domingo, 9 de agosto de 2020

 MILENAR IGREJA BIZANTINA DE SANTA SOPHIA, EM ISTAMBUL, VOLTA A SER MESQUITA MUÇULMANA

Nas aulas de história sobre a ocupação do Brasil pelos portugueses, para compreender melhor  os desdobramentos que resultaram nesse feito, sempre foi imprescindível retornar aos meados do século XV, na cidade de Constantinopla, hoje Istambul. E por que razão. A razão é comercial. Antes de 1453, quando os Turcos Otomanos ocuparam a cidade construída pelo imperador Constantino I, na época o império Bizantino, havia um forte entreposto comercial na região. Produtos de grande valor comercial, como tecido e especiarias trazidos em lombos de camelos do meio oriente, tinham a cidade de Constantinopla como mercado distribuidor.

    Do ocidente iam caravanas com produtos que também eram comercializados nesse grande shopping a céu aberto. Tanto o ocidente quanto o oriente estavam experimentando novos hábitos de consumo. No ocidente, o sistema de produção feudal estava em declínio. Uma nova classe social se despontava impulsionada pelo comércio praticado nos arredores dos feudos. Os comerciantes venezianos, genoveses e dos principados do atual Portugal e Espanha, entre outros territórios da atual Europa, empreenderam fortunas com os produtos adquiridos por meio dessa rota cujo centro era Constantinopla.

O esplendor do comércio oriente e ocidente sofreu um grande revés quando as quase impenetráveis muralhas da antiga cidade de Constantinopla foram rompidas pelo poderoso exército comandado por Mehmed II, sultão do império Otomano. A dissolução do regime bizantino de quase mil anos de duração, alterou drasticamente os rumos da história ocidental. Uma nova rota comercial foi criada tendo como protagonistas Portugal e Espanha, os primeiros territórios unificados da Europa feudal.

Como principais potências comerciais do final do século XV, Portugal e Espanha, se lançam ao mar na conquista de novas rotas às cobiçadas especiarias na Ásia. É nesse cenário de conquistas e pilhagem que o Brasil aparece no mapa de região dominada e explorada pela coroa portuguesa. Embora a história oficial queira mostrar que o Brasil teria sido descoberto pelos portugueses em 22 de abril de 1500, outras versões dão conta de que o território além mar, já estava na mira dos comerciantes e da nobreza portuguesa e espanhola há muito tempo. As versões contrárias às oficiais são muito convincentes. No entanto, os livros didáticos, ainda preservam o discurso oficial, exceto alguns que lançam reflexões para proporcionar o debate em sala de aula.

Tanto a Turquia quanto a África do Sul, ambos são países considerados estratégicos para a ocupação do Brasil pelos Portugueses.  E por que a África do Sul? Embora já tivesse em incontáveis oportunidades mencionadas aos estudantes, a Cidade do Cabo, na África do Sul, aonde o navegador português Vasco da Gama chegou primeiro, inaugurando uma nova rota comercial entre oceano atlântico e índico.  Posteriormente, Pedro Álvares Cabral seguiu a mesma rota, cuja história oficial descreve que possíveis calmarias tenham deixado as naus à deriva no oceano atlântico. Esse fenômeno climático resultou na “imprevista” chegada da esquadra de Cabral à costa marítima de Cabrália, sul da Bahia.

Em 2014 tive a oportunidade de conhecer a África do Sul. Entre as cidades visitadas, não poderia deixar de estar na Cidade do Cabo, com visita obrigatória ao ponto mais extremo do continente, o cabo da boa esperança ou cabo das tormentas. Na ocasião, fiz algumas pesquisas para saber mais sobre aquela região, entender também por que os portugueses não a tomaram, tornando-a uma possessão lusitana? Uma das explicações a não colonização foi à ausência de água em abundância, bem como a forte resistência das tribos locais, que expulsaram os invasores. Pode estar, portanto, na escassez de água, o motivo pelo qual a coroa portuguesa ter decido estabelecer o domínio sobre o Brasil, pois água havia em abundância.  

Cinco anos depois de ter tido a oportunidade de visitar à África do Sul, que me oportunizou em fazer algumas reflexões sobre a importância daquele país nos desdobramentos que resultaram na chegada dos portugueses no Brasil, agora teria chegado a vez de ir à Turquia. Nas aulas de história, quando se trabalhava as grandes civilizações, temas como o império romano, o império bizantino e o cisma do oriente, eram obrigatórios e estavam presentes nos currículos das escolas do ensino fundamental e médio.

No meu imaginário como de muitos profissionais da área de ciências humanas a Turquia sempre gerou um fascínio por ser um país cujos limites territoriais estão situados em dois hemisférios, o ocidental e oriental. Nas aulas se discutia com os estudantes, que mesmo depois de ter sucumbido o império romano do ocidente no ano de 476, cuja capital era Roma, o império romano do oriente ou império Bizantino, permaneceu intacto por quase 1000 anos, cuja capital era Constantinopla. Além de uma estável estrutura política organizacional, o império romano do oriente conseguiu resistir às investidas bárbaras devido a sua quase intransponível muralha, que foi ampliada pelo imperador romano Constantino.

