quinta-feira, 20 de abril de 2017

A TERCEIRA VERSÃO DA BNCC (BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM) REVELA O RETROCESSO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA


No dia 06 de março de 2017 o governo federal através do MEC encaminhou ao CNE (Conselho Nacional de Educação) a terceira e conclusiva versão da BNCC (Base Nacional Curricular Comum) com as alterações e emendas sugeridas pela “sociedade” e entidades ligadas a educação. A partir de agora o Conselho terá até dezembro do corrente ano para fazer os ajustes definitivos, bem como a realização antes de prazo de cinco audiências públicas nas cinco regiões brasileiras para discutir e quem sabe promover alterações no texto como querem educadores e parcela significativa da sociedade.
O fato é que todos/as que acompanharam os desdobramentos da primeira e segunda versão do documento, perceberam, analisando o texto agora refeito, que não houve avanços significativos, se eximindo até de inserir no documento base muitas das 12 milhões de proposições importantes encaminhadas pela sociedade. Uma das surpresas e decepções na apresentação foi constatar que no pacote não havia nenhum texto relativo à base curricular do ensino médio, que segundo justificativa do governo federal ficará para o segundo semestre.
E por que será? A justificativa do é que por ter havido a reforma do ensino médio no final de 2016, não houve tempo suficiente para inserir as propostas no documento da base.  Há indícios claros de que a fragmentação tenha sido proposital, ou seja, flexibilizar ou fragilizar o princípio de conjunto, de interconexão e integralidade educacional. Não há dúvidas que essas modificações, de caráter privatista, deve ter havido a participação de integrantes de organizações e entidades empresariais do ensino, onde exercem forte influência nos bastidores do governo. São seguimentos que atuam em defesa de uma educação mais pragmática, enxuta, condicionada a produtividade e a maximização dos lucros.
Durante o processo de tramitação da proposta da base curricular em âmbito federal, estadual e municipal, nos encontros para dialogar e encaminhar proposições, foram mínimas a participação de profissionais que atuam no chão das escolas básicas, que vivenciam diariamente o complexo e conturbado processo educacional. Nas inúmeras entrevistas ou propagandas insistentemente divulgadas nos principais veículos de comunicação de massa, financiados com dinheiro público, a presença quase sempre era e ainda é de personagens representando estudantes do ensino básico sorridentes demonstrando satisfação diante da reforma.  
No caso de Santa Catarina, quase todas as conferências e congressos realizadas nos últimos anos para debater educação pública, a FIESC (Federação das Indústrias de Santa Catarina), sempre esteve presente como uma das protagonistas das reformas, junto com o governo, conduzindo os debates e os encaminhamentos das proposições. Não é por acaso que toda agenda educacional pública do estado está sendo construída seguindo à risca as premissas empresariais. Se fosse ao contrário o governo federal não teria reelaborado um novo texto sobre a BNCC, desconsiderando avanços significativos contidos no documento original que foi apresentado em 2015 no Fórum Nacional de Educação.
Em nenhum momento o Fórum foi convidado para discutir as alterações encaminhadas ao novo documento, uma explícita demonstração de que a atual versão viria completamente viciada. Dito e feito. Mais uma vez prevaleceram os lobbies tanto de fundações empresariais (Itaú, Todos pela Educação, Ayrton Sena, Lemann, Roberto Marinho, etc.) como das bancadas religiosas conservadoras alojadas no congresso nacional, onde se articularam para pressionar o governo para suprimir itens importantes relacionados a educação sexual e gênero.
Uma das tantas justificativas apresentadas para a supressão da temática orientação sexual e identidade de gênero no currículo foi de que não caberia a escola a função educativa e sim da família. Essa postura excludente foi interpretada pelos movimentos e organizações pró LGBT, como um terrível retrocesso histórico, uma espécie de campo aberto para o agravamento da violência contra tais populações. Basta analisar as estatísticas assustadoras de crimes hediondos contra transgêneros, que assegura ao Brasil o triste título de primeira posição em números de vítimas fatais. As estatísticas também dão conta que a violência sexual (estupro, assédio), está vitimando milhares de mulheres todos os anos.  
No momento que se transfere para a família a responsabilidade quase que exclusiva com a educação sexual, que culturalmente é moldada seguindo preceitos moralistas e machistas, o risco de se intensificar comportamentos homofóbicos violentos, se torna ainda maior. Na realidade muitos dos filmes produzidos; obras literárias; publicidade e na própria família, ambos contribuem na produção de um padrão de comportamento estereotipado, onde a mulher, com raras exceções, se apresenta ainda rotulada como sexo frágil, a espera do príncipe encantado. Todos/as devem lembrar-se da personagem Barbie?
Na realidade essa é uma das principais causas que levam ao abandono de milhares de estudantes vítimas de bulling, geralmente relacionado à sexualidade. O problema é que o modelo de escola e família que ainda prevalece no Brasil é heteronormativa e moralista. Se a BNCC, a intenção é fechar os olhos ao tema sexualidade e identidade de gênero, cabe aos profissionais da educação recorrer a Constituição Federal, a LDB, ao PNE e a Lei Maria da Penha, para assegurar o direito de trabalhar tais temas em sala de aula.   
