o 31 de março a data comemorativa à libertação do Brasil da investida “comunista”.

O que estava mesmo ocorrendo no Brasil a partir do início dos anos 1960 era uma forte mobilização social por reforma agrária, melhorias na educação, segurança, saúde, etc. A burguesia dominante nacional e internacional da época se sentia ameaçada de que tais mobilizações populares pudessem por em xeque seu poder hegemônico.  Forjar uma ameaça comunista foi uma estratégia bem salutar. Para isso seria necessário demonizar o termo comunismo, transformando em algo mau, monstruoso. Até hoje esse conceito é assim interpretado por muita gente.  

Com o sucesso da empreita golpista era o momento de sair às ruas e “caçar as bruxas”, perseguir, prender, torturar todos que de uma forma ou de outro tivessem agindo contrários a retomada do “desenvolvimento”, como alegam os militares. No último dia 31 de março, mais uma vez os generais insistiram em lançar nota comemorativa à data. Quem teve acesso aos escritos deve ter percebido os absurdos contidos nesse documento. O empenho dessas figuras remanescentes do golpe de 1964 é dar configurações distintas aos fatos, afirmando categoricamente que as prisões, as censuras, o fechamento do congresso e outros absurdos foram necessários.

Quem sofreu na pele, no corpo toda a atrocidade do regime sabe muito bem que as ações dos militares em perseguir, torturar e matar opositores foram traçadas por organismos internacionais como a CIA. Dizer que a democracia brasileira estava ameaçada por forças totalitárias é uma inverdade. Nomes como Lacerda e Kubitscheck, integrantes da burguesia brasileira, já estavam sendo cogitados a disputar as eleições gerais de 1965.  

Um dos momentos mais repugnantes da nossa história recente aconteceu na plenária de cassação da presidente Dilma Rousseff na câmara federal em 2016. Durante as falas dos parlamentares justificando seus votos favoráveis ou não ao impeachment, o parlamentar Jair Bolsonaro argumentou seu voto favorável homenageando um dos maiores torturadores do regime militar, Brilhante Ustra. A intenção era afetar frontalmente o brio da presidente, sendo uma das vítimas confessa do torturador Ustra. Muitos não imaginavam que naquele momento estava sendo chocado o ovo da serpente, que dois anos depois ocuparia o posto de presidente da república.   

Mais uma vez reitero a importância de jamais nos abstermos aos fatos, pois somente eles poderão ser nossos aliados contra todo tipo de brutalidade sofrida pela humanidade. Precisamos também lembrar sempre das vítimas das guerras, de governos genocidas, de insistir na ideia doentia de pureza racial. Tudo isso são registros e cuja humanidade tem a obrigação de saber, para que fatos semelhantes jamais ocorram.

Não podemos também permitir que governos genocidas e seus generais oportunistas queiram, como um passe de mágica, apagar dos livros de história todo o rastro de dor, medo, vivido por milhares de cidadãos/ãs, durante a ditadura. Que o sangue derramado e toda a dor sofrida pela professora Derlei nunca seja esquecida. Que seu sorriso, seu semblante calmo, doce, afetivo, nunca saia da nossa memória. Que sua alma descanse em paz.

Prof. Jairo Cesa    

  

     

  

        

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