quinta-feira, 24 de outubro de 2024

 

O PL 4546/21 – PROJETO DE LEI QUE PROPÕE A ENTREGA DA GESTÃO HÍDRICA E DO SANEAMENTO BASICO ÀS GRANDES CORPORAÇÕES

 

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Década de 1970 em diante o sistema de produção capitalista passou por transformações relevantes no seu escopo de infraestrutura e gestão política. As novas tecnologias em curso fez alterar relações de produção, reduzindo paulatinamente a força de trabalho das fábricas ainda inseridas no modelo fordista de produção em larga escala. Cabe lembrar que até esse momento o papel do Estado foi decisivo na adoção de políticas de interesse social, estimulado, é claro, pela crise de 1930 e a Guerra Fria, que se instaurou a partir do final da Segunda Guerra Mundial.

A forte difusão de ideias socialistas no mundo do trabalho pressionou os governos ocidentais a recuarem suas políticas de exploração da força de trabalho, que assegurava a mais valia do trabalho, o lucro. O Estado que durante os períodos de crises cíclicas do capitalismo se transformara em alavanca na recuperação das economias estraçalhadas, nos anos 1970 em diante esse mesmo Estado se apresenta como um empecilho, obstáculo ao desenvolvimento, portanto, devendo se estreitado seu poder de atuação.

O fim do socialismo soviético a partir da queda do muro de Berlim em 1989 deu mais munição às nações capitalistas à executarem duras medidas fiscais que afetaram diretamente as economias dos países periféricos. Teóricos como Milton Friedman, entre outros adeptos a desregulação da economia, foram decisivos na construção de ideias em defesa do livre mercado, ou seja, a redução tácita do papel do Estado na condução da economia. De fato foi uma reação ao keynesianismo, do pós crise de 1929, que proporcionou maior intervenção do estado sobre a gestão da produção.

Era necessário, portanto, impor regras mais rígidas sobre as estruturas fiscais das economias dependentes como garantia ao não calote das dívidas junto aos países credores. Organismos financeiros como o FMI e o Banco Mundial passaram a exercer forte pressão sobre as políticas econômicas dos países da América Latina, África, Ásia, etc.  A crise econômica que se instaurou na década de 1980, com o risco cada vez maior de calote ao pagamento dos juros das dívidas externas, forçou os credores a adoção de pacotes de medidas fiscais aos países emergentes. Esse plano foi batizado de Consenso de Washington.

Corte de gastos públicos, privatizações de empresas estatais e um amplo conjunto de reformas que atingiam em cheio direitos conquistados pelos trabalhadores, foi, portanto, o receituário apresentado pelos países alinhados ao capitalismo central. Quanto às políticas neoliberais é importante ressaltar que tal receituário teve como uns dos protagonistas o Chile de Pinochet e a Inglaterra de Margaret Thatcher, ambos reformaram suas economias por meio de profundo ajuste estrutural.

No final da década de 1980, com a eleição do Presidente Fernando Collor de Mello, o Brasil dá inicio a sua caminhada de reformas estruturantes, levando a cabo o receituário dos seus idealizadores e chancelado pelo Banco Mundial e FMI. Envolvido em uma séria de denúncias de irregularidades na condução do seu governo, Collor sofre impeachment, assumindo por sua vez o vice Itamar Franco, que dá prosseguimento aos projetos de enxugamento do Estado. Foi, todavia, no governo de Fernando Henrique Cardoso que os programas de ajustes da economia se concretizaram a contendo. É claro que para agilizar todo esse arcabouço de medidas antissociais foi necessário eleger um congresso afinado ao propósito desregulador.

Sistemas bancários, companhias siderúrgicas, de mineração, telefonia, rodovias, aeroportos, ferrovias, hidrelétricas, como um tabuleiro de dominó, foram aos poucos caindo no colo dos grandes investidores internacionais, muitas dessas empresas entregues mediante o pagando de valores irrisórios. Um exemplo foi a Vale do Rio Doce, uma das maiores companhias estatais de mineração do mundo vendida para grandes corporações por uma bagatela aproximada de cinco bilhões de reais. Além de proporcionar ganhos bilionários aos seus acionistas o que mais os brasileiros ganham são passivos ambientais. O rompimento da barragem do Córrego do Feijão, na região de Mariana, Minas Gerais, foi um desses passivos, causando mortes e prejuízos catastróficos a toda a biótica da bacia da bacia do Rio Doce.

A eleição de Lula para presidente da república em 2000, pelo partido dos trabalhadores, representou um momento impar da historia do Brasil, pois pela primeira vez uma pessoa vinda do povo conquistou o posto mais importante da política brasileira. As expectativas agora eram de que houvesse uma reviravolta no processo decisório brasileiro, onde daria prioridade às demandas das quais estavam inseridas no estatuto do partido, visto como amplamente social. De fato foram cumpridas algumas dessas demandas, porém, no radar ainda aparecia o famigerado fantasma do neoliberalismo. Lula um, Lula 2, Dilma 1 e Dilma dois, ambos transitaram pelas dependências do palácio do planalto por quase quinze anos, no entanto, não foi suficiente para tirar o Brasil da triste lista de um dos mais desiguais e atrasados do mundo.

