quarta-feira, 3 de outubro de 2018


ÁFRICA DO SUL, O APARTHEID SOCIAL AINDA MANTÉM CERCA DE 80% DA POPULAÇÃO EXCLUÍDA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Lixos, casas e a fumaça saindo do chão de galeria de carvão abandonada | Foto: Carol Gomide 

Em 2017 durante 10 dias participei junto com outros 20 brasileiros de um tour pelas principais cidades e áreas turísticas da África do Sul. Com exceção a comunidade de Soweto, segregada socialmente e um dos redutos mais densamente povoadas do mundo, os demais locais visitados, discretamente expõem as feridas sociais e econômicas que afetam cerca de 90% de uma população constituída majoritariamente por indianos/asiáticos (2,6%); mestiços (8,8%) e negros (79%). A população branca no país representa 9,6%, formada por colonizadores das etnias alemãs, holandesas, inglesas, etc.  
Como tantos outros países de economia pautada no extrativismo mineral, petróleo, carvão e outras commodities para exportação – diamante, platina e ouro, a África do Sul não apresenta uma estrutura industrial significativa, tornado-se dependente quase que exclusivamente desse setor. Se o lucro obtido pelo país em 2017 nas exportações de carvão, petróleo, ouro, platina, cromo, vanádio, manganês, diamante, etc, foi de 33 bilhões de dólares, era de se prever que toda essa riqueza resultasse em benefícios para os seus 56 milhões de habitantes.
Nada disso, hoje ampla parcela da atividade mineradora no país é controlada por grandes corporações multinacionais, a exemplo da transnacional Anglo American Platinun que atua no país há 101 anos. Somente no setor de mineração de carvão, são cinco empresas que controlam 80% da produção. Quase todo o carvão extraído na África do Sul é de superfície. Transitando pela rodovia que leva ao Parque kruger, situado na fronteira com Moçambique, leste do país, a visibilidade da auto-estrada era afetada pela fumaça expelida por dezenas de chaminés de usinas carboníferas espalhadas por toda a região.
Outro aspecto curioso observado foi a imensa concentração de residências próximas as áreas mineradoras, sendo as mesmas habitadas pelos trabalhadores das minas. Não há dúvida que o percentual de pessoas afetadas por doenças resultantes da inalação de partículas tóxicas do carvão mineral devam ser absurdamente elevados. A certeza se dá pelo fato de o país ter se recusado em participar do acorde de limitação da emissão de gases causadores do efeito estufa.
Os lucros exorbitantes das empresas do setor de mineração têm vínculo direto com as relações de trabalho impostas aos mineiros. Um exemplo para elucidar o modo como se processa a exploração da mão de obra do trabalhador das minas é o seguinte: um trabalhador negro é 600 vezes mais pobre do que a minoria de 1% dos trabalhadores brancos miseráveis. Outro aspecto necessário para entender a atual realidade do país é o “extinto” regime do Apartheid, no qual predominou no país de 1948 a 1994, ou seja, durante 46 anos.
Durante esse longo período, uma constituição segregacionista foi outorgada estabelecendo regras de comportamento e conduta distintas entre brancos e os demais grupos étnicos. Claro que essa constituição veio assegurar benefícios ilimitados à minoria branca, identificados por Africâner.
Protegidas por esse regime tirânico, o lucro das empresas do seguimento das commodities cresceu de maneira estratosférica. Com o fim do regime do Apartheid, episódio que levou ao poder o ativista antiapartheid Nelson Mandela, a população trabalhadora sul africana, especialmente os mineiros, tiveram asseguradas alguns benefícios sociais, como a redistribuição de 54% dos lucros das empresas aos salários.
Com o fim da era Mandela, a África do Sul passou a viver um longo ciclo de retrocessos de direitos comparados à época do Apartheid. A atividade mineradora continuou se sobrepondo às outras atividades de força de trabalho, na sua grande maioria formada por estrangeiros de Moçambique, Zimbábue e do interior do país. Esse foi um dos fatores pelo rebaixamento violento dos salários pagos e o aguçamento da xenofobia. Com um exército de trabalhadores disponíveis, os proprietários das minas passam a adotar a chantagem para espoliar ainda mais o trabalhador sul africano.
A prática de trabalho terceirizando já é algo rotineiro nas minas Sul Africanas. Esse novo sistema de contratação flexível jogou os trabalhadores num abismo interminável. Antes de haver alguns reparos na legislação, o trabalhador contratado permaneceria na empresa por seis meses. Expirado o tempo, o funcionário deveria ser efetivado ou demitido. Atualmente, o tempo de contratação foi reduzido para três meses. Com essa promiscuidade legal, quando o empregado da companhia completa o seu tempo, é demitido sem direito algum.
Por serem estrangeiros, na sua maioria, ilegais, construíram seus barracos próximos as mineradoras. São solos cobertos por camadas e mais camadas de rejeitos de carvão incandescentes, que, de repente, abrem crateras engolindo tudo que estiver sobre o terreno. São verdadeiras cidades sem o mínimo do mínimo de infraestrutura. Falta tudo, principalmente água que abastecida por carros pipa.
O cenário dessas comunidades é comparável a alguns bairros de Criciúma, Siderópolis, cobertos por detritos de carvão. Porém, com um detalhe, aqui vários projetos de reparos desses passivos ambientais estão sendo executados, tendo a participação de empresas mineradoras, ministério público e governos municipais.  Na África do Sul, não há qualquer política desse porte sendo aplicada.
