sexta-feira, 15 de setembro de 2017

ESCOLAS PUBLICAS CATARINENSES PERMANECEM REFÉNS AOS MODELOS DE ENSINO E AVALIAÇÃO DO FINAL DO SÉCULO XIX

Quando pensamos que a educação poderia a qualquer momento dar um tremendo salto de qualidade, acompanhando os rápidos fluxos evolutivos nos campos das tecnologias e do pensamento humano, nos deparamos com ambientes escolares que ainda respiram ares do final do século XIX, engessados às burocracias, às metodologias e avaliações já superadas há décadas que caminham contrárias às bibliografias e legislações em vigor.
É isso mesmo, na contramão da história. Para referendar tal afirmação foi muito fácil, bastaram folhear as páginas de tudo o que se escreveu ultimamente sobre currículos (ensino e avaliação), a última LDB, os planos nacionais, estaduais e municipais de ensino, as diretrizes curriculares nacionais para a educação básica, as propostas curriculares, sistemas de letramentos, entre outras fontes disponíveis, e se verificou que as escolas públicas brasileiras de nível básico se mantêm de costas para o futuro.
Quem foi professor/a nas décadas de 1980 e 1990 deve ter vivenciado momentos extremamente instigantes nos seus ambientes educacionais, quando obras extraordinárias de pensadores como Paulo Freire, Emília Ferreiro, Danilo Gandin, Dermeval Saviani, Vigostsky, Gramisc, Piaget, faziam parte do cotidiano dos debates e das reuniões pedagógicas. Havia escolas que ousavam até desafiar as rígidas burocracias dos sistemas de ensino, trazendo palestrantes do nível de Danilo Gandin, intelectual ultra-crítico aos tradicionais modelos padronizados de ensino e avaliação, centrados em apostilas e livros didáticos.
A fala do intelectual em certos momentos provocou ansiedade e mal estar a muitos presentes no recinto, pois, pela primeira vez estavam vivenciando algo inimaginável em termos de escola, se desfazer de uma histórica bengala pedagógica viciante, (o livro didático tradicional) e assumir verdadeiramente a função de professor, de pesquisador e construtor do conhecimento acompanhado dos estudantes. A partir daquele instante, todos/as estavam às voltas de um grande desafio, ou seja, a elaboração de programas de ensino focados nos problemas do dia a dia da sociedade.
A própria LDB, lei 9394/96 já trazia no seu bojo, dispositivos tratando sobre estruturas curriculares. Isso facilitou, fazendo com que escola se mobilizasse para assegurar a socialização dos artigos e parágrafos para todos/as. No entanto, as resistências às virtuais rupturas do ultrapassando sistema de ensino partiam dos próprios gestores, cargos ocupados por indicação política, sem a mínima competência para tal função. Algumas escolas se permitiram em ir um pouco mais além aos desafios, enfrentaram as garras afiadas do poder constituído, indicando e mantendo com pulso forte seus gestores eleitos pela comunidade.
As pressões, o medo de errar e a falta da “muleta pedagógica”, o livro didático, fez com que muitos/as professores/as recuassem ao desafio de assumir a escola pública pela primeira vez, tornando-a pública e não estatal, como vinha se caracterizando. No entanto, deve servir de exemplo à covardia e o medo de arriscar, desafiar de muitos/as professores/as, a atuação de uma professora, que não recuou diante das pressões.  Provou, corajosamente, que sem a prática tradicional do livro didático e das tradicionais avaliações punitivas, era possível o/a estudante obter excelentes resultados com a adoção de metodologias transformadoras.
Se sentindo cada vez mais isolada e sob intensa pressão dos colegas e de um sistema avaliativo engessado, não teve outra escolha, recuou, retornando ao tradicionalismo pedagógico, que permaneceu e permanece inalterado até os dias atuais. O legado deixado pela profissional foi de que o ato ensinar não estressa, não desgasta e nem consome energias, muito pelo contrario, é energizador, instigador e rejuvenescedor. Muito diferente dos/as profissionais que seguem os modelos tradicionais de ensino, onde são raros no segundo ou terceiro mês de trabalho docente, encontrar alguém que não reclama de estar cansado, estressado, pedindo a deus uma folga, um feriado, para descansar. Não é mesmo?
Embora os governos insistam em querer manter escravizados os professores aos programas avaliativos padronizados nacionalmente, nos ambientes escolares é possível criar algumas brechas e desenvolver iniciativas inovadoras que possam tornar o aprendizado mais produtivo e instigador. Não queremos aqui defender a supressão imediata de todas as práticas tradicionais até então adotadas na escola. O emprego de livros e apostilas didáticas, provas, entre outros procedimentos convencionais permanecerão, porém, com possibilidades de inserção de práticas inovadoras tanto nos conteúdos como no modo de avaliar.
