sexta-feira, 21 de junho de 2024

 

PL 1.904/2024, DO ESTUPRO, ENQUADRA A MULHER QUE ABORTA COMO ASSASSINA

Quando paramos e refletimos sem qualquer ranço ideológico acerca do comportamento de parte expressiva dos parlamentares da Câmara Federal de ter aprovado projeto de lei que criminaliza crianças vítimas de estupros à condição de assassinas por abortarem o feto indesejado após a 22ª semana de gravidez, concordamos de fato o quanto estamos mal representados nessa instância tão relevante da república brasileira.   Lendo e ouvindo o tema relativo ao PL 1904/24 nos canais abertos e sites, me vinha à mente insights de livros, artigos, filmes, dos quais tive contato, discorrendo, na história, as condições de subalternidade das mulheres em relação aos homens.

A própria bíblia cristã, traz passagens referendando tais situações, primeira, a afirmação ter sido a mulher, concebida a partir da costela de um homem; a segunda, a metáfora da serpente no livro dos gêneses, descrevendo a mesma mulher, concebida por uma costela, que foi expulsa do paraíso por ter cometido pecado, que foi ter comido o fruto proibido, uma maçã. As civilizações ocidentais, a Grécia, por exemplo, tão reverenciada como berço da cultura, das artes, da arquitetura, teve a mulher como sujeito de segunda classe. Ouvindo a música Mulheres de Atenas, letra escrita e interpretada por Chico Buarque de Holanda, é possível imaginar o nível de sujeição vivida pelas mulheres gregas.  

Transitando pela história, quando se chega à idade média, o grau de perseguição e violência contra elas assume níveis inimagináveis, o agravante é que por trás dessas insanidades estava à sacrossanta igreja católica, a mesma que instituiu o famigerado Tribunal da Santa Inquisição. Construiu-se a crença de que mulheres inteligentes, empoderadas, criativas, seu corpo estava tomado por forças demoníacas e, portanto, era preciso queimá-la na fogueira para purificar sua alma.

Chegamos à modernidade, porém a mulher ainda se mantinha em uma condição de corpo imaculado, sem pecado, cujos caminhos possíveis a serem galgados eram o casamento, arranjado ainda na tenra idade; o magistério ou a vida monástica nos mosteiros. Raras eram as mulheres que rompiam esse infortúnio “destino”, traçado pelas conveniências do patriarcalismo. Se tentarmos lembrar de mulheres nascidas nos séculos passados que tiveram desenvolturas na filosofia, na matemática, na ciência, bem como entre outras áreas do conhecimento, ficaremos alguns minutos ou até horas querendo encontrar respostas inúteis. Algumas que conseguiram se sobrepor ao mando machista, patriarcal, suas obras literárias, para terem credibilidade, as autoras tiveram que adotar pseudônimo masculino.  

Alguns direitos mais significativos, as mulheres começaram a ter somente a partir do final do século XIX e começo do XX, porém, foram conquistas obtidas mediante brutais enfrentamentos, muita luta e sangue derramado. O oito de março, no entanto, é um desses dias símbolos no calendário mundial, data em que mulheres relembram o triste episódio ocorrido nos Estados Unidos, em 1857, onde dezenas de trabalhadoras em greve foram trancadas no interior de um fábrica, ambas morrendo carbonizada após o proprietário ter ateado fogo.   

 No Brasil, a trajetória de vida das mulheres se tornou mais dura pelo fato de país ter sido o país forjado a partir da ocupação português, claro que sob as ordens da vossa majestade, o rei, e as bênçãos da santíssima igreja católica romana.    Convém destacar que o regime patriarcal, machista, moralista, escravocrata, aqui institucionalizado há mais de quinhentos anos, tem os seus tentáculos enraizados em todas as instâncias de poder, mais incisivamente nas instâncias do legislativo. De fato não se pode creditar violação contra o corpo das mulheres apenas no Brasil.

No oriente médio, países sob a égide do islamismo mais extremado, as mulheres são acometidas por regras onde reduz ao máximo seu papel de cidadã. Há casos que a violação de direitos alcança níveis assustadores. O Afeganistão, por exemplo, é um desses países que mais viola direitos às mulheres. Claro que existem outros que violam, porém, o regime exercido pelo Talibã, o mesmo permite que as mulheres estudem até o sexto ano. O argumento é que mulheres inteligentes podem desvirtuar os textos do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão. 

