MILENAR IGREJA BIZANTINA DE SANTA SOPHIA, EM ISTAMBUL, VOLTA A SER MESQUITA MUÇULMANA
Nas
aulas de história sobre a ocupação do Brasil pelos portugueses, para
compreender melhor os desdobramentos que
resultaram nesse feito, sempre foi imprescindível retornar aos meados do século
XV, na cidade de Constantinopla, hoje Istambul. E por que razão. A razão é
comercial. Antes de 1453, quando os Turcos Otomanos ocuparam a cidade
construída pelo imperador Constantino I, na época o império Bizantino, havia um
forte entreposto comercial na região. Produtos de grande valor comercial, como
tecido e especiarias trazidos em lombos de camelos do meio oriente, tinham a
cidade de Constantinopla como mercado distribuidor.
Do
ocidente iam caravanas com produtos que também eram comercializados nesse
grande shopping a céu aberto. Tanto o ocidente quanto o oriente estavam
experimentando novos hábitos de consumo. No ocidente, o sistema de produção
feudal estava em declínio. Uma nova classe social se despontava impulsionada
pelo comércio praticado nos arredores dos feudos. Os comerciantes venezianos,
genoveses e dos principados do atual Portugal e Espanha, entre outros
territórios da atual Europa, empreenderam fortunas com os produtos adquiridos
por meio dessa rota cujo centro era Constantinopla.
O
esplendor do comércio oriente e ocidente sofreu um grande revés quando as quase
impenetráveis muralhas da antiga cidade de Constantinopla foram rompidas pelo
poderoso exército comandado por Mehmed II, sultão do império Otomano. A dissolução
do regime bizantino de quase mil anos de duração, alterou drasticamente os
rumos da história ocidental. Uma nova rota comercial foi criada tendo como
protagonistas Portugal e Espanha, os primeiros territórios unificados da Europa
feudal.
Como
principais potências comerciais do final do século XV, Portugal e Espanha, se
lançam ao mar na conquista de novas rotas às cobiçadas especiarias na Ásia. É
nesse cenário de conquistas e pilhagem que o Brasil aparece no mapa de região
dominada e explorada pela coroa portuguesa. Embora a história oficial queira
mostrar que o Brasil teria sido descoberto pelos portugueses em 22 de abril de
1500, outras versões dão conta de que o território além mar, já estava na mira
dos comerciantes e da nobreza portuguesa e espanhola há muito tempo. As versões
contrárias às oficiais são muito convincentes. No entanto, os livros didáticos,
ainda preservam o discurso oficial, exceto alguns que lançam reflexões para
proporcionar o debate em sala de aula.
Tanto
a Turquia quanto a África do Sul, ambos são países considerados estratégicos
para a ocupação do Brasil pelos Portugueses.
E por que a África do Sul? Embora já tivesse em incontáveis oportunidades
mencionadas aos estudantes, a Cidade do Cabo, na África do Sul, aonde o
navegador português Vasco da Gama chegou primeiro, inaugurando uma nova rota
comercial entre oceano atlântico e índico.
Posteriormente, Pedro Álvares Cabral seguiu a mesma rota, cuja história
oficial descreve que possíveis calmarias tenham deixado as naus à deriva no
oceano atlântico. Esse fenômeno climático resultou na “imprevista” chegada da
esquadra de Cabral à costa marítima de Cabrália, sul da Bahia.
Em
2014 tive a oportunidade de conhecer a África do Sul. Entre as cidades
visitadas, não poderia deixar de estar na Cidade do Cabo, com visita
obrigatória ao ponto mais extremo do continente, o cabo da boa esperança ou
cabo das tormentas. Na ocasião, fiz algumas pesquisas para saber mais sobre aquela
região, entender também por que os portugueses não a tomaram, tornando-a uma
possessão lusitana? Uma das explicações a não colonização foi à ausência de
água em abundância, bem como a forte resistência das tribos locais, que
expulsaram os invasores. Pode estar, portanto, na escassez de água, o motivo
pelo qual a coroa portuguesa ter decido estabelecer o domínio sobre o Brasil,
pois água havia em abundância.
Cinco
anos depois de ter tido a oportunidade de visitar à África do Sul, que me
oportunizou em fazer algumas reflexões sobre a importância daquele país nos
desdobramentos que resultaram na chegada dos portugueses no Brasil, agora teria
chegado a vez de ir à Turquia. Nas aulas de história, quando se trabalhava as
grandes civilizações, temas como o império romano, o império bizantino e o
cisma do oriente, eram obrigatórios e estavam presentes nos currículos das
escolas do ensino fundamental e médio.
No
meu imaginário como de muitos profissionais da área de ciências humanas a
Turquia sempre gerou um fascínio por ser um país cujos limites territoriais
estão situados em dois hemisférios, o ocidental e oriental. Nas aulas se
discutia com os estudantes, que mesmo depois de ter sucumbido o império romano
do ocidente no ano de 476, cuja capital era Roma, o império romano do oriente
ou império Bizantino, permaneceu intacto por quase 1000 anos, cuja capital era
Constantinopla. Além de uma estável estrutura política organizacional, o
império romano do oriente conseguiu resistir às investidas bárbaras devido a
sua quase intransponível muralha, que foi ampliada pelo imperador romano
Constantino.
