PL
1.904/2024, DO ESTUPRO, ENQUADRA A MULHER QUE ABORTA COMO ASSASSINA
Quando
paramos e refletimos sem qualquer ranço ideológico acerca do comportamento de
parte expressiva dos parlamentares da Câmara Federal de ter aprovado projeto de
lei que criminaliza crianças vítimas de estupros à condição de assassinas por
abortarem o feto indesejado após a 22ª semana de gravidez, concordamos de fato
o quanto estamos mal representados nessa instância tão relevante da república
brasileira. Lendo e ouvindo o tema relativo ao PL 1904/24 nos
canais abertos e sites, me vinha à mente insights de livros, artigos, filmes, dos
quais tive contato, discorrendo, na história, as condições de subalternidade das
mulheres em relação aos homens.
A
própria bíblia cristã, traz passagens referendando tais situações, primeira, a
afirmação ter sido a mulher, concebida a partir da costela de um homem; a
segunda, a metáfora da serpente no livro dos gêneses, descrevendo a mesma mulher, concebida
por uma costela, que foi expulsa do paraíso por ter cometido pecado, que
foi ter comido o fruto proibido, uma maçã. As civilizações ocidentais, a Grécia,
por exemplo, tão reverenciada como berço da cultura, das artes, da arquitetura,
teve a mulher como sujeito de segunda classe. Ouvindo a música Mulheres de
Atenas, letra escrita e interpretada por Chico Buarque de Holanda, é possível
imaginar o nível de sujeição vivida pelas mulheres gregas.
Transitando
pela história, quando se chega à idade média, o grau de perseguição e violência
contra elas assume níveis inimagináveis, o agravante é que por trás dessas
insanidades estava à sacrossanta igreja católica, a mesma que instituiu o
famigerado Tribunal da Santa Inquisição. Construiu-se a crença de que mulheres
inteligentes, empoderadas, criativas, seu corpo estava tomado por forças
demoníacas e, portanto, era preciso queimá-la na fogueira para purificar sua
alma.
Chegamos
à modernidade, porém a mulher ainda se mantinha em uma condição de corpo
imaculado, sem pecado, cujos caminhos possíveis a serem galgados eram o
casamento, arranjado ainda na tenra idade; o magistério ou a vida monástica nos
mosteiros. Raras eram as mulheres que rompiam esse infortúnio “destino”, traçado
pelas conveniências do patriarcalismo. Se tentarmos lembrar de mulheres nascidas
nos séculos passados que tiveram desenvolturas na filosofia, na matemática, na
ciência, bem como entre outras áreas do conhecimento, ficaremos alguns minutos
ou até horas querendo encontrar respostas inúteis. Algumas que conseguiram se
sobrepor ao mando machista, patriarcal, suas obras literárias, para terem
credibilidade, as autoras tiveram que adotar pseudônimo masculino.
Alguns
direitos mais significativos, as mulheres começaram a ter somente a partir do
final do século XIX e começo do XX, porém, foram conquistas obtidas mediante brutais
enfrentamentos, muita luta e sangue derramado. O oito de março, no entanto, é
um desses dias símbolos no calendário mundial, data em que mulheres relembram o
triste episódio ocorrido nos Estados Unidos, em 1857, onde dezenas de
trabalhadoras em greve foram trancadas no interior de um fábrica, ambas morrendo
carbonizada após o proprietário ter ateado fogo.
No Brasil, a trajetória de vida das mulheres
se tornou mais dura pelo fato de país ter sido o país forjado a partir da
ocupação português, claro que sob as ordens da vossa majestade, o rei, e as bênçãos
da santíssima igreja católica romana. Convém
destacar que o regime patriarcal, machista, moralista, escravocrata, aqui
institucionalizado há mais de quinhentos anos, tem os seus tentáculos
enraizados em todas as instâncias de poder, mais incisivamente nas instâncias do
legislativo. De fato não se pode creditar violação contra o corpo das mulheres
apenas no Brasil.
No oriente médio, países sob a égide do islamismo mais extremado, as mulheres são acometidas por regras onde reduz ao máximo seu papel de cidadã. Há casos que a violação de direitos alcança níveis assustadores. O Afeganistão, por exemplo, é um desses países que mais viola direitos às mulheres. Claro que existem outros que violam, porém, o regime exercido pelo Talibã, o mesmo permite que as mulheres estudem até o sexto ano. O argumento é que mulheres inteligentes podem desvirtuar os textos do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão.
