segunda-feira, 30 de setembro de 2019


FRAGMENTOS DE QUATRO DÉCADAS DE VIDA PROFISSIONAL DE UM PROFESSOR HISTORIADOR

Durante minha carreira de docente, nas escolas onde lecionei, sempre, de uma forma ou de outra, buscava trazer e aplicar aos estudantes o gosto pela investigação científica. Isso acontecia geralmente com saídas de campo e atividades pedagógicas ao ar livre. Na época, as dificuldades de inserir essa dinâmica metodológica nos currículos das escolas eram enormes. Habitualmente um dos principais obstáculos enfrentados quando o assunto era pesquisa ou saída de campo, era o financeiro, pois tais ações requeriam aporte de recursos, algo que nenhuma das escolas públicas das quais trabalhei dispunham.  
Isso jamais foi um obstáculo intransponível para a execução dos meus objetivos. Um dos caminhos possíveis à execução de tais atividades eram as famosas vaquinhas. O custo da viagem era dividido e cada um contribuía com uma pequena soma. Muitas vezes, por serem muitos dos estudantes dessas escolas excessivamente necessitados, o montante dos custos da excursão era por mim coberto.
Foram dezenas de atividades desse gênero cujos resultados eram perceptíveis tanto nas atitudes quanto nos resultados das atividades pedagógicas. O sucesso do bom desempenho pedagógico deve-se considerar que não depende somente a tais metodologias inovadoras, a postura dos gestores e do segmento técnico pedagógico conta muito nos resultados.  Sensibilização e trabalho focado na investigação desses profissionais são também determinantes no sucesso. Mas não era essa a realidade de muitas escolas da época.
O apadrinhamento político e a vinculação política partidária eram regras na escolha de quem iria gerenciar as escolas. Às vezes, por sorte, uma determinada escola recebia um gestor com perfis acima citados. Vencer os obstáculos da postura autoritária e arrogante de certos gestores foi também decisivo para levar em frente o gosto pela ciência. A participação ativa em eventos como congressos, seminários e a incessante necessidade de querer aprender mais e mais me impulsionaram a galgar outros desafios e horizontes. A experiência de ter trabalhado como professor em uma universidade aos vinte e cinco anos de idade foi importante.
Atuar nas áreas ambientais, sindicais e políticas, enriqueceu ainda mais meu currículo e meu desejo por novos desafios tanto profissional quanto na vida pessoal. A conclusão do mestrado em 2004, na UDESC, teve papel importante para redimensionar minha trajetória profissional, pois faltavam poucos anos para minha aposentadoria. Trabalhar na UNIBAVE (Universidade Barriga Verde) no município de Orleans, por cerca de dez anos e lecionar para estudantes em vários cursos, em especial pedagogia, foi, sem dúvida, um dos grandes desafios que enfrentei.
 Emoções, decepções, desilusões, estafas, talvez tudo isso somando se traduziram em num dos maiores recuos profissionais e pessoais em minha vida. Uma forte crise depressiva tentou me nocautear e apagar todos os meus sonhos. Nada disso, um ou dois anos de tratamento e insistentes terapias restabeleceram meu ânimo, permitindo que eu retornasse a labuta diária, de continuar sonhando e acreditando que era possível transformar a educação e a sociedade. A despeito de não ter exercendo diretamente a função de professor em sala de aula, passei a me dedicar à função que sempre me deixou muito a vontade, a coordenação de trabalhos e projetos com professores e estudantes.
Os quase cinco anos que atuei na Escola de Ensino Fundamental Padre Antônio Luiz Dias, no bairro Morro dos Conventos, Araranguá, foram cruciais para redimensionar minha visão no campo da pesquisa. É quase impossível mensurar aqui a diversidade de trabalhos que tive participação direta e indireta nessa escola. Porém, cabe destacar dois que para mim foram categóricos para elevar ainda mais a certeza de que é possível sim acreditar na escola pública, na autonomia e capacidade criativa de estudantes que conseguem mesmo com poucos recursos transformar suas vidas e dos demais.