Mesmo
com todo o arcabouço documental disponível, bem como os longos anos de formação
acadêmica, especializações, congressos, seminários e outros eventos do gênero, ambos
não superam o contato direto com as fontes, a vivência concreta com os objetos
históricos, a arquitetura dos templos, dos monumentos, das catedrais, das
mesquitas, etc, etc. Visitar a Turquia era a oportunidade impar para coroar
minha longa carreira de professor historiador.
No
primeiro dia na cidade de Istambul, uma das principais metrópoles da Europa com
cerca de 20 milhões de habitantes, o tour teve início pela praça principal onde
estavam distribuídos majestosos e imponentes monumentos, onde antes havia um
hipódromo da era bizantina. Com certeza, o hipódromo era considerado um dos
locais mais importantes da cidade, onde eram realizadas corridas de bigas,
puxadas a cavalo. Com base em achados arqueológicos, acredita-se que o estádio
acomodava cerca de 100 mil expectadores para acompanhar os eventos.
O
mais imponente dos monumentos ali existente se chama o templo de Karnak de
luxor, construído em 1490 aC. Por ser um objeto de grande tamanho, o imperador
Teodósio, em 390 d.C, recomendou que o mesmo fosse divido em três partes. No
entanto, somente veio para Constantinopla a parte mais alta do obelisco.
No
século X, o imperador Constantino VII, mandou construir outro obelisco, coberto
de placas de bronze dourado. Com o ensejo das cruzadas parte desse monumento
foi danificado. Para dar mais visibilidade ao seu reinado, Constantino decidiu
trazer da Grécia uma coluna serpentina, monumento esse construído pelos gregos
para celebrar a vitória contra os Persas durante as guerras médicas. Não se
contentando com tais monumentos, no século V, outro imperador, também de nome
Constantino, trouxe da Grécia outra coluna serpentina, do templo de Apolo. O
enorme objeto foi trazido de Delfos até Constantinopla.
Saindo
de onde antes era o antigo hipódromo, fomos à igreja de Santa Sofia, que se
transformou em mesquita na época do império Otomano. Com proclamação da
República Turca, a igreja foi transformada em museu em 1934. A igreja guarda na
sua estrutura, decorações e traços arquitetônicos importantes do passado. A imponente
catedral foi erguida entre 532-537, ou seja, há mais de mil anos, pelo
imperador Justiniano. Santa Sofia ou Hagia Sophia, em grego, foi dedicada a
sabedoria de Deus. Foram cinco anos o tempo necessário para finalizá-la. Para
erguê-la, mais de dez mil trabalhadores foram contratados para a execução da
obra.
Nessa
época o imperador Justiniano proibiu o paganismo e aceitou o cristianismo como
religião oficial. A história do cristianismo na Turquia data da época do
imperador Constantino I. A mãe do imperador se converteu ao cristianismo e ela
mesma foi até Jerusalém encontrar a cruz da qual foi utilizada para crucificar
Jesus Cristo. Quando ela o encontrou, levou-a para Constantinopla. Constantino
de posse do objeto sagrado decidiu construir a primeira igreja maior do mundo.
Como
todas as igrejas faziam referência a algum santo, Santa Sofia foi designada
como padroeira da dessa igreja. No entanto, a imagem da mesma foi esculpida em
madeira, destruída pelo fogo anos depois como também a própria igreja. Entre
404 e 415, ou seja, onze anos, uma segunda igreja foi construída, na época do
imperador TEODÓCIO. Para decorar o altar da igreja, contrataram uma nova
estatua de Santa Sofia, agora de mármore Branco. Cerca de um século mais tarde,
outro episódio pôs abaixo a igreja. Dessa vez foi um conflito conhecido como
guerra NICA. Novamente o busto da imagem de Santa Sofia foi destruído.
Até
hoje no imaginário social de milhões de pessoas no mundo inteiro, tem a certeza
que Santa Sofia, nome dado à igreja do mesmo na época bizantina, hoje Turquia, é
a representação de uma divindade. Nada disso é compatível aos fatos. Santa
Sofia, na realidade, não era uma santa, e sim uma deusa, divina sabedoria,
interpretação dada à palavra grega Sophia. Por mil anos a igreja se manteve
sobre égide do clero cristão. Em 1453, quando os Turcos Otomanos ocupam
Constantinopla, transformam a catedral em uma mesquita muçulmana. O domínio
muçulmano sobre a antiga catedral cristã perdurou por quinhentos anos, quando
em 1953, com a elevação da Turquia a condição de República, a igreja/mesquita,
foi convertida em um museu.