Aqui
no Brasil embora não exista um Talibã, regime que busca interpretar o alcorão a
partir de convicções favoráveis a uma casta de homens bem nascidos, existe um congresso
nacional, fatiado em bancadas, sendo uma das mais influentes a bancada da bíblia,
constituída por parlamentares de vertentes cristãs evangélicas e católicas que tentam
pautar demandas que evidenciem preceitos morais de costumes. Questões de gênero, como o casamento e o corpo
da mulher, sempre ocupam o centro dos debates desse grupo. São propostas afinadas
ao gosto de parcela expressiva da sociedade brasileira cujas vidas são guiadas a
partir das escrituras sagradas.
Dentre
os temas que essa turma vem tentando emplacar no congresso, uma delas é a
criminalização das mulheres que cometem aborto, pois acreditam terem
competências suficientes para decidir como as mulheres devem usar seu corpo. O fato
é que já existem legislações que dão direito as mulheres de abortarem quando a
gravidez ocorre por meio de ato violento, o estupro, por exemplo, ou quando o
feto apresente deformidade cerebral, como a anencefalia, que pode lhe resultar a
morte ainda no útero ou após o nascimento.
Mas
a questão do aborto teve seus avanços e atropelos no decorrer da história
brasileira. As primeiras legislações sobre o tema foram compilações trazidas
pelos colonizadores portugueses, porem, discretamente, trazia alguma nuance
sobre esse tema aborto. A primeira vez que o aborto aparece de fato na
legislação brasileira foi no regime imperial brasileiro, atribuindo crime a
quem a praticasse, portanto, os códigos penais da época não consideraram
criminosas as mulheres que abortassem. O fato é que as mulheres que abortassem
nessa época, dificilmente eram punidas, pois o ato era interpretado como uma
desonra não para o corpo da mulher estuprada e sim para a família patriarcal.
Com
a Proclamação da República, a constituição de 1890 traz os primeiros
ordenamentos tratando desse assunto, não mais como uma questão de desonra
familiar, mas de saúde pública. A ciência e a medicina já alcançavam estágios de
evolução, fato que assegura debates menos rançosos, menos moralistas nas instâncias
do executivo e legislativo nacional. De fato foi na primeira reforma do código penal
brasileiro em 1940 que o paradigma de honra passou a perder força definitiva no
campo jurídico. O tempo passou e paulatinamente as mulheres adquiriram certos direitos,
dentre elas o de administrar o seu próprio corpo, de ter ou não ter filhos e de
interromper a gravidez quando assim o desejassem.
Porém,
no Brasil alguns desses avanços somente se deram a partir da constituição de
1988, garantindo às mulheres, direitos iguais a dos homens em todos os aspectos
da vida social. Entretanto, no quesito concepção e sua interrupção ainda
permanecia um hiato institucional. Claro que mínimo foram os avanços nesse
aspecto, primeiro pelo fato de historicamente o congresso nacional estar
constituído majoritariamente por homens, tomados por um viés machista de
tradição patriarcal. Algumas conquistas significativas alcançadas pelas
mulheres quanto às interrupções das gestações somente se deram a partir da
atuação do STF.
Nas
ultimas eleições, o congresso nacional, as assembleias legislativas estaduais e
municipais foram tomadas por levas cada vez maiores de parlamentares
conservadores, trazendo a tona pautas de cunho moralistas, como a criminalização
de relacionamentos não heterossexual e o aborto sob a prática de estupro. A gota d’água dos ataques aos direitos das
mulheres conquistados a ferro e fogo e resguardadas pela atual constituição foi
a aprovação no parlamento do PL 1904/2024 que define como crime de homicídio simples
mulheres/crianças que cometem aborto a partir da 22 semana de gestação. A proposta
pune quem aborta com penas de até 20 anos de prisão e para o estuprador, pena
que chega até 15 anos de prisão.
A
proposta, no entanto, mobilizou parte da sociedade que viu na PL uma afronta a
dignidade feminina. Outra alegação contrária a chamada PL do estupro é que em
2022 ocorreram 74.930 estupros, sendo que 88,7% foram de mulheres e 60% com
idade inferior a 13 anos. É de conhecimento de todos principalmente dos
parlamentares autores da proposta que as vitimas de estupros, expressiva
maioria foi cometida por membros da própria família, o pai, tio, etc.
Nesse
sentido, por constrangimento, essas pessoas, meninas, muitas ainda crianças,
não denunciam ou só revelam a gravidez muito tarde. Penso que as manifestações
contra tal PL que se espalharam por todo o território nacional fará com que o
projeto não siga a frente e seja arquivado. Se de fato o projeto for abortado, mostrará
que a força das mulheres, de toda a sociedade foi decisiva para impedir tamanha
violência articulada por políticos rançosos alojados nas estruturas de poder do
congresso nacional.
Prof. Jairo Cesa
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