SÉCULOS
DE SERVIDÃO À LUTA PELO RECONHECIMENTO OFICIAL DO QUILOMBO MARIA ROSALINA EM
ARARAGUÁ
A
invasão portuguesa das terras dos tupi-guarani, tapuias, aruaques e caraíbas,
no começo do século XVI, repercutiu decisivamente na construção do território
brasileiro, considerado um dos mais desiguais e atrasados do mundo. Desde a sua
ocupação, a coroa portuguesa enviou para cá a ralé da sociedade lusitana,
prisioneiros condenados por inúmeros crimes cometidos na metrópole. Claro que a
coroa portuguesa possuía outros interesses aqui além de depósitos de renegados,
vindo de fato a ocupá-la oficialmente trinta, quarenta anos após a chegada de
Cabral em 1500.
Explorar riquezas como o pau brasil foi o
primeiro plano pensado pela metrópole, para a sua extração aproveitaram a
abundante força de trabalho indígena disponível, usando-as sem qualquer remuneração.
A substituição do trabalho indígena pelo africano se deu num cenário de
transformações econômicas protagonizado pela Inglaterra que passou a liderar o
comercio de escravos entre as suas colônias e das demais metrópoles.
O
Brasil durante quase três séculos recebeu milhares de escravos africanos,
muitos dos quais arrancados de suas terras e trazidos em porões de navios sem o
mínimo de higiene e conforto. Aqui eram vendidos em leilões públicos e
encaminhados às fazendas paro o cultivo de cana e a fabricação do açúcar. A
atividade da mineração na região das Minas Gerais recebeu também forte aporte
de mão de obra escrava africana. O cultivo e o beneficiamento do café nas
grandes fazendas de São Paulo e Rio de Janeiro durante a época do império fez
surgir uma nova elite política que foi responsável pela transição da monarquia
para a república.
A
escravidão nas colônias britânicas, francesas, etc, já demonstrava não ser um
bom negócio para a burguesia industrial em ascensão. Era necessário criar
legislações que dificultassem ao máximo o comércio de escravos nas colônias. Em
vez de escravos, as colônias passaram a ser vistas como um mercado vantajoso
para as manufaturas de uma indústria em franco crescimento. No Brasil, inúmeras
foram as leis criadas visando impedir o comércio de escravos, claro que
impulsionado pela burguesia industrial inglesa. Oficialmente o fim da
escravidão no Brasil ocorreu em 13 de maio de 1888 por meio da Lei Áurea
assinada pela princesa Isabel. Essa lei não assegurou qualquer direito aos
ex-escravos, saindo da condição de cativos paro um novo regime de trabalho,
agora assalariado.
Na eminência de que o escravismo já estava em decadência e bem próximo do fim, o regime monárquico passa a aprovar medidas que assegurasse o direito às terras às elites brancas, inviabilizando desse modo o acesso do escravo liberto à terra que não fosse por meio de compra somente. A Lei de Terras sancionada em 1850 muda o regime de aquisição e propriedade, sendo agora por meio de compra e venda, ou seja, todos que estivessem ocupando espaços sem escrituras seriam passivos de expulsão pelos novos proprietários. Essa medida gerou inúmeros conflitos violentos principalmente no sul do Brasil entre o século XIX a partir da chegada de levas de imigrantes europeus.
O
enfrentamento aconteceu tanto contra indígenas, como também contra posseiros
luso brasileiros, denominados caboclos. O conflito do contestado, no oeste de Santa
Catarina, é um bom exemplo dessa ação velada de extermínio patrocinada pelo
governo federal contra os povos tradicionais. Foram atitudes como essas que fez
o Brasil se tornar uma das nações mais violentas e desiguais do planeta. O
processo de extermínio, contra negros, indígenas, permanece latente, porém as
elites tentam ocultá-las emitindo opiniões que revelam o Brasil como sendo uma
democracia racial, que de fato não existe.