Exercitar a prática de projetos individuais e interdisciplinares nas escolas pode ser um desafio em tanto. De início, não é necessário que cada profissional desenvolva o seu projeto com os estudantes, embora os planos e currículos nacionais e estaduais os defendam. Não haveria possibilidade numa escola ainda segmentada em disciplinas, salas com carteiras enfileiradas e provas. Talvez, num modelo de ensino integral, haveria mais chance de sucesso.  
O projeto Escola Sustentável pode se constituir num grande desafio para rompimento do tradicionalismo que perpetua no ensino, servindo até mesmo de referência para outras escolas públicas. Porém, de início, muitos dos/as educadores/as não o vê ainda como algo que tem chance de transcender ao modelo de ensino estabelecido. O fato é que cada professor/a, cada estudante, cada funcionário/a que atua no educandário deve incorporar o projeto como seu, acreditando que as ações desenvolvidas modificarão hábitos de comportamentos individuais e coletivos.
A caminhada para o sucesso pleno do projeto ainda se mostra distante. Isso porque nos encontros pedagógicos ainda são reservados parcos minutos para discutir quais dois anos de ações desenvolvidas relativos aos desperdícios de água e energia elétrica no educandário. Agora quase quatro horas dedicadas às questões avaliativas, análises estatísticas e estratégias para aprovação o reprovação dos/as estudantes, sem mencionar aspectos metodológicos e de conteúdo, reflete em cheio o modelo arcaico do ensino que ainda impera, e a submissão dos/as profissionais da educação aos comandos do sistema. Se os/as estudantes apresentam resultados avaliativos insatisfatórios, as responsabilidades não podem recair exclusivamente aos próprios estudantes que não conseguem assimilar, mas as metodologias que são aplicadas, nesse caso, como se vê, a prova escrita se constitui como principal metodologia.
Durante a excursão realizada por um grupo de estudante para conhecer algumas das nascentes do rio Araranguá, ambos/as tiveram a constatação de que o líquido mais importante para a vida do planeta, á água, que escorre pelo rio até a sua foz em Ilhas, está contaminada por inúmeros poluentes, dentre eles metais pesados oriundos do carvão mineral.  Atento a fala de uma professora a mesma reclamou que os estudantes têm dificuldades de assimilar os temas assinalados de química, que está cansada, estressada, que não sabe o que faz.
Se habitamos numa região cortada por um rio extremamente importante, porém poluído por infinitos processos químicos e orgânicos, bom seria que essa temática fosse inserida no plano de ensino de química, talvez também física, Linguagens, geografia, história, matemática, etc. Não é mesmo? Outras temáticas como fontes renováveis e não renováveis de energia; mudanças climáticas, fenômenos extremos do clima despertasse mais a atenção dos nossos/as alunos/as que certos temas pouco ou nada instigadores, até mesmo maçantes, que possivelmente pouca ou nenhuma importância terá para suas vidas práticas.
Um exemplo de que é possível revolucionar a educação tornando as aulas agradáveis e desafiadoras, foi o que aconteceu com um professor de química do Espírito Santo, único indicado da América Latina para concorrer ao prêmio Global Teacher, no Canadá em 2017. Desde pequeno teve o gosto despertado para a pesquisa. Como professor, nas suas aulas procurava sempre trazer elementos que chamassem a atenção dos estudantes para o ensino da química. Estilos musicais como funk e hip hop foram utilizados para montar paródias voltadas para aprender tabela periódica. Mas o que realmente o levou a concorrer o prêmio foi o projeto intitulado Filtrando as Lágrimas do Rio Doce. A proposta partiu de um problema que atingiu os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, cortados pelo Rio Doce. Em 2015 a bacia hidrográfica foi afetada por rejeitos de ferro advindos do rompimento da barragem da Samarco, no município de Mariana, MG.
Junto com os estudantes da escola onde trabalhava, recolheu amostras da água do rio contaminado, analisou-a no laboratório da escola, identificando os principais metais pesados contidos e seus efeitos na saúde e nos ecossistemas. Partindo dessa realidade preocupante, participou junto com os estudantes da confecção de filtros à base de areia para distribuir aos moradores da cidade de Regência, diretamente afetada pelos rejeitos contaminantes.  
É exatamente esse tipo de proposta de ensino que os atuais planos educacionais e propostas curriculares defendem. Por que não aplicá-los a partir das realidades de cada estado, município? É claro que sua aplicação requer elevado grau de conhecimento tanto dos conteúdos propostos como das múltiplas inteligências requeridas, ou seja, as inúmeras capacidades possíveis para aprender. A prova, contudo, é uma dessas inteligências, existindo outras dezenas de possibilidades disponíveis, a música, as gincanas, a pesquisa, as viagens, as feiras, etc.