Sem qualquer fiscalização das autoridades, as corporações deitam e rolam no país criando suas próprias regras, aonde, rotineiramente, trabalhadores vêm sendo submetidos a humilhações.  Os casos rotineiros acontecem principalmente nas minas de processamento de platina. Todos os dias os operários são submetidos a exames de raios-X abdominal para verificar se os mesmos ingeriram algum metal precioso. Pessoas ouvidas nos bairros revelaram o aumento de doenças psíquicas devido às tais práticas de desrespeito a dignidade humana.    
No centro e no entorno da cidade de Johanesburgo estão espalhadas as várias montanhas de rejeitos das minas de ouro. É, sem dúvida um cenário nada agradável à quem não está familiarizado com a cultura da mineração. Algo que chama atenção no centro da capital é a existência de uma mina cuja abertura ocorreu no final do século XIX, porém desativada há décadas.  
Dezenas ou até mesmo centenas de pessoas hoje em dia acessam os seus profundos labirintos para garimpar fragmentos de ouro. Para chegar ao seu interior são necessários quatro dias. Muitos permanecem lá por longo tempo, quatro meses ou mais. É um sistema de trabalho subumano e não reconhecido pelo Estado. Muitos mineiros quando retornam das profundezas, suas poucas pedras de ouro encontradas são roubadas ou comercializadas no mercado negro a preços abaixo do mercado. O desespero por dinheiro leva a tal situação.
Os costumes, os rituais, as festas e a própria violência social em Johanesburgo e outras cidades foram forjados pela mineração do ouro. Muitas das estatuas edificadas em pontos estratégicos das cidades importantes homenageiam colonizadores ou heróis brancos que violaram leis em favor dos poderosos.  Há pouco tempo estudantes quebraram uma estatua colocada nas imediações da Universidade na Cidade do Cabo.
A revolta dos estudantes e da própria população são reflexos das políticas anti-sociais de governos em benefício dos donos do capital. O afrouxamento violento das regras trabalhistas por meio políticas de terceirização é um dos fatores do rebaixamento dos salários e a elevação da miséria social.  Em 2017, em diversas oportunidades os guias que acompanhavam o grupo de turistas na viagem pela pelo país ressaltavam as dificuldades vividas pela população diante do atual governo acusado de envolvimento em crime de corrupção.
A insatisfação e a pressão dos movimentos sociais atingiram níveis insuportáveis que em fevereiro de 2018, quando o presidente Jacob Zuma decidiu renunciar ao cargo. Na vacância da vaga assumiu o seu vice, Cyril Ramaphosa. Embora tendo nascido no bairro pobre de Soweto e um dos braços direito de Nelson Mandela no movimento antiapartheid, seu carisma e aceitação junto ao povo pobre do país estavam muito aquém de quando era líder sindical. Em pouco tempo se tornou uma das pessoas mais ricas da África do Sul. Hoje acumula uma fortuna que supera os 540 milhões de dólares, adquiridas em vários negócios como a mineração.
É acusado de um dos responsáveis pela chacina que vitimou 35 mineiros em 2012, quando da realização de uma greve envolvendo trabalhadores da empresa britânica LONMIN, que atua no setor de mineração.  Esse episódio está pondo em xeque à democracia racial pós-apartheid. O risco de um colapso social pode se intensificar pelo fato dos envolvidos nos crimes não terem sido julgados. Algo importante que vem marcando os trabalhadores na África do Sul é o seu poder de organização. Nos últimos dez anos o número de greves e protestos se espalhou pelas regiões mineradoras controladas pelas empresas que atuam no setor como a multinacional Anglo American.
Diante desse espectro nada favorável às empresas, com perdas de lucros bilionários devido as paralisações por greves, corporações como a Anglo American estão alterando seus portfólios internacionais.  Em vez de continuar explorando ouro, platina e outros minerais em países como a África do Sul, com forte mobilização sindical, estão transferindo suas plantas para países como o Brasil, explorando o ferro, manganês, bauxita, etc. Outro fator importante às empresas aqui é a fraga organização sindical dos trabalhadores do setor.    
A estratégia do capital é sem dúvida reagir com violência quando vê os lucros ameaçados. Em muitos casos na África do Sul as companhias mineradoras estão se utilizando de outras estratégias como a cooptação dos líderes religiosos para manter suas empresas funcionando assegurado lucros.  Preocupados com isso, movimentos vem se replicando no mundo, com a atuação até do vaticano, mobilizando ONGs e demais organizações, na tentativa de conciliarem mineradoras, religiosos e ONGs para tornar a atividade mais humanizada. O movimento Rede de Igrejas e Mineração, o papa denominou “grito contra as mazelas”, termo que propõe sensibilizar a sociedade sobre todos os males oriundos da mineração.
A África do Sul embora considerada um dos países mais ricos do continente africano é também um dos mais desiguais do planeta. O Aparthaid mesmo oficialmente destituído em 1994, a divisão de classes entre brancos e não brancos ainda permanece tão forte quanto antes. Para um país onde menos de 10 da população é branca, onde 1 a 2% delas tem o controle de mais 80% das riquezas, as greves e a mobilização da classe trabalhadora, hoje cada vez maior, tenderá elevar ainda mais o grau de consciência do povo na tomada do poder. Que tudo isso sirva de exemplo para o Brasil.
Prof. Jairo Cezar

https://www.brasildefato.com.br/2018/09/03/especial-or-exploracao-mineral-dor-e-miseria-na-africa-do-sul/ 
https://www.brasildefato.com.br/2018/08/31/29mineradoras-tentam-cooptar-igrejas-acusa-padre-da-rede-igrejas-e-mineracao/ 


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