Tanto
em relação aos povos originários, como também aos africanos escravizados, é
incorreto afirmar que ambos foram submetidos à escravidão sem qualquer
resistência. Um dos exemplos da resistência dos cativos africanos foi o
episódio que deu origem ao Quilombo dos Palmares, na região da Serra da Barriga,
estado de Alagoas. Milhares de negros fugidos das fazendas, entre outros
desertores cativos, lá se refugiaram adotando o modelo de organização social coletiva.
Grandes
lideranças desse quilombo foram Ganga Zumba e Zumbi, esse ultimo morto pelas
forças do governo brasileiro a mando dos coronéis amedrontados pelo risco de rebeliões
generalizadas de escravos nas fazendas do nordeste. Graças a forte mobilização
das comunidades negras em todo o Brasil, o herói Zumbi dos Palmares tem o dia
20 de novembro como data alusiva à consciência negra no território brasileiro. O estado de São Paulo decretou essa data como
feriado estadual, como outros estados.
Em
2003 o presidente Lula sancionou a lei n.10.639/03 que obriga o ensino da
historia da cultura afro-brasileira em todas as escolas de ensino fundamental e
médio no Brasil. Cinco anos mais tarde, no segundo mandato do presidente Lula,
foi sancionada nova lei a de n. 11.645/08, que também torna obrigatório o
ensino de história e cultura indígena e afro-brasileira, mas não nos cursos de
formação de professores do ensino superior.
Entretanto,
embora as escolas tenham recebido um turbilhão de materiais didáticos, como
livros específicos à cultura indígena e afro, grande parte desse material
continua quase esquecido nas prateleiras das bibliotecas sem qualquer
utilidade. Lembro de ter trabalhado um período na biblioteca da EEBA de
Araranguá onde havia uma estante repleta com bibliografias relativas à cultura
afro-brasileira, porém, eram raros os professores e estudantes que tiravam um
tempinho para consultá-los.
Acredito
que foi e deve ser essa a realidade de centenas de escolas brasileiras. A culpa
de fato não pode ser alocada somente aos docentes, tomados por um currículo denso,
que devem ser executados por imposições circunstanciais, como do próprio ENEM. Por
outro lado esse mesmo currículo mostra-se esvaziado em temas relevantes como
cultura africana e povos originários. Parte expressiva dos profissionais, de
história, em específico, que exercem as docências nas escolas brasileiras, tem
o mínimo do mínimo de compreensão sobre cultura afro-brasileira, menos ainda
sobre cultura africana.
Isso
certamente deve ser um dos motivos de termos uma sociedade ainda tão
preconceituosa, tão desinformada, quando o assunto é cultura indígena e
africana. O preconceito contra indígenas e africanos continua enraizado no imaginário
social, basta observar os estereótipos compartilhado no cotidiano das pessoas,
as piadas, a musica, as roupas e no próprio linguajar.
Tanto
os indígenas quanto os negros ainda hoje lutam para serem reconhecidos como
grupos sociais de direitos, como reza a constituição de 1988. Entretanto, sofrem
as agruras diárias de forças políticas extremistas que tentam apagar suas
histórias, até mesmo por meio de um processo de genocídio institucionalizado. As
ações da polícia nos morros do Rio de Janeiro, Salvador, entre outras cidades
importantes como São Paulo, fazem parte de sistema de apartheid social.
O
processo de segregação não acontece exclusivamente nos grandes centros, nas
médias e pequenas cidades, comunidades negras também são passivas de limpeza étnica.
A frágil presença do Estado, com serviços de infraestrutura, saneamento básico,
educação, cultura, esporte, saúde, etc, vem tornado esses apartheids alvos
prediletos de grupos organizados vinculados às milícias e ao tráfico de drogas.
Quase que diariamente a grande imprensa vem noticiando conflitos entre facções disputando
o controle do trafico principalmente no Rio de Janeiro. Conflitos entre
facções, algo que era inimaginável em pequenas cidades brasileiras, vem se
tornando rotina atualmente.
