terça-feira, 28 de outubro de 2025

 

CASA GRANDE E SENZALA AINDA PRESENTE NO CENÁRIO SOCIAL BRASILEIRO

Por quase quatro séculos o Brasil teve a sua história forjada pelo trabalho degradante dos povos originários e de africanos trazidos em porões insalubres de navios. Tanto está, como permanece até hoje, no âmbito cultural brasileiro, as cicatrizes ainda abertas de uma nação marcada por séculos de colonialismo, espoliação e dominação das oligarquias agrárias tradicionais.  Se prestarmos a atenção nos sobrenomes de parcela significativa dos parlamentares que integram a totalidade do congresso nacional, muitos vem de famílias que no passado tinham escravos em suas fazendas como mão de obra de trabalho.

No congresso nacional, ambos/as defendem pautas conservadoras, redução de direitos trabalhistas, flexibilização de licenciamentos ambientais, entre outras demandas de interesses das elites. Todos sabemos que o fim da escravidão a partir da Lei Áurea se deu por pressão de um segmento econômico que acreditava ser mais rentável o trabalho assalariado que o escravo. Essa elite agrária foi tão esperta que antes de decretar o fim da escravidão, instituíram algumas leis que lhe interessavam, como a Lei de Terras em 1850.

A legislação definia que o direito à terra só seria assegurado por meio de compra, não mais por ocupação ou doações, como se sucedera anteriormente. Essas medidas retiravam qualquer possibilidade do escravo liberto, de receber uma gleba de terra como compensação pelo trabalho exercido nas fazendas. Os reflexos da escravidão e da servidão seus efeitos são percebidos atualmente no tecido social brasileiro, cujo trabalhador/a preto/a, com raríssimas exceções, não tem acesso a cargos importantes em empresas, setor público e outros serviços.

O fato é que a ferida da escravidão e da servidão ainda se mantém não cicatrizada depois de quase 150 anos do seu fim oficial. Quase todos os dias, fiscais do trabalho detectam pessoas exercendo serviços em fazendas ou empresas em condições análogas a escravidão. São trabalhadores contratados por agências ou pelo próprio proprietário do empreendimento, com a promessa de salários e outros benefícios trabalhistas.  Isso é muito comum na região sudeste, nas fazendas de cana de açúcar, e no sul do Brasil, durante a safra da maça, da uva, da cebola, entre outras culturas.

Para conferir a veracidade dessa modalidade de trabalho servil, é só consultar Lista Suja do trabalho escravo, do Ministério do Trabalho, que foi criada em 1995, portanto, está completando esse ano, 2025, trinta anos de existência. Nessas três décadas o Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM, já resgatou mais de 68 mil trabalhadores em condições análogas a escravidão, assegurando mais de 156 milhões de reais em verbas indenizatórias.

Essa lista é atualizada semestralmente, sendo que, nesse mês de outubro, mais 159 nomes foram incluídos na lista suja, sendo 101 de pessoas físicas e 58 de empresas. De 2020 a 2025 foram mais de 1530 trabalhadores resgatados.  Os segmentos com maior participação de trabalhadores resgatados foram: de criação de bovinos para corte (20); serviço doméstico (15); cultivo de café (9); serviços de britagem (9); construção de edifícios (8). Os estados que lideraram a lista dos trabalhadores resgatados foram: Minas Gerais (33); São Paulo (19); Mato Grosso do Sul (13); Bahia (12).

Na lista suja aparece dois casos identificados em SC, um no município de Itapiranga, envolvendo a empresa ALTENHOFEN – Comércio de Hortifrutigranjeiros – LTDA, e uma pessoa física, cujo nome é Ana Cristina Gayotto de Borba, que é esposa de Jorge Luiz de Borba, Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O site Repórter Brasil, em 09 de abril de 2025, postou reportagem tratando desse caso que gerou forte repercussão. Na sua página, está assim redigida a manchete: Caso de escravizada na casa de desembargador de SC entra na lista suja.

O fato ocorreu em Florianópolis, cujos fiscais identificaram a cidadã Sônia Maria de Jesus, que trabalhava na residência do desembargador por quase 40 anos. Além de cega de um olho, Sônia também era surda. Conforme está escrito na página do site Repórter Brasil, Sonia, havia sido resgatada, pelo casal, de uma creche da grande São Paulo quando tinha ainda 9 anos de idade. Durante esse tempo, não foi alfabetizada em libras, tendo obtido a identidade somente em 2019. Na casa do Desembargador, trabalhava como doméstica, sem carteira de trabalho e demais direitos que lhe assistem. A justificativa do casal à situação de Sônia era que ela fazia parte da família, considerada como filha.  

