quinta-feira, 26 de abril de 2018


A REFORMA DO ENSINO MÉDIO É UM ATAQUE FRONTAL AO CURRÍCULO, A DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO


Atualmente não tenho dúvidas que a decisão por mim tomada há mais de trinta anos em escolher história como carreira docente, teve como motivação as aulas de sociologia oferecidas no terceiro ano do ensino médio.  Seguramente o processo de maturação, criticidade e compreensão dos fenômenos sociais, poderia ter se processado mais precocemente, se no ensino infantil e fundamental o currículo tivesse sido incluídas as disciplinas de sociologia e filosofia. Terminando a universidade e de imediato ingressando como docente na rede pública estadual, todos os finais de bimestres ou ano letivo, parcela expressiva dos/as professores/as compartilhavam da mesma opinião, afirmando que as dificuldades dos/as estudantes na análise crítica dos episódios históricos, bem como interpretação dos conceitos matemáticos, físicos e químicos, se deviam a ausência das disciplinas sociologia e filosofia nas primeiras fases do processo educativo.
Com a inclusão dessas respectivas áreas do conhecimento no currículo do ensino médio, que se deu em 2009, houve mudanças significativas no processo comportamental e social do estudante, porém, os resultados no campo avaliativo global das instituições não demonstraram ser tão contundentes, pelo fato do modelo pedagógico permanecer impregnado de vícios históricos. Os maus resultados, porém, não devem ser atribuídos aos profissionais ou as instituições de ensino, como insistem apregoar os governos e as mídias conservadoras atreladas aos detentores do poder.
Infelizmente quando é pensado e montado um currículo, seus mentores costumeiramente dão mais ênfase a certas disciplinas que outras, contendo cargas horárias maiores. Esse fracionamento desigual e discriminatório corrobora para o desencadeamento de atritos e tensões entre os profissionais.   Em sociedades repressoras excludentes como a brasileira, a construção do currículo segue sempre um viés funcional anti-rupturas. A construção de cidadãos/ãs críticos e comprometidos com a transformação social são prerrogativas que embora estejam inseridas nos PPPS e Propostas Curriculares, se configuram como conceitos vazios frente ao modelo tradicional de educação que insiste permanecer.
É claro que a sociologia e a filosofia têm as suas próprias epistemologias, pautadas em metodologias de desconstrução de praticas burgueses de dominação e controle social. A escola deve ser concebida como estrutura que converge todas as manifestações e tensões sociais.  Não há como impedir ou achar que construindo enormes muros ou instalando câmaras de vigilância, torne as escolas protegidas da violência, das injustiças que contaminam todo cenário nacional.   Não devemos ser ingênuos ao ponto de acreditar que a sociologia, matemática, biologia, física, etc., são áreas do saber neutras dentro de qualquer contexto político social. A própria neutralidade no campo pedagógico já tende a se caracterizar como um ato político, a favor ou contra o modelo vigente estrutura.
Aqui está, talvez, um dos tantos motivos que estão despertando a ira de movimentos políticos conservadores como o arque-conservador “Escola Sem Partido”, que, insistentemente, vem pressionando o congresso nacional e o poder executivo para agilizar reformas como a do ensino médio.  O desejo é enorme para erradicar disciplinas do currículo como sociologia e filosofia, que chegam ao extremo de utilizar as mídias para convencer a opinião pública de que os baixos rendimentos em matemática, português, entre outras, sobretudo nos exames do ENEM, são devidos ao elevado volume de disciplinas desnecessárias, que sobrecarregam o currículo.
E olha que tais postulados toscos lançados são respaldados por jornais como Folha de São Paulo, que publicou em 16 de abril de 2018 reportagem contendo o seguinte título: filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática.[1] Quem está distante do cotidiano das salas de aula ou tem dificuldade de refletir criticamente reportagens como essa publicada pela folha, avaliada como tendenciosa, passa a acreditar, criando sentimentos de demonização contra disciplinas e profissionais dessas áreas.
Pode ser que o argumento manifestado pelo jornal em defender a publicação da reportagem, se fundamente por conter dados obtidos por pesquisadores/as, membros de organizações e universidades. Num dos parágrafos do texto, os/as pesquisadores/as foram unânimes em afirmar que em decorrência da reduzida carga horária no ensino médio, a inserção de novas disciplinas (sociologia e filosofia) refletiu negativamente no ensino das demais áreas, como matemática e linguagens. O que é curioso nessa publicação é que em nenhum momento o jornal se prestou a ouvir algum integrante ou representante dessas duas disciplinas, para ouvir suas argumentações sobre o que afirmaram os pesquisadores.
Oito dias depois da Folha de São Paulo ter publicado a bombástica reportagem sobre os impactos negativos da filosofia e sociologia no desempenho das demais disciplinas, a revista digital Carta Capital, rebate acintosamente o texto do jornal paulista, contendo a seguinte manchete: qual o interesse em retirar Sociologia e Filosofia do currículo? A autora do texto argumenta que o material publicado pelo jornal peca em vários aspectos, especialmente no metodológico, pois os dados ou resultados obtidos por estudantes são fundamentados em exames do Enem. Ficou excluída da pesquisa aspecto importante como a precariedade do sistema público de ensino, enraizado em um modelo tradicional, fragmentado, conteudista e excludente de aprendizagem.[2]