Mais
uma vez reitero que essas ações se dão exatamente em locais onde a sociedade e
o estado historicamente insistiram e insistem em virar as costas. Tem também
por trás dessa dita patologia social, uma raiz histórica, ou seja, o processo
econômico baseado na força de trabalho escravo. A obra do professor historiador
Antônio Cesar Spricigo, Sujeitos Esquecidos Sujeitos Lembrados explica bem todo
esse conturbado processo econômico forjado a partir da mão de obra escrava. Do mesmo
modo como ocorreu em muitas regiões do Brasil, com a abolição, o escravo
liberto foi jogado à sorte das circunstâncias. Na região sul de Santa Catarina a
trajetória desses libertos não foi diferente, sem terra, sem direito algum,
tendo agora que trabalhar para ganhar alguns trocados para não morrer de fome.
A participação da população preta no desenvolvimento da região sul de Santa Catarina foi decisiva, tanto na atividade carbonífera na AMREC, quanto no cultivo e beneficiamento da mandioca, cana-de-açúcar, etc, na AMESC. Entretanto com o passar do tempo as elites que se forjaram do regime escravista insistem em manter invisíveis os sujeitos remanescentes do escravismo. Para essas elites advindas de famílias tradicionais, inconscientemente há uma divida social à ser paga aos remanescentes de escravos e povos originários. Mantê-los distantes ou Isolá-los em guetos são estratégias que redundaram em problemas que repercutem no cotidiano das próprias elites que vivem no entorno desses espaços.
A
comunidade quilombola Maria Rosalina pejorativamente conhecida como “Buraco Quente”
lá vivem famílias remanescentes de ex-escravos libertos, entre outras pessoas,
que diante das dificuldades tentam levar uma vida normal. O incrível é que
pouquíssima gente sabia que a respectiva comunidade é um quilombo, território oficializado
por meio de decreto federal n. 4887/2003, onde identifica e delimita terras
quilombolas. No extremo sul do estado já existe o quilombo São Roque, no
município de Praia Grande. O que mais chama atenção é que o quilombo de
Araranguá é um dos poucos no Brasil situado em área urbana.
Portanto
aqui está o problema visto pelo olhar daqueles que se instalaram no entorno
dessa comunidade que já estava ali há mais de um século. Diante de todos os problemas
vividos principalmente o preconceito e o distanciamento do poder público, o
quilombo Maria Rosalina sofre os efeitos da violência, pois o trafico conseguiu
capturar algumas pessoas do local e de outros pontos da cidade, jovens em
especial, para fazer girar a roda do vício.
Assustados
com o aumento da violência e a frequente intervenção da polícia no local, isso fez
aumentar ainda mais a rejeição da população para com a comunidade, até mesmo
elevando o senso comum de que lá só vivem traficantes e que é um lugar
perigoso. Frente a essa visão equivocada a sociedade branca araranguaense por
meio de suas entidades representativas se reuniu com objetivo de buscar soluções
ao “buraco quente”, como é erroneamente conhecida. A proposta pensada seria a
remoção da população do local? Claro que isso somente transferiria o problema
de um lugar para o outro, não é mesmo? Essa reunião causou enorme desconforto
aos moradores do quilombo, pois se sentiram ainda mais excluídos, injustiçados,
por não terem sido convidados para o encontro.
Diante
do ocorrido, moradores e entidades da sociedade civil organizada foram
entrevistados pelo canal POST TV de Araranguá, onde puderam esclarecer com
detalhes o que é exatamente a comunidade quilombola Maria Rosalina, sua
caminhada histórica, as dificuldades e os desafios a serem enfrentados. O programa
foi dividido em dois blocos, o primeiro, as entrevistadas foram Luciana Mina, Coordenadora
do CEJA - Centro de Educação de Jovens e Adultos quilombola e Dona Custódia
Anacleto, Presidente da comunidade Maria Rosalina.
Luciana
Mina, com seu farto conhecimento e carisma, desconstruiu toda uma visão erronia
sedimentada sobre a comunidade Maria Rosalina, que constituída por dezenas de famílias,
na sua maioria descendente direto de escravos libertos do Grande Araranguá. A
comunidade é considerada centenária cujo terreno foi doado por um cidadão
araranguaense, o senhor Max, ressaltou Luciana. Desde a sua constituição a comunidade vem
passando por enormes dificuldades. Todas as famílias, muitas das quais pobres,
que para sobreviver executavam funções muitas vezes desprestigiadas pelos
demais munícipes como trabalhos domésticos, engraxates, ajudantes de
caminhoneiros, entre outros.
