quarta-feira, 25 de maio de 2016


O PRINCÍPIO DO SAGRADO MOLDANDO O IMAGINÁRIO SOCIAL DO POVO ARARANGUAENSE

Antiga sede do Hospital Bom Pastor - Arararnguá (1956)
Arquivo do Centro Cultural Histórico de Araranguá[1]

Para entender os desdobramentos políticos, econômicos e sociais de cidades históricas brasileiras importantes como Araranguá, descortinada na primeira metade do século XVIII por ter se tornado caminho ou travessia de tropeiros para as feiras de são Paulo, é necessário mergulhar no mundo místico da religião oficial da época, o catolicismo, e decifrar o extraordinário poder de persuasão nos cenários público e privado brasileiro. O antigo povoado Capão da Espera, depois Campinas do Sul e, finalmente, Araranguá, teve sua existência oficializada com a criação da Paróquia Nossa Senhora Mão dos Homens, uma prova categórica da autoridade simbólica personificada que permanece imortalizada no imaginário social há quase dois séculos.
Embora a primeira igreja tenha sido construída no povoado de Canjicas, hoje Hercílio Luz,isso em 1816, com o aumento da população na sede do distrito, Campinas do Sul, em 1856, o cidadão Albino Pereira de Souza e sua esposa Delfina Maria de Jesus, doaram pedaço de terra para que fosse erguida uma igreja iniciada em 1959,com a benção do terreno dada pelo Padre Antônio Nunes Barreto. A construção durou cinco anos, ou seja, sua inauguração ocorreu em 1864. No começo do século XX, Araranguá já constituída como município, a antiga igreja, não comportava mais o elevado fluxo de fieis que disputavam o pequeno espaço nas celebrações dominicais. Portanto, deram início as mobilizações para a edificação de um novo prédio, no mesmo local da anterior.
A demolição da antiga estrutura ocorreu em 1901, porém, foram necessários oito anos de intensos esforços para que em 1909, o prédio da nova matriz, mais espaçoso que o anterior,estivesse concluído e abençoado pelo pároco Ludovico Coccolo. Quem coordenou a obra da igreja matriz foi o construtor Germano Becker. O início do século XX,contrário ao século XIX,a hegemonia do catolicismo é confrontada pela presença de outras doutrinas de tendências cristãs e não cristãs. A consequência, portanto, foram as acirradas disputas na tentativa de atrair novos fiéis tendo em vista o fortalecimento de um prestigioso negócio simbólico autodenominado entreposto da fé. Era primordial, todavia, desatar o nó intangível de uma complexa rede de interesses diversos envolvendo Estado e instituição religiosa, ambos submetidos a um tipo específico de contrato simbólico, que demarcava território de domínio.
O contato com a pesquisa desenvolvida pelo professor Lúcio Vânio Moraes, cujo título Mercado Religioso e Práticas Pedagógicas: A Congregação de Santa Catarina no município de Araranguá-Sc (1951-1982), que lhe assegurou o doutorado em história pela UFSC. Sua obra historiográfica transitou por caminhos descontínuos e repletos de nuances políticas e ideológicas,dando a certeza que o papel da igreja católica, na época, era expandir suas fronteiras de domínio espiritual,ultrapassando os próprios limites do território demarcado pela igreja.
Numa época de limitações orçamentarias e enormes problemas sociais, onde o Estado por si só não possuía as mínimas condições para comportar serviços básicos essências como saúde e educação, o município de Araranguá intercedeu apoio à comunidade para colaborar na execução de obras públicas importantes como a construção de um hospital vindo a se chamar Hospital Bom Pastor. Se a proposta do estado republicano era forjar sujeitos adeptos nos preceitos da ordem e do progresso técnico e científico, os espaços públicos como hospitais, escolas, asilos, deveriam estar ajustados fisicamente e simbolicamente para cumprir tais objetivos.