O impeachment que derrubou Dilma em 2016 abriu caminho para que as forças conservadoras do capitalismo dependente reassumissem as rédeas do comando nacional.  Com o golpe contra Dilma, assume a presidência o vice Michel Temer, principal porta voz das elites econômicas nacionais e internacionais, sedentas para fincar as garras nas riquezas do povo brasileiro. Reformas e mais reformas foi a tônica assumida por Temer, agradando, é claro, o agronegócio, grandes investidores e o capital especulativo, ambos cada vez mais poderosos e com forte representação no congresso nacional.

Se já houve retrocessos durante o pouco tempo que Temer permaneceu no posto de presidente da republica, o quadro social e econômico se agravou ainda mais com o pleito que elegeu o ultradireitista Jair Bolsonaro. Quatro anos de retrocessos em vários campos, na saúde, educação, meio ambiente, entre outros. Tudo isso agravado pela pandemia do COVID 19, cuja gestão do governo federal foi um verdadeiro desastre. A eleição de um congresso majoritariamente ultraliberal em 2019 garantiu sustentação ao governo Bolsonaro na execução de suas políticas de fragilização ainda mais do Estado Brasileiro.

Era preciso encolher mais ainda o Estado, para isso adotou a estratégia de responsabilizar os servidores públicos à pouca eficiência dos serviços prestados. Porém esse discurso de vitimização não foi exclusividade somente do governo Bolsonaro, os anteriores, a exemplo de FHC, adotaram com extraordinária propriedade.  Isso aconteceu com as privatizações das empresas de telefonia, mineração, rodovias, ferrovias, bancos, etc. A própria Petrobras não ficou isenta dessa pauta privatista, além, é claro, do sistema elétrico que recebeu e continua recebendo forte assédio dos fundos de capitais internacionais. Além do petróleo e mineração, o segmento hídrico e do saneamento básico são filões que estão na mira do grande capital.

Durante o governo Bolsonaro, o Congresso Nacional, dominado por bancadas entreguistas, apresentaram o PL 4546/21 também conhecido como PL do Novo Marco Hídrico, no qual busca instituir a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica, que regulamenta a prestação e exploração de serviços hídricos no Brasil. Resumindo, é mais um daqueles projetos de leis elaborados por parlamentares cujas campanhas foram financiadas por empresas interessadas na desregulação das políticas que regem os recursos hídricos e o saneamento básico.  

Acontece que o processo de privatização dos sistemas hídricos e saneamento básico não é algo recente no mundo. Vários países já realizaram, porém, tiveram que romper os contratos com os governos devido ao não cumprimento dos mesmos.  No momento que uma empresa particular adquire uma estatal ou autarquia de coleta, tratamento e fornecimento de água, o que está inserido em seu portfólio não é nada mais que o lucro, ou seja, água como produto. É claro que os investimentos dessas empresas com infraestrutura se concentrarão nos municípios, bairros com garantias de retorno financeiro. O caso do apagão na cidade de São Paulo há poucos dias e que manteve às escuras milhões de pessoas por alguns dias é um bom exemplo de ineficiência dos serviços prestados pela empresa que comprou os direitos para a prestação desses serviços.

Outro detalhe importante, em 2021 o governo federal sancionou a lei n. 14026/21 que definiu o novo marco legal do saneamento, promovendo alterações em dispositivos presentes no estatuto das cidades. Com a aprovação dessa lei o Brasil passa a ter uma política nacional de infraestrutura hídrica. O importante aqui esclarecer é que essa lei não houve a participação da sociedade na construção e discussão. Em síntese o que se terá mesmo é o desmonte de todo o arcabouço legal já criado que assegura ao ente público, estados e municípios, a governança sobre os serviços de água e saneamento básico. Com o PL 4546/21 todo esse conjunto de normatizações são desfeitas para permitir que empresas, até mesmo as ditas públicas, tenham que participar também das licitações dos serviços de água e saneamento a serem oferecidos. Com o PL, a água e saneamento serão vistos como bens de troca e não de uso como reza a constituição brasileira e as legislações em vigor.

De fato o setor que será mais impactado com o PL 4546/21 é o dos Comitês das Bacias Hidrográficas, criadas com o intuito de estender a participação da sociedade civil, segmento econômico e o poder público na gestão dos recursos hídricos, ou seja, todos os cursos d’água existentes. Essa nova governança participativa vem seguindo o que determina a própria constituição brasileira, que dele a sociedade poderes para intercederem sobre tais políticas. Com o PL, os comitês deixariam de existir, outorgando aos novos gestores, nesse caso, os governos ou donos das outorgas, poderes de decisão, que será verticalizada, ou seja, de cima para baixo.

Prof. Jairo Cesa

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