Envoltos
em carências para subsistir, o problema é agravado com o abandono do poder
público, que literalmente virou as costas em garantir as mínimas condições de
infraestrutura básica, principalmente saneamento básico. O reconhecimento
federal, Fundação Palmares, do quilombo Maria Rosalina, é visto como um divisor
de água na vida dessas famílias. Relatou Luciana dos vários projetos que estão em
andamento na comunidade, todos articulados na reconstrução da identidade cultural
do povo local, da sua ancestralidade, dos rituais, etc, como ferramentas ao
fortalecimento do sentimento de pertencimento e empoderamento.
Ozair
da Silva, popular Banha, que presta assessoria jurídica à Associação Maria
Rosalina, acompanhado por Jorge Roberto Mina, que é membro da mesma associação,
foram também entrevistados pela POST TV, onde fizeram importantes revelações
acerca daquele espaço repleto de preconceitos por parte da sociedade. Relatou
Banha que onde o poder público não chega qualquer comunidade fica desprotegida,
que é o caso explícito da Maria Rosalina. Disse também que ficou surpreso, que
foi o mesmo sentimento dos demais membros da comunidade, quando souberam, pela
imprensa, que integrantes de entidades e populares estiveram reunidos para discutir
a questão da comunidade Maria Rosalina sem a presença de integrante da própria associação.
Que uma das propostas elencadas foi sim a remoção das famílias do local para
outro espaço, claro que longe do centro da cidade.
O
prefeito de Araranguá, relatou Banha, que já havia sido certificado da Certidão
de Autodefinição do quilombo Maria Rosalina, que o mesmo já está registrado no
Diário Oficial do Estado. O próprio INCRA já iniciou processo de certificação
da terra. Com todas as tratativas em curso, tanto a comunidade quanto o próprio
município podem receber recursos federais para projetos sociais envolvendo toda
a sociedade araranguaense. O que falta
mesmo nessa comunidade quilombola é a presença do poder público, em
infraestrutura, atividades culturais, etc. Se existe algum projeto acontecendo
na comunidade se deve ao apoio de instituições como o SESC, UFSC, entre outros
grupos organizados da sociedade civil, ressaltou Banha.
Esclareceu
Banha que em 2023 a Maria Rosalina ficou por quase uma semana sem energia
elétrica, que houve uma passeata até a prefeitura para reivindicar soluções ao
apagão. Que na ocasião da falta de
energia nenhum membro das entidades que estavam presente no encontro do dia 24
de outubro para discutir a comunidade, moveu uma palha para ajudá-los. A pergunta
que Banha fez foi o seguinte, quantos cidadãos araranguaenses sabem dos
projetos que estão sendo desenvolvidos na comunidade quilombola? Quantos sabem que o CEJA promove ensino
fundamental e médio para adolescentes e adultos, que esse ano, 2024, haverá a
primeira formatura de estudantes do ensino médio oriundos da Maria Rosalina?
Nas
intervenções realizadas pela polícia no local há denúncias de que residências
fechadas são arrombadas e reviradas pelos militares. São residências de
moradores que saem para trabalhar, geralmente retornando nos finais de semana. Deixaram
bem claro o Banha e seu Jorge que a comunidade jamais foi contra resolver o
problema do trafico e da violência no local. É explicito que o trafico está em
todas as partes do município, que removendo o povo do local para outro sem
políticas públicas, não resolve. Enfatizaram que a sociedade brasileira tem uma
dívida histórica com os negros e os indígenas, que o reconhecimento dos territórios
tanto dos originários, os indígenas, bem como dos negros, os quilombos, são
dividas que estão sendo pagas por séculos de exploração das elites brancas
brasileiras.
Prof. Jairo Cesa
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