Seguindo essa perspectiva, nada mais conveniente que entregar o controle da gestão hospitalar do Bom Pastor e do futuro Centro Educandário Madre Regina aos cuidados de uma congregação religiosa para exercer o papel sagrado de educar e curar os enfermos da alma e do corpo, conforme os desígnios previstos no regimento da congregação. Tanto as Irmãs da Congregação da Santa Catarina, como os párocos, ambos eram concebidos pelas comunidades desassistidas do interior como figuras imaculadas, “símbolos sagradas da fé”. Esse grau de confidencialidade entre os religiosos e a população produziu frenéticas disputas entre as facções políticas quanto a indicação de nomes para celebrações alusivas a padroeira do município. Estar inserido na lista de festeiros, integrar a alguma irmandade, carregar o andor da santa, etc., todas eram prerrogativas importantes que asseguraria aos pretendentes a cargos públicos reais possibilidades de ascensão.
Os próprios religiosos também se aproveitavam dessa condição que lhes eram convenientes para galgar cargos públicos. O Padre Antônio Luiz Dias foi um desses protagonistas que transitou por múltiplos setores do seguimento público, de Conselheiro ou Vereador Eleito, Secretário Municipal de Educação a Chefe de Saúde do Hospital Bom Pastor. Antes da transferência do Padre Antônio Luiz Dias para a paróquia de Araranguá, a pesquisado Professor Lúcio Vânio faz referência ao pároco Thiago M. Coccolini, um destacado e ardoroso defensor do catolicismo e combatente dos rituais não católicos, como o espiritismo, umbanda, cultos pentecostais,entre outros, no qual o padre categorizava tais seguidores de hereges, ateus.
Embora a construção do hospital bom pastor tenha se concretizado graças ao empenho da comunidade, seguimentos empresariais e de algumas personalidades de relevância como o Padre Antônio Luiz Dias, na inauguração do nosocômio, muitos políticos estiveram no ato, tal como o próprio governador Irineu Bornhausen. No entanto, depois das festividades, os problemas no hospital se avolumaram, com a falta de médicos e medicamentos, tendo as irmãs que se desdobrarem para suprir tal carência. Essa situação de caos na saúde do município de Araranguá continuou durante as décadas posteriores a inauguração. Um dos pontos importantes abordados na pesquisa do professor Lúcio trata do rompimento do contrato com a congregação das irmãs de Santa Catarina na administração do hospital, que veremos mais a frente.
Diante das circunstâncias que incapacitavam o poder público municipal em assegurar serviços públicos de qualidade que se constituíam como obrigação constitucional, como saúde, educação, etc..O jeito foi formalizar uma espécie de parceria público privado, que hoje conhecemos como terceirização. Concomitantemente a gestão da saúde era de responsabilidade de seguimentos da igreja católica, na educação o rito também vinha se repetindo. Não de modo integral, compreendendo todas as escolas, porém, parcialmente, na gestão do único e principal educandário, o Colégio Madre Regina, formador de professoras para o exercício sagrado da carreira docente.
Um fato curioso ocorrido anterior à inauguração do educandário Madre Regina, em 1956, foi que a primeira sala disponível para o exercício docente estava no interior de um antigo prédio de madeira em estado de abandono onde ficava o hospital bom pastor, construído em 1927. Os recursos para a restauração do ambiente foram custeados pela própria congregação. Depois de muitos esforços, sua inauguração ocorreu em 1956. Com o aumento da demanda, houve a necessidade de adquirir terreno próprio e lançar a pedra fundamental de uma nova edificação, maior que a primeira, com uma estrutura capaz de oferecer ensino não somente para normalista, como também os ginasianos. Portanto, em 1959 estava concluía a obra do educandário. Além do colégio Madre Regina, o colégio Nossa Senhora Mãe dos Homens, hoje Colégio Murialdo; Grupo Escolar Castro Alves, Grupo Escolar David do Amaral; entre outros tantos espalhados pelas comunidades e distritos do município de Araranguá.