A participação que jamais me esquecerei de uma professora de língua portuguesa marcará para sempre aquela escola. Sua habilidade criativa e capacidade de síntese revolucionaram as vidas de um grupo de estudantes. Por apresentar a população do bairro forte traços das etnias açorianas e lusas brasileira, com uma simples máquina fotográfica e criatividade de sobra, a professora e o grupo de estudantes do sétimo e oitavo anos produziram um rico documentário, de cerca de dez minutos, narrando um pouco da geografia, história, lendas e demais tradições daquela comunidade.
Na época, um dos fatores importantes na concretização desse ousado trabalho foi a existência de um laboratório de informática em bom estado de uso e a habilidade da professora em manipular tais ferramentas. Infelizmente a professora, dois anos depois, abandonou a carreira de docente, decepcionada, por enfrentar resistência e falta da estrutura técnica e pedagógica nas escolas que trabalhou. O meu retorno à escola do bairro onde nasci e iniciei minha carreira no Estado trouxe à memória o passado de alegrias, frustrações, decepções e o esforço quase subumano de poder equilibrar o trabalho com minha vida pessoal.
 Foi ali que a paixão pela pesquisa brotou quando, no começo da década de 1990, num belo dia, estudantes chegaram a minha casa carregando um artefato estranho. Notei que era uma espécie de urna funerária guarani, isso mesmo, um objeto pré-histórico importante encontrado no bairro que mostrou ter sido ali o local habitado por grupos indígenas, dentre eles os guaranis. Rapidamente me apoderei do artefato e o transportei à UNESC, pois naquele momento eu exercia a função de professor de prática de ensino em estudos sociais, no curso de história, cujo coordenador da área, Edi Balod, possuía formação em antropologia, tendo o mesmo montado um pequeno museu em sua sala.
A entrega daquele artefato a UNESC ocorreu pelo fato de o município de Araranguá não possuir ainda um museu. Mais de vinte anos depois de ter trabalhado na EEF Padre Antônio Luiz Dias, lá retornei, com intuito agora de levar a frente algo inacabado, o levantamento arqueológico, histórico e cultural do bairro. Nesse mesmo período que lá cheguei o município de Araranguá finalmente estava inaugurando seu museu.
Em 2010, tive a felicidade de coordenar um projeto ousado e cuja realização se deveu ao empenho dos colegas professores também instigados pelo gosto da pesquisa. Jamais esquecerei o apoio incondicional do qual tive da coordenadora pedagógica Viviane Vieira, de uma professora das séries iniciais na qual não lembro o seu nome e do professor hoje doutor em história, Luciovânio Moraes.
É claro que os demais integrantes daquela unidade de ensino foram decisivos no sucesso do empreendimento.  Durante semanas a escola ficou envolvida na construção desse projeto cuja temática escolhida foi a reconstrução da memória cultural do bairro. Quando se tratava da memória do bairro, a ideia era extrapolar o tempo histórico, estendendo antes da presença lusa brasileira a partir do século XV.
O desafio era adentrar em períodos mais longínquos, mil, dois mil e quem sabe ainda mais remotos ainda. Durante um dia inteiro estudantes, professores e membros da comunidade tiveram envolvidos numa série de atividades focada na cultura local. Sem desmerecer outras ações importantes nesse dia, o que realmente marcou e transformou a vida dos estudantes certamente foi a oficina cerâmica guarani.
Proposta foi fazer os estudantes experimentarem algo que para eles era inédito, porém, para os povos guaranis fazia parte de sua rotina diária, a confecção de artefatos, panelas, urnas, entre outros objetos feitos de barro. O processo da oficina seguiu todas as etapas, desde a extração da argila, preparação, confecção, secagem e a queima. Entretanto a conclusão que chegamos era de que a habilidade manual das mulheres guaranis mostrava-se superior a nossa, onde muitos artefatos depois de secos não resistiram o calor no momento da queima, formando fissuras. Todavia o resultado final serviu para que refletíssemos sobre o enorme conhecimento acumulado por essas culturas hoje extintas na região. Temos muito que aprender ainda com esses pequenos grupos que tentam subsistir diante de excessiva pressão do capital.