Quando
adentrei a igreja/museu, fiquei extasiado com a capacidade humana de idealizar algo
tão majestoso e simbólico, que permanece viva até hoje. As decorações de
imagens em mármores, os imponentes lustres, os detalhes das colunas e a enorme
cúpula da basílica, ambas deixam qualquer um hipnotizado. Quando a basílica foi
convertida em mesquita, os principais símbolos cristãos cristãs foram rasurados.
As imagens foram cobertas com gesso, enquanto a cruz foi realizada pinturas sobre
a mesma, deixando-a quase imperceptível aos olhos de todos. Todas as imagens
como as cruzes distribuídas nos espaços da basílica foram decoradas em mosaico,
na época bizantina. Quando convertida em museu, tanto o gesso e algumas
pinturas que cobriam imagens cristãs foram removidos.
Os
imponentes lustres, os cristais das lâmpadas, todos eram antigamente alimentados
com azeite. Para facilitar o trabalho de alimentação das lâmpadas, no interior
do que era antes uma basílica, havia jarros de mármore branco, onde o produto
era depositado. Uma imagem desenhada em uma das paredes da catedral atraía a
atenção dos que lá transitavam. Eram imagens representando três pessoas uma ao
lado da outra. A imagem à direita estava o imperador Constantino I segurando a
maquete de uma muralha que protegia Constantinopla. No meio, a virgem Maria sentada
no trono com Jesus no colo. À esquerda, o imperador Justiniano, com a maquete
da terceira basílica de Santa Sofia.
Tanto
o primeiro quanto o segundo imperador, a explicação de estarem posicionados
daquela forma na imagem na parede é porque queriam a proteção especial de Jesus
cristo para não perderem as obras que mandaram construir. Na saída da catedral, bem a frente do grande
portão, um enorme espelho refletia a imagem da virgem Maria com os dois
imperadores. A explicação era para que o público quando saísse da catedral
apreciasse a imagem, pois a mesma estava disposta na parede inferior do grande
portão.
Na
época quando lá estivemos em nenhum momento a guia fez qualquer menção de que
havia rumores de grupos muçulmanos com pretensões de tornar o museu em uma
mesquita, como era antes de 1934. O ano de 2020 os burburinhos dessa possível
retomada da antiga basílica em mesquita, ficou cada vez mais evidenciado. O que
poderia acontecer na hipótese de o museu vir se transformar em um espaço
religioso. Soava estranheza um país, majoritariamente muçulmano, possuir uma
constituição republicana, laico, ter de ceder a um culto específico, espaço que
agrega todas as religiões, pois ali transitam nas suas dependências milhões de
pessoas todos os anos.
Afinal,
o que teria motivado esse possível e questionável retorno à mesquita? A verdade
é que um grande problema estaria se criando a partir daí. Os cristãos do mundo
inteiro, principalmente de corrente ortodoxas, certamente reagiriam
inconformados com essa possível retomada de um espaço construído por cristãos e
que permaneceu como templo cristão por cerca de mil anos.
O
que realmente motivou o retorno da catedral à mesquita foi política, como
sempre acontece, são só envolvendo o islamismo, também acontece entre os
cristãos. Desde 1934, com a criação da república turca, espaços religiosos
importantes como a mesquita azul e a catedral de Santa Sofia viraram museus.
Com a ascensão de Recep Tayypi Erdogan, de linha conservadora, mudanças
começaram a ocorrer no país, agradando grupos religiosos conservadores.
Com
o agravamento da crise econômica, o regime autoritário de Erdogan cresce em
impopularidade. A oposição vence as eleições para as prefeituras de cidades
importantes, a capital Ancara. Cada vez
mais enfraquecido e receoso de perder o mandato em 2023, quando eleições para o
executivo ocorrerão no país, o presidente ensaia uma aproximação com grupos
muçulmanos radicais. Para agradá-los e receber o apoio necessário, promete
converter o museu, antiga basílica de Santa Sofia em mesquita, fato que ocorreu
em 10 de julho de 2020, por meio de decreto.
A
partir desse decreto, o museu volta a ser uma mesquita. A própria UNESCO lançou
críticas à decisão, pelo fato de ter tornado o local patrimônio cultural da
humanidade em 1985. A entidade ameaçou retirar o título de patrimônio. O que é de fato relevante nesse episódio é que
haverá o aguçamento das tensões entre cristãos e muçulmanos, decorrente dessa
absurda decisão do presidente turco.
A
resposta que muitos certamente gostariam de saber é com relação aos desenhos e
símbolos cristãos presentes na atual mesquita. Serão ou não preservados? Desde
que a construção virou museu, um intenso trabalho envolvendo profissionais
conseguiram resgatar imagens cristãs cobertas com gesso ou tapetes. O futuro do
local onde por cerca de mil anos foi um templo cristão, e mais quinhentos anos,
mesquita muçulmana, passa a ser uma incógnita.
Prof.
Jairo Cezar
https://ensinarhistoriajoelza.com.br/linha-do-tempo/inauguracao-santa-sofia-constantinopla/
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