Casa da congregação das irmãs de Santa Catariana – Arararanguá – 1962
Centro Histórico Cultura de Araranguá[2]

Interessante é que o grupo o colégio madre Regina, mesmo tendo uma designação de público, as irmãs tinham autonomia de tomar decisões seguindo suas próprias conveniências. Uma delas era a cobrança de taxas, mensalidades para alunos mais abastados,bem como estabelecer critérios de contratação de professores, obrigatoriamente ter vinculo religioso com o credo católico. Todo o ensino de preparação docente condicionava o currículo, no campo das disciplinas, de uma reformulação sistemática, conferindo as áreas do saber, matemática, geografia, história, etc. aos desígnios da doutrina cristã, da fé católica. Todas as escolas distribuídas pelo município havia a disciplina de educação religiosa, uma maneira salutar de intensificar ainda mais o poder de doutrinação da população.
E não foi exclusividade somente das escolas e da igreja o papel de doutrinação. As catequeses também contribuíram na difusão doutrinária, atuando com afinco em ambientes particulares, galpões, salões e outros cômodos, que oferecessem o mínimo desconforto para acomodar as crianças indefesas. Portanto, estava consolidado o “triunvirato”, reunindo três seguimentos, congregação das irmãs, párocos e poder público, ambos atuando objetivo e subjetivamente, moldando corpos infantis e adultos, como forma de amplificar o domínio territorial da fé católica no município. Para isso, seria necessário impulsionar uma verdadeira cruzada contra os infiéis, ou seja, aqueles que não cultuavam o credo católico. 
No inicio da década de 1980, a hegemonia da Congregação das Irmãs de Sta Catarina no domínio da saúde público chegaria ao fim. O rompimento do contrato com a congregação, segundo consta da obra do professor Lúcio Vânio, tem relação com os desentendimentos da instituição religiosa com o poder público. Em certo momento houve suspeita de que recursos oriundos do hospital estavam sendo desviados para outros empreendimentos da própria entidade. Porém, tais suspeitas jamais foram confirmadas. No entanto, o fato é que as irmãs se sentiram ofendidas com a divulgação das denúncias de suspeitas. Na gestão do prefeito Osmar Nunes, a pesquisa faz referência das tentativas de negociações entre a administração pública e a congregação acerca da transferência ou não do hospital para o controle definitivo da congregação. As tentativas foram infrutíferas. Um fato que marcou esse momento das negociações foi à posse de Martinho Herculano Ghizzo como administrador do Hospital.
Mesmo rendendo críticas acirradas à administração municipal, principalmente advindas do pároco local, Paulo Hobold, responsabilizando o poder público e a política local pelo desenlace negativo, um novo hospital foi construído, maior que o primeiro, e cujo homenageado, que teria seu nome descerrado na placa de inauguração, foi Affonso Ghizzo, ex-prefeito e pai do médico Martinho Ghizzo. Desde a sua inauguração até os dias atuais, o hospital regional passou por várias administrações. Foi gerenciado por congregações, universidades, Estado e, atualmente, por uma OS (Organizações da Sociedade Civil), ou seja, novamente terceirizado, como há 84 anos, quando da fundação do hospital Bom Pastor. De lá para cá, embora tenha perdido sua conotação de purificador do corpo e da alma, tornando-se oficialmente laico, por muitos anos se transformou em ambiente fisiológico, eleitoreiro, colocando frente a frente partidos e políticos oportunistas que se utilizavam da instituição para autopromoção ou assegurar a permanência de facções políticas no poder municipal e estadual.
Prof. Jairo Cezar




[1] http://www.uniedu.sed.sc.gov.br/wp-content/uploads/2014/04/LUCIO-VANIO-MORAES.pdf
[2] http://www.uniedu.sed.sc.gov.br/wp-content/uploads/2014/04/LUCIO-VANIO-MORAES.pdf



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