terça-feira, 30 de agosto de 2016

VIGIAR TORNA NOSSAS ESCOLAS MAIS SEGURAS?


Há poucos dias um estudante de uma escola pública estadual foi informado de que haviam sido instaladas câmeras de vigilância nos banheiros da unidade de ensino onde estuda. Sua resposta, de imediato, foi enfática, verbalizando a seguinte expressão: Chegou... BBB!!! Cadê o Bial?? Sua resposta foi uma alusão ao nome de um programa de entretenimento famoso da televisão brasileira, onde pessoas são confinadas em uma casa por várias semanas e monitoradas por dezenas de câmeras espalhadas por todos os cômodos. O fato é que os desdobramentos que redundaram na decisão muitas vezes unilateral de instalação das câmaras nos ambientes escolares, como banheiros e salas de aulas, foram motivados por episódios como pequenos furtos, atos de vandalismo e violência entre estudantes e também atingindo professores (as).




Diante de situações constrangedoras que estão comprometendo o curso normal do processo educacional e que são reflexos da atual realidade social repleta de contradições e injustiças, o corpo gestor das escolas e seus vários seguimentos, incapacitados ou com dificuldades de enfrentar pedagogicamente os obstáculos, adotam medidas repressivas e antipedagógicas, instalando câmeras de vigilância em vários ambientes.  A sensação de segurança trazida por tais equipamentos é apenas aparente, pois não atinge as reais causas, que estão além dos muros das escolas, isto é, as instâncias de decisões políticas federais, estaduais e municipais.


Afinal, quem ganha, quem perde com todo esse desarranjo político que eleva o estado de insegurança individual e coletiva? É claro que os beneficiados são as poderosas corporações que fabricam e comercializam equipamentos caros de segurança, que promovem lobbies nas instâncias de decisões políticas, financiando candidatos favoráveis à permanência dos atuais quadros de fragilidades dos sistemas de segurança pública. Quem perde é a própria sociedade, que se sente refém e sua intimidade invadida, vasculhada por milhares de olhos eletrônicos curiosos, intensificando a sensação de estar sendo vigiado. Quem se lembra do filme Show de Truman o Show da Vida, protagonizado pelo ator Jim Carrey. O filme, em resumo, retrata a vida de um sujeito, pacato, que desde o seu nascimento, sem que soubesse, passou a viver numa cidade cenográfica e monitorado 24 horas por bilhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Subjetivamente os sistemas de vigilância atuam no campo comportamental e psíquico dos indivíduos, padronizando atitudes ditas “normais” e politicamente aceitáveis na lógica do marcado.


E as escolas, portanto, aproveitando-se do despreparo e da alienação dos seus dirigentes e profissionais, vem se deixando dominar por um cenário educacional confuso, de desobediência e rebeldia do corpo discente.  É conveniente admitir que tal situação de “instabilidade comportamental” é agravada devido ao modo como a educação é proporcionada às crianças e adolescentes no ambiente familiar. São pais e mães despreparos, sem o mínimo de autoridade com os filhos (as), que quando vão à escola ousam comportarem-se do mesmo modo, achincalhando, ameaçando moralmente e fisicamente professores quando tentam fazer valer algumas regras regimentais.
Não há outro dispositivo para solução dos imbróglios que hora inundam os diferentes seguimentos da sociedade como os espaços escolares que não seja o diálogo franco e aberto. Em se tratando de violência, pequenos furtos, consumo de drogas e outros tantos infortúnios do cotidiano das escolas, é necessário parar e repensar a escola como um corpo sistêmico, de conexão, envolvendo pais, professores, estudantes, ministério público, Conselho Tutelar, entre outros. No entanto, o que se procura fazer nas escolas, são ações eminentemente paliativas sem abalar as estruturas podres de um sistema, apenas inibir ou postergar patologias sociais para o futuro. O que se constata é uma espécie de ciclo vicioso permanente na escola, da falta de projetos ou da sua descontinuidade quando existem. Na realidade a escola pública ainda está longe de se conceber como pertencente ao povo, mas sim de um agrupamento de partidos conservadores que as utilizam para se perpetuar no poder.
O uso de câmeras de vigilância não seria um desses instrumentos capazes de postergar os incômodos e também tirar do professor a sua autoridade como mediador transferindo para um grupo ou comitê o veredicto/sentença baseado em imagens captadas? George Orwell, autor do livro 1984 e pensador Francês Michel Foucault, na obra Vigiar e Punir, ambos já alertavam como seria a sociedade do futuro, cujas pessoas passariam a ser monitoradas, disciplinadas e punidas.  Há de se presumir que na tomada de posição quanto a temas complexos como instalações câmeras de vigilância em ambientes públicos como escolas, além do momento oportuno para estimular a democracia, seria imprescindível que se investigasse as legislações em vigor das quais discorrem sobre o assunto.


É sabido que ainda são discretas as jurisprudências relativas ao tema, porém, existem dispositivos na Constituição Federal de 1988; na LDB, lei n.9394/96; no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que podem servir de subsídios para reflexão e tomada de decisão, especialmente quando se pretende instalar câmeras em ambientes escolares, especialmente banheiros.  O Art. 205 da CF diz que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Quando o artigo disserta sobre o pleno desenvolvimento da pessoa, está se subtendendo total liberdade de aprendizagem, que não haja nenhuma interferência externa no processo. Esse princípio parece ser mais esclarecedor no Art. 206, II, da CF onde afirma que “a escola deve ser concebida como ambiente que garanta a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Porém, na concepção de muitos especialistas acerca do assunto, não é exatamente isso que ocorre quando estudantes e demais profissionais sabem que estão sendo monitorados.
É fato, que partindo desse pressuposto, os movimentos e atitudes espontâneas adquirem outra conotação, influenciando, portanto, tanto no modo de ensinar e aprender. Não há qualquer dúvida que o desenvolvimento humano pleno requer plena autonomia, que se pressupõe liberdade. Por conseguinte, liberdade está na ausência de vigilância ostensiva.   No instante que câmeras são afixadas em ambientes públicos ou particulares, todos, sem distinção, passam a ser monitorados, suas intimidades invadidas e expostas ao público.