Naquele momento o grupo foi convidado a expor o trabalho no centro cultural, local que hoje abriga o museu de Araranguá. Dezenas, centenas de pessoas transitaram por aquele recinto para prestigiar um pouco da história e cultura de uma região rica paisagisticamente e culturalmente, porém pouco valorizada. Toda essa dedicação contribuiu para que o projeto memória do bairro fosse escolhido nas duas etapas regionais da feira interdisciplinar. A maior alegria e orgulho do grupo foi que souberam que o projeto havia sido selecionado à etapa estadual, onde também foi premiado.
Em 2013, recebemos a visita de um professor e estudantes da UFSC, Campus Araranguá, que estavam interessados em desenvolver um documentário narrando a prática do boi de mão na escola. De imediato aceitamos o desafio, fato que resultou em um rico trabalho cultural que certamente deve ter orgulhado e elevado a autoestima dos membros daquela escola e da comunidade.[1]
 Minha etapa naquela escola, portanto, findou-se em 2015, quando retornei à EEBA onde havia me efetivado há cerca de vinte anos.  Atuando na biblioteca, da qual serviu como um QG, ali comecei a articular estratégias com alguns professores para levar adiante o projeto iniciado na escola do bairro Morro dos Conventos.  Os desafios, porém, tornaram se bem maiores que o esperado, pelo fato do tamanho da escola e do modelo de ensino ainda apostilêstico, mediando pelos resultados quantitativos. Mas nada disso impediu que eu continuasse acreditando e insistindo, até que em 2016, finalmente, um projeto teve início, focado nas questões ambientais da escola.
No primeiro ano o desafio foi assentar os tijolos de uma construção que seria longa, porém, duradoura, impossível de ser desmanchada ao longo do tempo. Construir uma cultura pedagógica na escola embasada na investigação científica seria, com certeza, um dos principais desafios que eu teria de enfrentar a partir daquele instante. No segundo ano de trabalho, o apoio tido da competente professora de geografia, Maria de Fátima Maccarini, foi imprescindível à continuidade do projeto.  Contenção de desperdícios de energia elétrica e água na EEBA foi a proposta que norteou nosso trabalho.
 Conseguimos, com todas as dificuldades enfrentadas no percurso, chegar em 2018 com o projeto cheio de resistência. Foram cerca de três anos para conquistar o apoio e a credibilidade de um grupo de estudantes que passaram a atuar nas atividades programadas. Finalizou o ano de 2018, o ano letivo de 2019 despontou tendo pouca certeza da continuidade ou não do projeto. Primeiro motivo foi a saída da minha co-coordenadora por motivo de aposentadoria. Esse episódio elevou a preocupação com o futuro da proposta, pois no mês de setembro de 2019, também estaria me aposentando, depois de 37 anos de atividade docente.
O tempo corria incessante e era necessário convencer algum colega da escola a abraçar o projeto. Seria uma luta quase em vão pelo fato de que todos estavam sobrecarregados com tarefas corriqueiras em suas inúmeras turmas. Quase que diariamente, na biblioteca da EEBA, recebia a visita de um professor da área de educação física, onde transpirava um desejo incessante pela pesquisa. Nos poucos ou longos momentos que passávamos juntos conversando, muitas ideias e estratégias foram pensadas na tentativa de mudar a forma de ensinar e aprender na escola.
Seu desejo era entrar no mestrado, porém faltava encontrar um tema específico. No entanto sua mente não relaxava, borbulhava insatisfação e ao mesmo tempo desejo de transformar o quadro quase estático da escola e da sociedade. Ele sabia que a investigação científica seria o caminho necessário para assegurar o futuro da EEBA e das demais escolas públicas, ao contrário ambas seriam engolidas pelo capital. Nessa mesma ocasião, duas professoras e três estudantes estiveram na biblioteca apresentando uma proposta de pesquisa, cuja temática estava vinculada ao projeto sustentabilidade.