Aqui no Brasil embora não exista um Talibã, regime que busca interpretar o alcorão a partir de convicções favoráveis a uma casta de homens bem nascidos, existe um congresso nacional, fatiado em bancadas, sendo uma das mais influentes a bancada da bíblia, constituída por parlamentares de vertentes cristãs evangélicas e católicas que tentam pautar demandas que evidenciem preceitos morais de costumes.  Questões de gênero, como o casamento e o corpo da mulher, sempre ocupam o centro dos debates desse grupo. São propostas afinadas ao gosto de parcela expressiva da sociedade brasileira cujas vidas são guiadas a partir das escrituras sagradas.  

Dentre os temas que essa turma vem tentando emplacar no congresso, uma delas é a criminalização das mulheres que cometem aborto, pois acreditam terem competências suficientes para decidir como as mulheres devem usar seu corpo. O fato é que já existem legislações que dão direito as mulheres de abortarem quando a gravidez ocorre por meio de ato violento, o estupro, por exemplo, ou quando o feto apresente deformidade cerebral, como a anencefalia, que pode lhe resultar a morte ainda no útero ou após o nascimento.

Mas a questão do aborto teve seus avanços e atropelos no decorrer da história brasileira. As primeiras legislações sobre o tema foram compilações trazidas pelos colonizadores portugueses, porem, discretamente, trazia alguma nuance sobre esse tema aborto. A primeira vez que o aborto aparece de fato na legislação brasileira foi no regime imperial brasileiro, atribuindo crime a quem a praticasse, portanto, os códigos penais da época não consideraram criminosas as mulheres que abortassem. O fato é que as mulheres que abortassem nessa época, dificilmente eram punidas, pois o ato era interpretado como uma desonra não para o corpo da mulher estuprada e sim para a família patriarcal.

Com a Proclamação da República, a constituição de 1890 traz os primeiros ordenamentos tratando desse assunto, não mais como uma questão de desonra familiar, mas de saúde pública. A ciência e a medicina já alcançavam estágios de evolução, fato que assegura debates menos rançosos, menos moralistas nas instâncias do executivo e legislativo nacional. De fato foi na primeira reforma do código penal brasileiro em 1940 que o paradigma de honra passou a perder força definitiva no campo jurídico. O tempo passou e paulatinamente as mulheres adquiriram certos direitos, dentre elas o de administrar o seu próprio corpo, de ter ou não ter filhos e de interromper a gravidez quando assim o desejassem.

Porém, no Brasil alguns desses avanços somente se deram a partir da constituição de 1988, garantindo às mulheres, direitos iguais a dos homens em todos os aspectos da vida social. Entretanto, no quesito concepção e sua interrupção ainda permanecia um hiato institucional. Claro que mínimo foram os avanços nesse aspecto, primeiro pelo fato de historicamente o congresso nacional estar constituído majoritariamente por homens, tomados por um viés machista de tradição patriarcal. Algumas conquistas significativas alcançadas pelas mulheres quanto às interrupções das gestações somente se deram a partir da atuação do STF.

Nas ultimas eleições, o congresso nacional, as assembleias legislativas estaduais e municipais foram tomadas por levas cada vez maiores de parlamentares conservadores, trazendo a tona pautas de cunho moralistas, como a criminalização de relacionamentos não heterossexual e o aborto sob a prática de estupro.  A gota d’água dos ataques aos direitos das mulheres conquistados a ferro e fogo e resguardadas pela atual constituição foi a aprovação no parlamento do PL 1904/2024 que define como crime de homicídio simples mulheres/crianças que cometem aborto a partir da 22 semana de gestação. A proposta pune quem aborta com penas de até 20 anos de prisão e para o estuprador, pena que chega até 15 anos de prisão.  

A proposta, no entanto, mobilizou parte da sociedade que viu na PL uma afronta a dignidade feminina. Outra alegação contrária a chamada PL do estupro é que em 2022 ocorreram 74.930 estupros, sendo que 88,7% foram de mulheres e 60% com idade inferior a 13 anos. É de conhecimento de todos principalmente dos parlamentares autores da proposta que as vitimas de estupros, expressiva maioria foi cometida por membros da própria família, o pai, tio, etc.

Nesse sentido, por constrangimento, essas pessoas, meninas, muitas ainda crianças, não denunciam ou só revelam a gravidez muito tarde. Penso que as manifestações contra tal PL que se espalharam por todo o território nacional fará com que o projeto não siga a frente e seja arquivado.  Se de fato o projeto for abortado, mostrará que a força das mulheres, de toda a sociedade foi decisiva para impedir tamanha violência articulada por políticos rançosos alojados nas estruturas de poder do congresso nacional.

Prof. Jairo Cesa

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