Embora o argumento pró-instalação de câmeras esteja fundamentado em pressupostos que é a segurança do cidadão, constitucionalmente lhe é resguardado o direito de imagem conforme o Art. 5, X, CF, onde diz: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. É claro que as imagens coletadas permanecem armazenadas numa espécie de dispositivo ou memória. Quem garante que rackears oportunistas não acessar tais dispositivos e se apropriem de tais imagens? Já a LDB, Lei. N. 9394/96, no seu Art. 3 estabelece com base nos princípios e fins que “a educação é inspirada nos valores de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”.
Na sequência, deve ser realçado também artigos dispositivos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que seguindo os fundamentos da Constituição federal estabelece no seu Art. 17 que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Somente esse artigo seria suficiente para impedir que procedimentos como os que estão adotados nas unidades de ensino das distintas redes fossem inviabilizados.
É perceptível que a adoção de tecnologias de ponta como câmaras de monitoramento, bem como a reclusão de marginais e construção de novos presídios não estão influenciando nas estatísticas de violência pelo Brasil. E por que será? A resposta para esse cenário de quase guerra civil está no modelo de sociedade que se adotou, com uma das distribuições de renda mais desigual e injusta do planeta.   Como se poderia então, superar essa terrível conjuntura social a partir da escola sem se amparar a artifícios repressivos que em nada contribui para a humanização dos sujeitos?
Mais uma vez é importante reiterar do engajamento dos pais (mães) e responsáveis com a educação dos filhos (as).  É imperativo eclodir a cultura que ainda perpetua nas escolas públicas do país cuja sociedade ainda não a vê como integrante da sua vida.  É só prestar atenção no contingente de pais que as visitam diariamente. Muito pouco diante da sua dimensão como instrumento de transformação social. O contato permanente propiciaria o convívio amistoso, a troca de experiências e soluções de adversidades que hoje estão recaindo para o corpo docente e gestores escolares. É injusto transferir toda a responsabilidade pelo sucesso e fracasso escolar aos profissionais da educação. Verdade seja dita, pensar e querer construir uma escola verdadeiramente transformadora demanda muito mais que preparação e execução de conteúdos e avaliações.
É recomendável, primeiro, articular o que deve ser ensinado, sempre ponderando os elementos conflitantes da sociedade como subsídios integrantes dos currículos. Se a escola é um catalisador das adversidades da sociedade, não poderá ela se eximir de conduzir para o debate e propor soluções. Se as escolas carecem de esportes, cultura, de entretenimento para crianças e jovens, é imprescindível construir tais oportunidades dentro da escola. E fundamental fortalecer os vínculos interdisciplinares, através da promoção feiras multidisciplinares, festivais de talentos, eventos esportivos, manifestações culturais e contraculturais: música, dança, pintura, etc. A atribuição dada a “pichação” como ato de contravenção, também é uma forma de manifestação espontânea carregada de significados. É pouco convincente admitir que criminalizando ou penalizando os autores, tais manifestações deixarão de ocorrer. Trazer a cultura, as várias manifestações sociais para dentro da escola e inseri-las nos planos de aulas nos diferentes níveis de ensino são uma forma de valorizar a história e as diversidades sociais locais.
Quem realmente deveria ser criminalizado é os gestores públicos, a exemplo o governo do estado, por ser ele o responsável pelo grau de depredação e abandono das escolas públicas estaduais. Afinal, o que indigna mais pichação no banheiro, muro, etc. ou dezenas de goteiras e rachaduras que põem em risco a vida de milhares de estudantes e professores. Quantos governos até hoje foram processados ou presos por descumprir legislações acerca do não repasse de recursos para educação; por irregularidades em obras, como ginásios esportivos; por inúmeras escolas interditadas, entre outros?  A resposta é, nenhum.
Que moral, portanto, terão professores e gestores de querer punir estudantes, pelo fato de os mesmos terem descumprindo regras dos regimentos escolares? Porém, isso não é justificativa para o total descumprimento das regras nas escolas. Claro que não. Regras quando construídas coletivamente devem ser cumpridas. As escolas devem servir de exemplo quanto à ética e gestão colaborativa para os gestores públicos.   Uma gestão colaborativa se constitui de mediadores de conflitos, que devem ser estimulados na escola. Esses tais mediadores devem atuar também junto com organizações sociais como associações de moradores através do compartilhamento de decisões. Tal qual a educação visto como um processo de longa duração, seu sucesso está ligado à permanência e ao compartilhamento de um projeto de escola. Não havendo essa permanência e compartilhamento, os projetos serão concluídos, se transformando em um ciclo vicioso de um começar constante.    
Prof. Jairo Cezar
               
















Um comentário:

  1. Muito bom seu artigo. Essa questão em particular, frente a realidade constituída pela "sociedade digital" (que se utiliza de recursos tecnológicos de informação e comunicação nos últimos tempos com muita intensidade) referente ao monitoramento e a vigilância no âmbito da educação, merece mais do que esclarecimentos. Metas para sua correta utilização. Pensar a formação humana neste contexto, é propor junto de toda a comunidade (projetos políticos e pedagógicos) que incentivem a democracia na gestão e planejamento de todas as ações. Além das questões políticas em seus usos, precisamos analisar pedagogicamente. Até porque a educação tem por intenção a humanização do homem em todas as suas dimensões.

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