Mesmo com todo o arcabouço documental disponível, bem como os longos anos de formação acadêmica, especializações, congressos, seminários e outros eventos do gênero, ambos não superam o contato direto com as fontes, a vivência concreta com os objetos históricos, a arquitetura dos templos, dos monumentos, das catedrais, das mesquitas, etc, etc. Visitar a Turquia era a oportunidade impar para coroar minha longa carreira de professor historiador.

No primeiro dia na cidade de Istambul, uma das principais metrópoles da Europa com cerca de 20 milhões de habitantes, o tour teve início pela praça principal onde estavam distribuídos majestosos e imponentes monumentos, onde antes havia um hipódromo da era bizantina. Com certeza, o hipódromo era considerado um dos locais mais importantes da cidade, onde eram realizadas corridas de bigas, puxadas a cavalo. Com base em achados arqueológicos, acredita-se que o estádio acomodava cerca de 100 mil expectadores para acompanhar os eventos.

O mais imponente dos monumentos ali existente se chama o templo de Karnak de luxor, construído em 1490 aC. Por ser um objeto de grande tamanho, o imperador Teodósio, em 390 d.C, recomendou que o mesmo fosse divido em três partes. No entanto, somente veio para Constantinopla a parte mais alta do obelisco.

No século X, o imperador Constantino VII, mandou construir outro obelisco, coberto de placas de bronze dourado. Com o ensejo das cruzadas parte desse monumento foi danificado. Para dar mais visibilidade ao seu reinado, Constantino decidiu trazer da Grécia uma coluna serpentina, monumento esse construído pelos gregos para celebrar a vitória contra os Persas durante as guerras médicas. Não se contentando com tais monumentos, no século V, outro imperador, também de nome Constantino, trouxe da Grécia outra coluna serpentina, do templo de Apolo. O enorme objeto foi trazido de Delfos até Constantinopla. 

Saindo de onde antes era o antigo hipódromo, fomos à igreja de Santa Sofia, que se transformou em mesquita na época do império Otomano. Com proclamação da República Turca, a igreja foi transformada em museu em 1934. A igreja guarda na sua estrutura, decorações e traços arquitetônicos importantes do passado. A imponente catedral foi erguida entre 532-537, ou seja, há mais de mil anos, pelo imperador Justiniano. Santa Sofia ou Hagia Sophia, em grego, foi dedicada a sabedoria de Deus. Foram cinco anos o tempo necessário para finalizá-la. Para erguê-la, mais de dez mil trabalhadores foram contratados para a execução da obra.

Nessa época o imperador Justiniano proibiu o paganismo e aceitou o cristianismo como religião oficial. A história do cristianismo na Turquia data da época do imperador Constantino I. A mãe do imperador se converteu ao cristianismo e ela mesma foi até Jerusalém encontrar a cruz da qual foi utilizada para crucificar Jesus Cristo. Quando ela o encontrou, levou-a para Constantinopla. Constantino de posse do objeto sagrado decidiu construir a primeira igreja maior do mundo.

Como todas as igrejas faziam referência a algum santo, Santa Sofia foi designada como padroeira da dessa igreja. No entanto, a imagem da mesma foi esculpida em madeira, destruída pelo fogo anos depois como também a própria igreja. Entre 404 e 415, ou seja, onze anos, uma segunda igreja foi construída, na época do imperador TEODÓCIO. Para decorar o altar da igreja, contrataram uma nova estatua de Santa Sofia, agora de mármore Branco. Cerca de um século mais tarde, outro episódio pôs abaixo a igreja. Dessa vez foi um conflito conhecido como guerra NICA. Novamente o busto da imagem de Santa Sofia foi destruído. 

Até hoje no imaginário social de milhões de pessoas no mundo inteiro, tem a certeza que Santa Sofia, nome dado à igreja do mesmo na época bizantina, hoje Turquia, é a representação de uma divindade. Nada disso é compatível aos fatos. Santa Sofia, na realidade, não era uma santa, e sim uma deusa, divina sabedoria, interpretação dada à palavra grega Sophia. Por mil anos a igreja se manteve sobre égide do clero cristão. Em 1453, quando os Turcos Otomanos ocupam Constantinopla, transformam a catedral em uma mesquita muçulmana. O domínio muçulmano sobre a antiga catedral cristã perdurou por quinhentos anos, quando em 1953, com a elevação da Turquia a condição de República, a igreja/mesquita, foi convertida em um museu.