Além do ataque frontal a um direito constitucional que é o respeito às diversidades, que nesse caso inclui a discussão sobre orientação e identidade de gênero na escola, na terceira versão da BNCC aparece uma expressão que para muitos pode até passar batida, porém, está carregada de intenções escusas, que é o ensino da história no ensino fundamental, onde agora deverá seguir a linha cronológica. Na realidade, a inclusão desse item é uma tentativa de desconstruir ou desconsiderar tudo o que de mais progressista se produziu até o momento na educação.
Se analisarmos atentamente o que expressa os planos nacional, estaduais e municipais de educação, bem como as propostas curriculares, todas, sem exceção, estimulam um ensino crítico, cujo diálogo deve ser intensificado com as demais ciências, português, matemática, geografia, etc. O ensino da história numa linha cronológica e acrítica é a certeza desse engessamento epistemológico do saber. O que é mais preocupante ainda no ensino da História, é que no final de 2016 o governo federal encaminhou decreto para a reformulação do currículo do ensino médio, cuja proposta para a história recebeu críticas de professores da área e de entidades que os representam como a ANPUH (Associação Nacional dos Profissionais Universitários de História).     
A tendência é que a versão final da base curricular nacional comum específica para o ensino de historio no nível médio, prometida para o segundo semestre de 2017, tende a conter as mesmas diretrizes do ensino fundamental, um ensino linear, factual e cronológico, restringindo ao máximo a contextualização e a criticidade social pelos estudantes. Isso tende a se acirrar ainda mais pelo fato de a reforma ter excluído do currículo a obrigatoriedade do ensino de sociologia e filosofia, onde ambas garantiam suporte epistemológico aos profissionais de história trazendo para o debate os problemas sociais.
E a crítica não se restringiu somente aos/as profissionais de história, sociologia, filosofia e educação física, diretamente afetada com a reforma do ensino médio. Também no ensino fundamental relativo a BNCC, o processo discriminatório se deu no ensino de ciências. Segundo denúncia de profissionais da área, embora a área da matemática tenha sido contemplada com o ensino de “estatística” e “probabilidades” a partir do primeiro ano do ensino fundamental em diante, a palavra software como ferramenta para estimular o aprendizado em ciência não é citado uma única vez. Já em matemática ocorrem treze aparições. Essa exclusão do uso de tais tecnologias compromete violentamente o trabalho com experimentos em ciências com crianças desde o início dos estudos.    
Outro detalhe relativo à base nacional é quanto a sua efetivação. Muitos estados e municípios brasileiros devido as precariedades econômicas e profissionais terão dificuldade de elaborar suas propostas curriculares adequando-as a BNCC. O perigo é que essa situação motive o emprego na integra da base nacional, excluindo a possibilidade de inserir na proposta curricular temas de relevância regional e local. Há de se prever que é consenso da maioria dos profissionais da educação, que o prazo de um ano estabelecido para implantar a proposta e treinar mais de dois milhões de professores é insuficiente. O que pode ocorrer é o mesmo episódio da primeira e segunda etapa da base nacional e das discussões do PNE, restringindo os debates a uma fração de indivíduos, quase todos especialistas e comissionados que integram as secretarias e departamentos de educação de governos municipais e estaduais.   
Quanto ao tempo disponibilizado para a elaboração da Base Curricular Comum, de três a quatro anos, considerado extremamente curto perante a sua complexidade e importância, a Austrália, por exemplo, o processo de construção curricular durou 10 anos. A maior preocupação agora é se realmente nas audiências públicas haverá possibilidades de inserção de novas proposições para no mínimo torná-la um pouco mais progressista. Caso a Base Curricular não avance nas audiências públicas há riscos eminentes da proposta desorganizar a educação brasileira, que mesmo não se defina como projeto ideal de educação, é o que se tem de concreto construído sistematicamente ao longo de décadas.
O texto da base também ressalta competências sociais e emocionais. Esses dois itens são peças chaves imprescindíveis de qualquer processo educacional. No entanto, dificilmente as escolas brasileiras, especialmente as públicas, irão se ater a tais competências no cotidiano escolar. E por que tal pessimismo? Quem conhece o chão das escolas brasileiras e o modo como os atuais currículos foram tecidos, embasados em um modelo de ensino tradicional, tecnicista/funcionalista, priorizando aulas expositivas e provas, as questões sociais e emocionais não terão espaços nos ambientes escolares.
Não adiante disponibilizar milhões reais elaborando planos e bases curriculares nacionais inovadoras, se os locais onde tudo isso será trabalhado, as escolas, estão aos frangalhos, caindo aos pedaços. São poucas as unidades de ensino públicas que oferecem condições mínimas de infraestrutura e pedagógica à aplicação ao que propõem a base curricular e os planos educacionais já sancionados. Não é aqui citado o fator emocional dos professores, forçados a uma jornada de trabalho estressante, semi-escrava, cujos salários recebidos não asseguram o mínimo de instabilidade emocional para o satisfatório exercício da profissão.
Prof. Jairo Cezar             

                         

Nenhum comentário:

Postar um comentário