Enquanto as legislações e planos educacionais dão relevância a uma aprendizagem integral, interdisciplinar, com temas e metodologias que estimulem a investigação e a contextualizarem, o que acontece no dia a dia da escola, com raras exceções, são aulas guiadas por livros didáticos ou apostilas, apresentando uma única finalidade, os exames do ensino médio. É claro que baseado nesse modelo de ensino e avaliação, os resultados no desempenho não poderiam ser diferentes. Agora alegar o excesso de disciplinas ou a incipiente carga horária do currículo do ensino médio às baixas notas obtidas no ENEM em disciplinas como matemática, é de certo modo um argumento malicioso.           
Quando pesquisas são publicadas por instituições e profissionais de renomada competência técnica, costumeiramente nem se questiona o método aplicado, muito menos os resultados. No caso da pesquisa realizada sobre maus resultados nas avaliações do ENEM alegando o excesso de disciplinas, poderia até passar despercebida e dar como verdadeira, inquestionável, se não houvesse elementos suspeitos na mesma. Estamos nos referido a um dos envolvidos no trabalho, que segundo informações divulgadas, é apoiador do movimento escola sem partido e, também, conselheiro econômico do pré-candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro.
Esse dado faz sim muita diferença no conjunto da pesquisa. É sabido que a reforma do ensino médio tende a ajustar o currículo do ensino básico seguindo os preceitos do sistema capitalista de produção. Até aqui isso não é mais segredo para ninguém. O fato é que a prevalência de disciplinas focadas no campo da lógica e da tecnologia são partes importantes desse programa reformista em curso no Brasil.
A tendência é as escolas públicas brasileiras tornarem-se extensões das empresas (Sistema 5-S) formando trabalhadores, técnicos, como mão-de-obra barata e descartável.  Portanto, para o mercado, o modelo de escola vigente é incompatível com os preceitos modernistas exigidos pelos donos do capital. A promoção de reformas pontuais, compatibilizando baixa disponibilidade de recursos, eficiência técnica e qualidade na produção, são princípios norteadores desse complexo sistema chamado capitalismo.
A diminuição da oferta de disciplinas faz parte desse contraditório e conturbado arcabouço produtivo patrocinado pelo sistema financeiro global. Os estados, pressionados para a quitação de suas dívidas públicas, executam seus programas de reformas estruturais. O ajuste fiscal é uma dessas medidas, limitando investimentos em setores estratégicos como saúde e educação. A pesquisa apresentada pelo jornal pode estar condicionada a fins específicos, ou seja, convencer a opinião pública de que um problema (notas baixas em matemática nos exames do ENEM) pede ter relação com o número elevado de disciplinas no currículo, e não o modelo de escola e de ensino ultrapassados.
Já que o reforma do ensino médio está na sua fase conclusiva, os governos aproveitam de artifícios espúrios para fazer valer uma reforma à luz do mercado, que não ficou imune às críticas e aos protestos, tamanho o retrocesso que provocará à educação. Se não houver uma pressão mais consistente dos/as profissionais das áreas que estão no centro do epicentro do desmonte, desconstruindo o aparte de inverdades disseminadas, é provável que o texto final do documento, as mesmas (filosofia e sociologia) já estejam excluídas.
Para o movimento Escola Sem Partido, composto por integrantes e apoiadores, um ensino médio o mais enxuto possível é a porta do sucesso para suas pretensões políticas e econômicas. Os governos estaduais torcem para que as investidas desses seguimentos conservadores tenham sucesso. A aprovação de um documento do ensino médio, que minimize ao máximo a oferta de disciplinas e a carga horária, irá contemplar com os programas reformistas em curso.  A PEC (Proposta de Emenda Constitucional 95) que congela investimentos em educação e saúde por cerca de 20 anos são uns dos itens desse pacato de maldades. Terceirização, assinatura de convênios, flexibilização dos contratos, ensino a distância, redução da oferta de disciplinas nos currículos, são alguns exemplos de maldades contidos no grande pacote de ajustes neoliberais.
 Tanto no decurso de implantação da BNCC, como no decreto de reforma do ensino médio, ínfima foram as manifestações de resistência de toda a categoria em escala nacional, onde deveria ter redundado em paralisação por tempo indeterminado. Houve, no entanto, manifestações isoladas, que pouco ou nada alterou as diretrizes liberais descritas nos planos.
Nessa faze de tramitação da base curricular comum para o ensino médio, o que está em jogo é a oferta ou não de disciplinas no currículo como Artes, História, Educação Física, Sociologia e Filosofia. Em nenhum momento, profissionais dessas respectivas áreas se propuseram fazer algum tipo de manifestação, repudiando as aberrações e os ataques contra o currículo e a carreira docente. A possível supressão de disciplinas no currículo, como da sociologia e filosofia, é conseqüência da pressão dos movimentos ultraconservadores infiltrados nas instâncias de decisões dos poderes constituídos.
As bancadas conservadoras no congresso, o movimento escola sem partido, MEC, associações empresariais, entre outras entidades de caráter privatista como o todos pela educação, estão à frente desse violento processo de desmonte da escola pública, afetando milhões de pessoas. Resistir a tudo isso é necessário, é urgente. A articulação de encontros com profissionais das áreas afetadas, junto com outros, solidários à causa, pode se constituir em excelente estratégia para o debate e tomada de decisões. A elaboração de manifestos e a coleta de milhares de assinaturas, contrários a exclusão de áreas no currículo, pode se configurar em um extraordinário instrumento de luta em defesa de um currículo mais democrático e transformador.
Prof. Jairo Cezar
     


[1] https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/04/filosofia-e-sociologia-obrigatorias-derrubam-notas-em-matematica.shtml
[2] https://www.cartacapital.com.br/politica/qual-o-interesse-em-retirar-sociologia-e-filosofia-do-curriculo

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