Revisitando algumas páginas da Proposta Curricular de Santa Catarina, publicada em 1998, o professor Paulo Hentz, que coordenou o processo de construção do documento, fez a seguinte observação sobre conhecimento, redigida no capitulo que trata sobre eixos norteadores da Proposta.  Disse ele que “trabalhar com o conhecimento numa perspectiva universal significa saber lidar com a realidade proximal dos alunos, provocando o diálogo dessa realidade com conhecimentos que a expliquem, mas explique ao mesmo tempo o mundo”.
Já se passaram quase vinte da vigência dessa respectiva proposta, sendo que outra, “mais adaptada a atual realidade”, foi elaborada e sancionada em 2014, sem que concepções como construtivismo, sociointercionismo, entre tantos “ismos” presentes no documento anterior, jamais fosse plenamente efetivado. Se folhearmos as dezenas de páginas dos PPP (Projetos Políticos Pedagógicos) das escolas públicas estaduais catarinenses lá estarão tais pressupostos metodológicos, onde são sempre discutido todo o início de ano letivo.
Na atual proposta curricular aparece nas quase 200 páginas do documento o conceito educação integral. A idéia, aparentemente, seria construir uma proposta que proporcionasse a conexão entre as diferentes áreas do saber agora divididas em linguagens, ciências humanas e ciências naturais e matemática. A proposta atual, portanto, preservou parte dos conceitos teóricos e filosóficos da anterior. Intelectuais como Vigostky, Davidov, Leontiev, Lúria e tantos outros de vertentes marxistas são citados outra vez no documento para justificar os vários conceitos apresentados para dar sentido de uma educação revolucionária.
O fato é que muitos/as professores/as não conseguiram nos vinte anos da vigência da primeira proposta, assimilar o que realmente propunham tais pensadores, como zonas de inteligências proximais, reais... A confusão se tornava generalizada quando professores/as empolgados/as, depois de terem participado de reuniões pedagógicas ou cursos de formação continuada sobre ensino e avaliação, numa concepção, sócio interacionista, retornando ao chão da escola tinham que voltar a rotina das apostilas e cartilhas didáticas, das provas ou “testes avaliativos” semanais e bimestrais.
 É fato, sim, consciente ou inconscientemente, muitos educadores permaneciam e permanecem reféns à arrogância histórica do individualismo, do medo de admitir que pouco sabe, de que estão dispostos a aprender a aprender com os demais colegas. Esse tipo de comportamento compromete o processo pedagógico num todo, pois são gritantes os equívocos conceituais cometidos durante a execução de certas atividades curriculares.  Responsabilizar exclusivamente os professores por tais infortúnios epistemológicos é o que realmente pretendem os governantes.
Fortalecer a baixa estima, o sentimento de culpa pelo fracasso escolar, são estratégias dos governos e de todo o seu aparato, para desviar a atenção da sociedade sobre os reais problemas que afetam a má qualidade da educação.  É isso mesmo, desviar a atenção. É quase impossível querer um ensino integral, transformador, de qualidade, em escolas sucateadas, que não possuem salas de tecnologias, bibliotecas bem equipadas, laboratórios, ginásios de esportes, nem mesmo dinheiro para comprar papel higiênico e materiais de limpeza. Muitas das unidades de ensino, além de enfrentar tais carências estruturais, funcionam precariamente, porque vários se apresentam interditados pela justiça devido aos riscos de desabamento.                       
 Hoje em dia quase todas as poucas reuniões pedagógicas realizadas nas escolas públicas estaduais, todo o período, exceto em alguns casos devido a pressão do corpo docente, são utilizados para discutir temas burocráticos ou administrativos, resultados estatísticos de avaliações, reclamações, indisciplinas dos estudantes, lavações de roupas sujas, etc., etc. Raramente são abordadas questões como tipos de conteúdos ensinados e metodologias adotadas, menos ainda proposições de projetos científicos. 
O que interessa mesmo são números, percentuais, aprovações e reprovações. É isso mesmo que os governos querem, números, percentuais, porque o resto, o resto é balela, é discurso de esquerdista de quem insiste em atrapalhar, de quem é contra o Brasil, contra progresso... Não é assim mesmo que acontece?   Agora, o que está sendo ensinado e sua implicância na vida dos estudantes e da sociedade, isso não interessa. Afinal, qual é o papel verdadeiro da Escola pública? A quem ela pertence, e que tipo de sujeito está ela formando ou construindo atualmente?

Prof. Jairo Cezar 

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