CASA GRANDE E SENZALA AINDA
PRESENTE NO CENÁRIO SOCIAL BRASILEIRO
Por quase quatro séculos o Brasil
teve a sua história forjada pelo trabalho degradante dos povos originários e de
africanos trazidos em porões insalubres de navios. Tanto está, como permanece
até hoje, no âmbito cultural brasileiro, as cicatrizes ainda abertas de uma nação
marcada por séculos de colonialismo, espoliação e dominação das oligarquias
agrárias tradicionais. Se prestarmos a
atenção nos sobrenomes de parcela significativa dos parlamentares que integram
a totalidade do congresso nacional, muitos vem de famílias que no passado
tinham escravos em suas fazendas como mão de obra de trabalho.
No congresso nacional, ambos/as
defendem pautas conservadoras, redução de direitos trabalhistas, flexibilização
de licenciamentos ambientais, entre outras demandas de interesses das elites.
Todos sabemos que o fim da escravidão a partir da Lei Áurea se deu por pressão
de um segmento econômico que acreditava ser mais rentável o trabalho
assalariado que o escravo. Essa elite agrária foi tão esperta que antes de
decretar o fim da escravidão, instituíram algumas leis que lhe interessavam,
como a Lei de Terras em 1850.
A legislação definia que o direito à
terra só seria assegurado por meio de compra, não mais por ocupação ou doações,
como se sucedera anteriormente. Essas medidas retiravam qualquer possibilidade
do escravo liberto, de receber uma gleba de terra como compensação pelo
trabalho exercido nas fazendas. Os reflexos da escravidão e da servidão seus
efeitos são percebidos atualmente no tecido social brasileiro, cujo trabalhador/a
preto/a, com raríssimas exceções, não tem acesso a cargos importantes em
empresas, setor público e outros serviços.
O fato é que a ferida da escravidão
e da servidão ainda se mantém não cicatrizada depois de quase 150 anos do seu
fim oficial. Quase todos os dias, fiscais do trabalho detectam pessoas
exercendo serviços em fazendas ou empresas em condições análogas a escravidão.
São trabalhadores contratados por agências ou pelo próprio proprietário do
empreendimento, com a promessa de salários e outros benefícios
trabalhistas. Isso é muito comum na
região sudeste, nas fazendas de cana de açúcar, e no sul do Brasil, durante a
safra da maça, da uva, da cebola, entre outras culturas.
Para conferir a veracidade dessa
modalidade de trabalho servil, é só consultar Lista Suja do trabalho escravo,
do Ministério do Trabalho, que foi criada em 1995, portanto, está completando
esse ano, 2025, trinta anos de existência. Nessas três décadas o Grupo Especial
de Fiscalização Móvel – GEFM, já resgatou mais de 68 mil trabalhadores em
condições análogas a escravidão, assegurando mais de 156 milhões de reais em
verbas indenizatórias.
Essa lista é atualizada semestralmente,
sendo que, nesse mês de outubro, mais 159 nomes foram incluídos na lista suja,
sendo 101 de pessoas físicas e 58 de empresas. De 2020 a 2025 foram mais de
1530 trabalhadores resgatados. Os
segmentos com maior participação de trabalhadores resgatados foram: de criação
de bovinos para corte (20); serviço doméstico (15); cultivo de café (9);
serviços de britagem (9); construção de edifícios (8). Os estados que lideraram
a lista dos trabalhadores resgatados foram: Minas Gerais (33); São Paulo (19);
Mato Grosso do Sul (13); Bahia (12).
Na lista suja aparece dois casos
identificados em SC, um no município de Itapiranga, envolvendo a empresa
ALTENHOFEN – Comércio de Hortifrutigranjeiros – LTDA, e uma pessoa física, cujo
nome é Ana Cristina Gayotto de Borba, que é esposa de Jorge Luiz de Borba,
Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O site Repórter Brasil,
em 09 de abril de 2025, postou reportagem tratando desse caso que gerou forte
repercussão. Na sua página, está assim redigida a manchete: Caso de
escravizada na casa de desembargador de SC entra na lista suja.
O fato ocorreu em Florianópolis,
cujos fiscais identificaram a cidadã Sônia Maria de Jesus, que trabalhava na
residência do desembargador por quase 40 anos. Além de cega de um olho, Sônia
também era surda. Conforme está escrito na página do site Repórter Brasil,
Sonia, havia sido resgatada, pelo casal, de uma creche da grande São Paulo
quando tinha ainda 9 anos de idade. Durante esse tempo, não foi alfabetizada em
libras, tendo obtido a identidade somente em 2019. Na casa do Desembargador,
trabalhava como doméstica, sem carteira de trabalho e demais direitos que lhe
assistem. A justificativa do casal à situação de Sônia era que ela fazia parte
da família, considerada como filha.
Há um ditado famoso onde diz,
quando se tira um siri do balaio vem uma penca agarrado. É exatamente assim o
que aconteceu com o caso da mulher resgatada da residência de um desembargador
de SC em condição análoga a escravidão e que repercute ainda hoje. O caso
rendeu, tornando-se tema no podcast do jornalista Leonardo Sakamoto, no UOL, em
2023. Na época Sakamoto escreveu o seguinte texto no seu blog sobre o caso da
dita filha do desembargador catarinense que vivia em situação de escrava.
A manchete foi assim escrita: “escravizada
que desembargador chama de filha está em lista de funcionários”. O
jornalista desbaratou a farsa do desembargador, desconstruindo o discurso de
ser Sônia sua filha, pois se assim o fosse não estaria na lista entre as funcionárias de sua residência como havia
exibido em certa ocasião. Relatou também que a dita Sônia não aparece em
fotografias junto com os seus filhos em eventos ocorridos junto com os pais.
Por que querer dar tanto destaque a
um fato, talvez comum, como esse envolvendo uma mulher negra, resgatada pelo
ministério do trabalho como trabalhadora análoga à escravidão? O fato em
questão é o retrato explícito de uma sociedade onde a casa grande e a senzala
estão presentes no cotidiano do tecido social. A violência, a guerra do
tráfico, retratada diariamente pela imprensa dos morros do Rio de Janeiro e de
outras regiões do país, são reflexos de séculos de escravismo e do abandono do Estado
aos seus descendentes.
A realidade é que continuamos em “berço
esplendido” assistindo atônitos um processo de genocídio deliberado de cidadãos
negra e de povos originários. A ação de extermínio se dá ou pela polícia, no caso
da população preta, ou por jagunços, quando nos referimos aos povos originários,
contratados por fazendeiros, bem como pela água e alimentos contaminados por mercúrio
e outros metais pesados advindos do garimpo ilegal.
Prof.
Jairo Cesa
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