Há um ditado famoso onde diz, quando se tira um siri do balaio vem uma penca agarrado. É exatamente assim o que aconteceu com o caso da mulher resgatada da residência de um desembargador de SC em condição análoga a escravidão e que repercute ainda hoje. O caso rendeu, tornando-se tema no podcast do jornalista Leonardo Sakamoto, no UOL, em 2023. Na época Sakamoto escreveu o seguinte texto no seu blog sobre o caso da dita filha do desembargador catarinense que vivia em situação de escrava.

A manchete foi assim escrita: “escravizada que desembargador chama de filha está em lista de funcionários”. O jornalista desbaratou a farsa do desembargador, desconstruindo o discurso de ser Sônia sua filha, pois se assim o fosse não estaria na lista entre as  funcionárias de sua residência como havia exibido em certa ocasião. Relatou também que a dita Sônia não aparece em fotografias junto com os seus filhos em eventos ocorridos junto com os pais.

Por que querer dar tanto destaque a um fato, talvez comum, como esse envolvendo uma mulher negra, resgatada pelo ministério do trabalho como trabalhadora análoga à escravidão? O fato em questão é o retrato explícito de uma sociedade onde a casa grande e a senzala estão presentes no cotidiano do tecido social. A violência, a guerra do tráfico, retratada diariamente pela imprensa dos morros do Rio de Janeiro e de outras regiões do país, são reflexos de séculos de escravismo e do abandono do Estado aos seus descendentes.

A realidade é que continuamos em “berço esplendido” assistindo atônitos um processo de genocídio deliberado de cidadãos negra e de povos originários. A ação de extermínio se dá ou pela polícia, no caso da população preta, ou por jagunços, quando nos referimos aos povos originários, contratados por fazendeiros, bem como pela água e alimentos contaminados por mercúrio e outros metais pesados advindos do garimpo ilegal.

Prof. Jairo Cesa   

 

https://almapreta.com.br/sessao/quilombo/trabalho-analogo-a-escravidao-esta-longe-de-ser-vies-ultrapassado-no-brasil/?gad_source=1&gad_campaignid=22546923003&gbraid=0AAAAAqda5py7TtQZ0TSt9nBcieVJ1blNV&gclid=Cj0KCQjwsPzHBhDCARIsALlWNG1HdykHTij-Lf1cfUfny-VzeMKzhU8oPAWGOWrP9HVpkS-BoEOMO9AaAryyEALw_wcB

https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2025/outubro/mte-resgata-57-trabalhadores-de-condicoes-analogas-a-escravidao-no-parana

https://reporterbrasil.org.br/2023/04/nova-lista-suja-do-trabalho-escravo-tem-ex-patrao-de-domestica-e-religioso-que-agredia-dependentes/?gad_source=1&gad_campaignid=22568678341&gbraid=0AAAAADqu8FcZKYNckDXaggm2zCUkGDYv1&gclid=Cj0KCQjwsPzHBhDCARIsALlWNG0h7pz2ZP_9_VTQzjHxh95vzFstgxH6Q--UzHJfjaXdbf9MRLnY8MoaAp0SEALw_wcB

https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/10/06/lista-suja-do-trabalho-escravo-e-atualizada.ghtml

https://reporterbrasil.org.br/2025/04/escravizada-desembargador-sc-oba-lista-suja/?gad_source=1&gad_campaignid=22568678341&gbraid=0AAAAADqu8FcZKYNckDXaggm2zCUkGDYv1&gclid=Cj0KCQjwsPzHBhDCARIsALlWNG1HAl_3pftCtZCeuawczrL9sCyjHBKCMcXJM34b0gegc_6L4MlynPcaAkkuEALw_wcB

https://reporterbrasil.org.br/2023/09/ela-tem-familia-irmaos-buscam-reencontro-com-domestica-apontada-como-escrava-em-sc/#:~:text=S%C3%B4nia%20foi%20resgatada%20ap%C3%B3s%20uma,nem%20tinha%20descanso%20semanal%20fixo.

https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/06/16/escravizada-que-desembargador-chama-de-filha-esta-em-lista-de-funcionarias.htm

 

 

 

 

 

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