O GOLPE MILITAR DE 1964: VERDADES E MENTIRAS SOBRE ESSE TRÁGICO PERÍODO DA NOSSA HISTÓRIA RECENTE
No
inicio da minha carreira como professor de história fui convidado para lecionar
no Colégio Objetivo que permaneceu em Araranguá por alguns anos durante a
década de 1990. Na época tive a oportunidade de conhecer a professora Derlei de
Luca, que também atuava nesse mesmo colégio em Araranguá e Criciúma. A Professora
e militante política Derlei teve a sua vida quase destruída durante a ditadura
militar, sendo presa e torturada nos porões do DOPS. Lembro na época que a aulas proferidas por ela
eram sempre acompanhadas com expectativa e entusiasmo pelos estudantes, pois estava
ali, na frente deles/as, nada mais nada menos que alguém que sentiu na pele, no
corpo e na alma, toda a maldade e perversidade de um regime sanguinário.
Derlei,
no entanto, jamais restabeleceu plenamente sua vida emocional, carregou consigo
o trauma e os fantasmas da ditadura e dos torturadores até o fim da sua vida,
em 2017, quando morreu vitima de um câncer aos 71 anos de idade. Muito do que
aprendi sobre os porões da ditadura militar, DOPS, etc, foi com a brilhante
professora. Na época eu me sentia extremamente lisonjeada por estar compartilhando
o mesmo ambiente com alguém tão simbólico, tão importante na luta contra a
repressão. Em 2002 a professora Derlei publicou o seu livro: No Corpo e na
Alma, obra contendo 605 páginas
Em
2015, a professora Derlei participou de audiência da Comissão Nacional da
Verdade, momento pelo qual detalhou sua triste trajetória durante o tempo que
ficou detida e torturada pelo regime militar. O incrível em tudo isso é que
Derlei foi presa por engano, pois o que os militares realmente queriam era
prender uma tal de Maria Aparecida Costa, integrante da ANL (Ação Libertadora
Nacional) do grupo revolucionário liderado por Maringella.
As
conversas que tive com a professora me impulsionaram a pesquisar mais sobre o
período, pois minha bagagem teórica e bibliográfica acerca do tema ainda era
precária. Na época algumas obras adquiridas, a exemplo do livro “Brasil Nunca
Mais”, definiu com certa clareza minha visão sobre o mundo e posição política. Um
país que havia saído há cerca de uma década de uma terrível ditadura era fundamental
estar munido com obras críticas para lecionar com estudantes do ensino médio. A
intenção jamais foi ideologizá-los e sim fazê-los refletir toda a conjuntura
histórica, política e econômico dos pais a partir da proclamação da República,
até o desencadeamento do golpe de 1964.
Nas minhas buscas, encontrei o livro “Brasil
Vivo 2 – A República”, escrito pelos professores Marcus Vinício Ribeiro, Chico
Alencar e Claudius Ceccon. Muito dos relatos contidos nesses livros e outros de
níveis didáticos e paradidáticos, eram incompatíveis com outras tantas obras
disponíveis. Até hoje permanece no imaginário social de
milhões de brasileiros a impressão que o golpe militar ocorreu em 31 de março
de 1964 e não 01 de abril. Até nisso os militares foram audaciosos. Imaginavam que
se desse como data oficial ao fato o 01 de abril, como sendo um ato revolucionário,
resultaria em piada, pois o dia primeiro de abril é reconhecido como dia da
mentira.
Pouca
gente sabe que a saída dos militares dos quartéis para a concretização do golpe
se deu em primeiro de abril, e que o processo de vacância do cargo de
presidente aconteceu em 02 de abril. Com o fim do regime militar, muitos dos
algozes mandantes ou torturadores permaneceram ativos e impunes durante a
redemocratização do Brasil até os dias de hoje. Diferentes de países como a
Argentina onde muitos dos militares que protagonizaram tantas brutalidades
durante a ditadura naquele país foram presos e condenados.
Quase
quarenta anos depois do final oficial do regime repressor o fantasma dos
torturadores permanece assombrando. Quem achava que o 1964 e seus
desdobramentos ficaria para sempre somente disponíveis em arquivos e na nossa
memória, como algo que jamais seria repetido na nossa história, está
completamente enganado. Em 2016 o Congresso Nacional brasileiro protagonizou um
dos fatos mais tenebrosos da nossa curta história de redemocratização política.
O espetáculo circense aconteceu quando foi votado o impeachment da presidente
Dilma Rousseff. Claro que nesse dia não foi necessária a saída de militares dos
quartéis, com tanques, cavalos e outros equipamentos bélicos, como aconteceu no
dia 1 de abril de 1964. O processo foi mais sutil, bastava ir ao parlatório da
câmara falar algumas bobagens e sacramentar o golpe falando “Sim”.
Esse
“teatro” golpista marcava o fim de um complexo processo de construção da nossa democracia.
Agora as portas estavam completamente escancaradas para que as forças
repressoras do capital iniciassem suas incursões de ataques e destruição a tudo
que representava avanços sociais aos trabalhadores. Retirar direitos não
bastava era preciso aprofundar o caos social forjando um cenário de ódio e medo
no interior da sociedade. O fato é que
muitos dos parlamentares que se pronunciaram favoráveis a deposição de Dilma
Rousseff também ajudaram a dar vida e esperança aos militares de regressarem ao
comando do Estado brasileiro. Porém o retorno não poderia se dar em forma de
golpe, mas sob um manto “democrático”.
