domingo, 28 de outubro de 2018


EXPOSIÇÃO SOBRE ESCRAVIDÃO EM ARARANGUÁ REVELA UM PASSADO POUCO CONHECIDO DA POPULAÇÃO LOCAL

Foto - Jairo

Cento e trinta anos depois da assinatura da controvertida lei áurea, jamais, em um passado recente, se ouviram tantas reportagens envolvendo fazendeiros ou empresários acusados de estar utilizando mão de obra análoga a escravidão.  A sensação que se tem hoje é que trabalho escravo no Brasil jamais teve fim. Outro detalhe importante, a escravidão descrita nos livros didáticos e ensinada nas universidades e escolas básicas remonta um sistema quase que exclusivo da região sudeste e nordeste brasileiro. São mínimas as pesquisas ou fontes bibliográficas que realçam esse perverso modelo produtivo na região sul do Brasil.
Santa Catarina como Rio Grande do Sul, ambos tiveram sua história moldada a partir de uma economia de traço mercantilista para o abastecimento regional, das áreas de mineração no sudeste brasileira e dos países do cone sul. A pecuária, a farinha de mandioca e o açúcar foram atividades econômicas que se destacaram no sul do Brasil, sendo responsáveis pelo afloramento de vilas importantes nos dois estados do sul que, depois, se transformaram cidades pólos regionais como Laguna, Araranguá, Lages, etc.

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Quando nos referimos a Araranguá estamos nos remontando a um município cuja área territorial até 1925 lhe credenciava como uma das mais extensas do estado de Santa Catarina. O que poucos sabem é que essa vastidão de terras na extremidade sul do estado estava concentrada em mãos de poucas famílias abastadas, cujo trabalho na lida diária no campo e nos engenhos de farinha de mandioca e açúcar era quase que exclusiva de trabalhadores escravos, negros africanos.
Durante décadas documentos que revelaram a existência de cativos no Grande Araranguá ficaram esquecidos quase que propositalmente dentro de caixas em salas insalubres no fórum da comarca de Araranguá. A quantidade e a relevância historiográfica da documentação foram de tal magnitude que despertou a atenção do professor Cesar Antônio Spriccigo, que não relutou em iniciar sua pesquisa de mestrado pela UFSC, resultando na dissertação e posterior livro com o título: Sujeitos Lembrados e Sujeitos Esquecidos.

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Cada linha, cada capítulo da obra inédita na região traz informações reveladoras de um cenário de intensa movimentação de proprietários de terras, negociadores de escravos, de farinha, de açúcar e demais produtos, transportados em carro de bois por trilhas e estradas de terra.   O comércio de escravos tornou-se tão atraente e lucrativo que, aquele que possuísse dois ou três plantéis, lhe asseguraria capital suficiente para a aquisição de braças de terras e equipamentos para os engenhos.

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A pesquisa do professor Cezar rompeu com a historiografia tradicional que excluía o sul do Brasil do roteiro comercial escravagista. Descortinar tais fatos de um território distante do eixo produtivo e exportador nordeste/sudeste, trouxe subsídios que comprovam que o Grande Araranguá, como era conhecido na época, foi entre a metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX uma das regiões mais dinâmicas e prósperas do estado de Santa Catarina.

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Essa invisibilidade à presença africana no estado de senta Catarina, em particular no sul do estado por longo tempo, teve como motivação o fluxo imigratório europeu, que fora forjado por narradores para designar o italiano, alemão, etc., como protagonistas da nossa história. É comum hoje em dia a difusão de estereótipos sobre o estado catarinense, dentre eles a falsa versão de ser a mini Europa brasileira. Povos sambaquianos, guaranis e outros tantos agrupamentos sociais, deixaram evidências de terem aqui chegando centenas, milhares de anos atrás. Já o negro africano, os lusitanos e os açorianos, também transitaram e ocuparam essas terras muito tempo antes da chegada das primeiras levas de imigrantes europeus.

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A presença desses grupos étnicos pode ser confirmada visitando algumas comunidades do litoral sul do estado como Garopaba, Laguna, Ilhas e Morro dos Conventos. Além dos aspectos culturais materiais - artesanato e instrumentos de trabalho, têm-se os imateriais - rituais religiosos e o folclore local, que dão clarividência que a região apresenta identidade própria, que permanece viva até hoje. A presença africana no extremo sul do estado se mostra ter acontecido muito antes dos primeiros imigrantes europeus, cujos registros datam da segunda metade do século XIX.