Aos poucos ia percebendo que os quase quatro anos de existência do projeto sustentabilidade, quando já acreditava no seu fim súbito, me apareceu essas pessoas reacendendo as esperanças de que nada estava perdido. Já fora da escola, não deixei de acompanhar o cotidiano do grupo de pesquisa que escolheu como tema investigativo o Diagnóstico do Consumo de Água das Escolas Estaduais do Município de Araranguá. A capacidade de articulação e síntese das duas professoras coordenadoras do projeto me impressionava a cada reunião que estive presente.
Isso proporcionava segurança e ânimo aos orientandos que passaram a abraçar a idéia de forma assustadora. Já que a proposta da pesquisa era a participação na feira interdisciplinar da EEBA, ambos foram convidados para expor a pesquisa em um evento internacional, o EXPOMATRIX, que ocorreu numa escola particular do município. De dezenas de trabalhos avaliados, o grupo da EEBA obteve a medalha de prata, sendo indicado a participar de outro evento de maior envergadura que o EXPOMATRIX, o MOSTRATEC, que ocorrerá em outubro em Novo Hamburgo, RS.
Lá serão expostos cerca de 700 trabalhos entre cerca de vinte países participantes. Antes desse evento, o grupo teria outro desafio, a feira interdisciplinar escolar e a regional, essa última programada para o dia 27 de outubro de 2019, na escola Dolvina Leite de Medeiros. Na feira interdisciplinar que ocorreu na EEBA, fiquei extremamente feliz quando me deparei com o professor de educação física, o mesmo dos incontáveis encontros na Biblioteca, coordenando a exposição de um trabalho que estava sendo apresentado por dois estudantes. 
O professor não teve noção o tamanho da minha satisfação de estar num ambiente onde dois ricos trabalhos, que de uma forma ou de outra tive alguma participação. Aquilo realmente foi emocionante. Agora o passo seguinte era a feira regional. Apenas esses dois trabalhos da EEBA haviam sido inscritos para o evento.  Ambos estavam contados para ficar entre os primeiros entre os participantes. Quando veio o resultado que a pesquisa coordenada pelo professor Rafael da EEBA havia obtido o primeiro lugar, me senti lisonjeado como devem ter sentido os demais integrantes do grupo e o professor. 
É claro que no semblante dos estudantes e da professora do outro projeto representando a EEBA, havia certo ar de decepção. Quando me aproximei para parabenizá-los pelo empenho, a professora me relatou que a participação do grupo no evento de Novo Hamburgo estava descartado. A resposta foi a falta de aporte financeiro para custear a inscrição e os estudantes nos dias que ficariam na cidade gaúcha.  Naquele momento, me senti um tanto frustrado, pois a desistência poria em Xeque toda a expectativa do grupo em permanecer na pesquisa.
Há poucos dias outra professora coordenadora do grupo havia me dito que somente cinco escolas catarinenses haviam sido selecionadas para o encontro em Novo Hamburgo. Tendo Araranguá, duas indicações, uma pública, a EEBA, e outra particular. É claro que a escola particular jamais deixará de estar num evento dessa magnitude, pois a pesquisa faz parte da sua filosofia.
Aí senti o motivo pelo qual o abissal atraso da educação brasileira em comparação a de outros países que prezam a pesquisa. Era função do Estado de Santa Catarina disponibilizar recursos para iniciativas desse tipo, fazendo jus o que determina os planos nacionais e estaduais de educação que estão focados no estímulo a investigação científica como forma de transformação social.
A indicação do projeto “Paradesporto: Estudo de Caso na EEBA de Araranguá, vencedor na feira interdisciplinar regional, pode, quem sabe, ajudar a revolucionar o modo de pensar educação naquela instituição. Cada vez mais fica explícito que a pesquisa deve fazer parte do cotidiano das escolas públicas do Estado. Mas para isso é preciso repensar e reestrutura o modelo de escola e ensino ainda praticado.
Prof. Jairo Cezar

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