A
vitória de Bolsonaro ao cargo de presidente em 2018 simbolizava o retorno do
período de chumbo com verniz de democracia. A chegada ao poder de um militar do
exército abriria as portas do executivo ao acomodamento de centenas de generais
e demais militares de patentes inferiores. No governo há pouco mais de três
anos, algo que os generais se dedicaram e vem se dedicando com bastante
insistência é desconstruir o fatídico primeiro de abril de 1964.
Todo
empenho é transformar o 31 de abril e não o 01 de abril de 1964 como sendo o “marco importante ao restabelecimento da
paz e harmonia social, fortemente ameaçada pelo fantasma do comunismo”. Foi
exatamente isso o que o governo do capitão Bolsonaro e de seus generais vem se
empenhando todos os anos. Mas isso não se dá exclusivamente por meio do
discurso. Para os generais e seus asseclas era necessário forjar conceitos,
narrativas, de modo que a população o entendesse como algo maléfico, abominável
o que estava por vir. Para a concretização dessas narrativas e valores
compatíveis aos discursos conservadores, seria necessário escolher cuidadosamente
os nomes dos ocupantes aos postos de destaques do executivo federal, como o Ministério
da Educação e da Cultura. Isso explica o motivo do MEC ter tido cinco ministros
ocupando a pasta em pouco mais de três anos de governo Bolsonaro.
Quem
leciona história, sociologia ou áreas afins certamente deve estar tendo grandes
dificuldades no seu trabalho docente, principalmente quando da abordagem de
temas relacionados ao regime militar e assuntos similares. O primeiro desafio é
desconstruir inverdades nos livros didáticos e agora agravadas quando generais
insistem no discurso afirmando ser o 31 de março a data comemorativa à libertação
do Brasil da investida “comunista”.
O
que estava mesmo ocorrendo no Brasil a partir do início dos anos 1960 era uma
forte mobilização social por reforma agrária, melhorias na educação, segurança,
saúde, etc. A burguesia dominante nacional e internacional da época se sentia
ameaçada de que tais mobilizações populares pudessem por em xeque seu poder
hegemônico. Forjar uma ameaça comunista
foi uma estratégia bem salutar. Para isso seria necessário demonizar o termo
comunismo, transformando em algo mau, monstruoso. Até hoje esse conceito é
assim interpretado por muita gente.
Com
o sucesso da empreita golpista era o momento de sair às ruas e “caçar as bruxas”,
perseguir, prender, torturar todos que de uma forma ou de outro tivessem agindo
contrários a retomada do “desenvolvimento”, como alegam os militares. No último
dia 31 de março, mais uma vez os generais insistiram em lançar nota
comemorativa à data. Quem teve acesso aos escritos deve ter percebido os
absurdos contidos nesse documento. O empenho dessas figuras remanescentes do golpe
de 1964 é dar configurações distintas aos fatos, afirmando categoricamente que as
prisões, as censuras, o fechamento do congresso e outros absurdos foram necessários.
Quem
sofreu na pele, no corpo toda a atrocidade do regime sabe muito bem que as
ações dos militares em perseguir, torturar e matar opositores foram traçadas
por organismos internacionais como a CIA. Dizer que a democracia brasileira
estava ameaçada por forças totalitárias é uma inverdade. Nomes como Lacerda e
Kubitscheck, integrantes da burguesia brasileira, já estavam sendo cogitados a
disputar as eleições gerais de 1965.
Um
dos momentos mais repugnantes da nossa história recente aconteceu na plenária de
cassação da presidente Dilma Rousseff na câmara federal em 2016. Durante as
falas dos parlamentares justificando seus votos favoráveis ou não ao
impeachment, o parlamentar Jair Bolsonaro argumentou seu voto favorável
homenageando um dos maiores torturadores do regime militar, Brilhante Ustra. A
intenção era afetar frontalmente o brio da presidente, sendo uma das vítimas
confessa do torturador Ustra. Muitos não imaginavam que naquele momento estava
sendo chocado o ovo da serpente, que dois anos depois ocuparia o posto de
presidente da república.
Mais
uma vez reitero a importância de jamais nos abstermos aos fatos, pois somente
eles poderão ser nossos aliados contra todo tipo de brutalidade sofrida pela
humanidade. Precisamos também lembrar sempre das vítimas das guerras, de
governos genocidas, de insistir na ideia doentia de pureza racial. Tudo isso
são registros e cuja humanidade tem a obrigação de saber, para que fatos
semelhantes jamais ocorram.
Não
podemos também permitir que governos genocidas e seus generais oportunistas queiram,
como um passe de mágica, apagar dos livros de história todo o rastro de dor,
medo, vivido por milhares de cidadãos/ãs, durante a ditadura. Que o sangue
derramado e toda a dor sofrida pela professora Derlei nunca seja esquecida. Que
seu sorriso, seu semblante calmo, doce, afetivo, nunca saia da nossa memória. Que
sua alma descanse em paz.
Prof.
Jairo Cesa
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