Quando adentrei a igreja/museu, fiquei extasiado com a capacidade humana de idealizar algo tão majestoso e simbólico, que permanece viva até hoje. As decorações de imagens em mármores, os imponentes lustres, os detalhes das colunas e a enorme cúpula da basílica, ambas deixam qualquer um hipnotizado. Quando a basílica foi convertida em mesquita, os principais símbolos cristãos cristãs foram rasurados. As imagens foram cobertas com gesso, enquanto a cruz foi realizada pinturas sobre a mesma, deixando-a quase imperceptível aos olhos de todos. Todas as imagens como as cruzes distribuídas nos espaços da basílica foram decoradas em mosaico, na época bizantina. Quando convertida em museu, tanto o gesso e algumas pinturas que cobriam imagens cristãs foram removidos.

Os imponentes lustres, os cristais das lâmpadas, todos eram antigamente alimentados com azeite. Para facilitar o trabalho de alimentação das lâmpadas, no interior do que era antes uma basílica, havia jarros de mármore branco, onde o produto era depositado. Uma imagem desenhada em uma das paredes da catedral atraía a atenção dos que lá transitavam. Eram imagens representando três pessoas uma ao lado da outra. A imagem à direita estava o imperador Constantino I segurando a maquete de uma muralha que protegia Constantinopla. No meio, a virgem Maria sentada no trono com Jesus no colo. À esquerda, o imperador Justiniano, com a maquete da terceira basílica de Santa Sofia.

Tanto o primeiro quanto o segundo imperador, a explicação de estarem posicionados daquela forma na imagem na parede é porque queriam a proteção especial de Jesus cristo para não perderem as obras que mandaram construir.  Na saída da catedral, bem a frente do grande portão, um enorme espelho refletia a imagem da virgem Maria com os dois imperadores. A explicação era para que o público quando saísse da catedral apreciasse a imagem, pois a mesma estava disposta na parede inferior do grande portão.

Na época quando lá estivemos em nenhum momento a guia fez qualquer menção de que havia rumores de grupos muçulmanos com pretensões de tornar o museu em uma mesquita, como era antes de 1934. O ano de 2020 os burburinhos dessa possível retomada da antiga basílica em mesquita, ficou cada vez mais evidenciado. O que poderia acontecer na hipótese de o museu vir se transformar em um espaço religioso. Soava estranheza um país, majoritariamente muçulmano, possuir uma constituição republicana, laico, ter de ceder a um culto específico, espaço que agrega todas as religiões, pois ali transitam nas suas dependências milhões de pessoas todos os anos.   

Afinal, o que teria motivado esse possível e questionável retorno à mesquita? A verdade é que um grande problema estaria se criando a partir daí. Os cristãos do mundo inteiro, principalmente de corrente ortodoxas, certamente reagiriam inconformados com essa possível retomada de um espaço construído por cristãos e que permaneceu como templo cristão por cerca de mil anos. 

O que realmente motivou o retorno da catedral à mesquita foi política, como sempre acontece, são só envolvendo o islamismo, também acontece entre os cristãos. Desde 1934, com a criação da república turca, espaços religiosos importantes como a mesquita azul e a catedral de Santa Sofia viraram museus. Com a ascensão de Recep Tayypi Erdogan, de linha conservadora, mudanças começaram a ocorrer no país, agradando grupos religiosos conservadores.

Com o agravamento da crise econômica, o regime autoritário de Erdogan cresce em impopularidade. A oposição vence as eleições para as prefeituras de cidades importantes, a capital Ancara.  Cada vez mais enfraquecido e receoso de perder o mandato em 2023, quando eleições para o executivo ocorrerão no país, o presidente ensaia uma aproximação com grupos muçulmanos radicais. Para agradá-los e receber o apoio necessário, promete converter o museu, antiga basílica de Santa Sofia em mesquita, fato que ocorreu em 10 de julho de 2020, por meio de decreto.

A partir desse decreto, o museu volta a ser uma mesquita. A própria UNESCO lançou críticas à decisão, pelo fato de ter tornado o local patrimônio cultural da humanidade em 1985. A entidade ameaçou retirar o título de patrimônio.    O que é de fato relevante nesse episódio é que haverá o aguçamento das tensões entre cristãos e muçulmanos, decorrente dessa absurda decisão do presidente turco.

A resposta que muitos certamente gostariam de saber é com relação aos desenhos e símbolos cristãos presentes na atual mesquita. Serão ou não preservados? Desde que a construção virou museu, um intenso trabalho envolvendo profissionais conseguiram resgatar imagens cristãs cobertas com gesso ou tapetes. O futuro do local onde por cerca de mil anos foi um templo cristão, e mais quinhentos anos, mesquita muçulmana, passa a ser uma incógnita. 

Prof. Jairo Cezar

https://ensinarhistoriajoelza.com.br/linha-do-tempo/inauguracao-santa-sofia-constantinopla/

https://terraavista.blogosfera.uol.com.br/2020/07/19/turquia-por-que-santa-sofia-voltou-a-ser-mesquita-e-o-que-isso-significa/

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