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Atualmente, alguns bairros de Criciúma e da região têm relevante concentração de famílias cujos antepassados foram cativos de pequenos e médios proprietários de terras. Araranguá, não fugiu a regra dos demais municípios. No município de Araranguá foram constituídos pequenos aglomerados de famílias descendentes de africanos em locais pouco visíveis aos olhos da sociedade. Embora não se caracterizem como um agrupamento quilombola, nos moldes da vila de São Roque, município de Pedra Grande, a vila Samaria, em Araranguá, apresenta traços nítidos de que muitas das famílias que ali residem seus antepassados foram escravos.
Entretanto, tanto essa comunidade como outras no município com maior presença de população negra, ambas retratam um cenário parecido de discriminação e presença permanente do Estado como agente repressor. A pobreza, a violência, o trafico de drogas, são práticas constante, não excluído também outros bairros pobres que também sofrem com o aumento da violência.  

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Tanto Araranguá como outros municípios antes integrados ao grande Araranguá, são o que são hoje, alguns mais outros menos desenvolvidos, devido ao seu processo de ocupação. Portanto, pouco ou muito, índios, caboclos, portugueses, açorianos, negros, italianos, alemães, tiveram alguma contribuição na construção da nossa cultura. São alguns desses aspectos, como a participação negra na economia regional do século XVIII e XIX, que procura descrever o livro do professor César, que agora faz parte de uma exposição no museu do município, com fotografias, instrumentos de trabalho, meio de transporte, objetos pessoais e fragmentos de expressões colhidas nos documentos pesquisados que estão redigidas em banners.

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Quem for a exposição no museu certamente será motivado a ler a obra Sujeitos Esquecidos Sujeitos Lembrados, onde compreenderá que muito do que sabemos sobre o passado mais remoto da região, foram descritos por cidadãos brancos, muitos dos quais clérigos católicos, descendentes de europeus. Todo o discurso, talvez de forma tendenciosa, procurava superestimar as famílias de imigrantes como heróis desbravadores das terras do interior, resignando índios, caboclos e negros em meros coadjuvantes do processo ocupacional.

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Quando uma sociedade inteira deprecia sua cultura material e imaterial, não reagindo a deterioração de seu valoroso patrimônio, etnias, por exemplo, estamos certos que a resposta disso são gerações fragilizadas, passivas e subservientes de governos tiranos. Uma exposição do porte e importância que é Sujeitos Esquecidos e Sujeitos Lembrados no museu de Araranguá, qualquer nação com grau cultural pouquinho mais elevado, sobrecarregaria agendas de visita de museus, tamanha presença de público.

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A visita que fiz ao museu de Araranguá para apreciar a exposição sobre a escravidão em Araranguá, quando perguntei à monitora do espaço sobre o fluxo de apreciadores, respondeu que estava abaixo das expectativas. São dezenas de escolas somente no município de Araranguá, cujos professores, de história, por exemplo, teriam a obrigação profissional e ética de levar seus estudantes até o museu e fazê-los refletir sobre diversidade cultural na região, incluindo a africana, que teve participação decisiva na construção da nossa identidade social.

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O contato com a memória desse povo, subjugado por um modelo econômico perverso, possibilitará novas reflexões que desconstruirá equívocos históricos que permearam o imaginário social por séculos. Dentre eles a ideia de que não haver distinção entre sujeito e objeto de trabalho, ou seja, corpo desprovido de sentimento, alma, tão ou mais valorizado que terras e animais. Outro aspecto importante da exposição é poder pensar modos comportamentais entre proprietários e seus escravos, casamentos, batizados, acúmulo de recursos para compra de alforrias, etc.  
 Além do mais, permitirão pensar outras tantas formas de escravidão em evidência hoje no Brasil, que não se dá unicamente com negros, inclui também brancos pobres marginalizados. Por fim, lendo os nomes de inúmeros cidadãos/ãs mantidos/as invisíveis na história como Euzébios, Marias, Anas, e agora lembrados/o na pesquisa, muito outros tantos Euzébios, Marias, Anas, Felisbertas, Severinos, estão próximos de nos compartilhando o mesmo espaço, porém nada sabemos sobre suas dores, frustrações, sonhos, esperanças.

Foto - Jairo

Além de ouvi-los, por que não oportunizar os estudantes a contatar com cidadãos ganeses, argelinos, senegaleses, entre outros, que vieram para o Brasil em busca de esperança. Caminhando pelo calçadão de Araranguá é possível visualizá-los trabalhando como camelôs. Levá-los à escola para uma conversa poderá enriquecer muito nossa cultura, desconstruindo preconceitos que ainda dominam nosso pensamento.
Prof. Jairo Cezar




























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