sábado, 8 de junho de 2013

Algumas reflexões acerca dos conflitos envolvendo índios e fazendeiros no Mato Grosso do Sul


Com a aproximação do dia 19 de abril expressiva parcela das escolas brasileiras e a própria imprensa aproveita a data para relembrar a história de um povo que há mais de quinhentos anos luta contra o poder dos latifundiários, do agronegócio para fazer valer o direito a um pedaço de terra que lhe garanta um mínimo de dignidade. Hoje em dia, arco e flecha, cocares e outras indumentárias não fazem mais parte do cotidiano de algumas comunidades, em decorrência da progressiva devastação dos ecossistemas no qual habitam como também a inclusão de novos hábitos de consumo instigados pelo capital como computadores, celulares, bebidas alcoólicas e outros supérfluos.
Se antes da chegada dos invasores portugueses a população indígena brasileira beirava os cinco milhões, hoje pouco supera os trezentos mil, distribuídos em 250 etnias que desesperadamente lutam para manter suas tradições. Esse percentual vem decrescendo paulatinamente, pois se vive atualmente um novo processo de colonização em direção a Amazônia Legal. Essa nova ocupação do território se dá pela ação indiscriminada de fazendeiros, pecuaristas e empreiteiras, ambos estimulados pelas políticas desenvolvimentistas adotadas pelo atual governo. São milhares e milhares de hectares de florestas desmatadas para dar lutar às plantações de soja, milho, cana de açúcar, à pecuária bovina e as grandes barragens para hidrelétricas que vem represando rios importantes da região norte como o Xingu, Madeira entre outros.
Diante da brutal investida do capital e com o aval do governo federal, comunidades indígenas não se intimidam e conseguem convergir forças para tentar impedir que projetos insustentáveis como o da usina de Belo Monte no Rio Xingu seja efetivado. São aproximadamente 20 mil indígenas de diferentes etnias que serão diretamente atingidos pelo projeto, sem contar os impactos irreversíveis a todo ecossistema da região. Além dos mega empreendimentos que beneficiarão exclusivamente grandes companhias multinacionais como a Alcoa de alumínio, que se instalará nas proximidades da Belo Monte, a expansão da fronteira agrícola em direção ao centro oeste e norte do Brasil contribuirá para o agravamento das tensões entre fazendeiros e indígenas.
Um exemplo de desrespeito e prova de que o povo indígena continua sendo tratado como intruso em sua própria pátria, ocorreu no estado da Bahia, na Aldeia da Serra do Pedreiro, quando fazendeiros atacaram membros da comunidade em represália à demarcação das terras Tupinambás pela FUNAI. De acordo com pesquisas historiográficas, as tentativas de escravidão dos Tupinambás para servirem nos engenhos de cana-de-açúcar na região de São Paulo no início da colonização, contribuíram para uni-los e criarem a Confederação dos Tamoios sob a liderança do índio Cunhambebe. Esse estado indígena independente englobava todas as aldeias tupinambás de São Paulo, Vale do Paraíba (São José dos Campos, Taubaté e outros) se deslocando em direção ao cabo de São Tome, com um extraordinário poderio de guerra.
O problema nas aldeias Tupinambás no sul da Bahia é tão preocupante que anos atrás foi desencadeada campanha com instalação de outdoors, patrocinada por empresários e fazendeiros na tentativa de  intimá-los e culpá-los pelo não desenvolvimento da região.       

                                    

                                    
Além desse episódio “fascista” e pouco divulgado pela mídia oficial, outros tão graves estão se multiplicando nas diversas comunidades ou aldeias espalhadas na região centro oeste e norte do Brasil. São comunidades que tentam sobreviver em pequenas porções de terras que mesmo estando demarcadas, sofrem investidas de grileiros, garimpeiros e pistoleiros, provocando terror e medo à população. Um dos estados mais emblemáticos e considerado campeão em números de assassinatos contra indígenas é Mato Grosso do Sul. São centenas de casos confirmados e outros não oficializados vitimados por ações de pistoleiros a mando de fazendeiros na tentativa de expulsá-los das terras pretendidas para a expansão do agronegócio. O que repercute na região e que motivou a presença de jornalistas independentes foi à divulgação de denúncias de assassinatos de índios Kaiowás do tronco lingüístico guarani, cujos familiares buscam desesperadamente recuperar os corpos para um enterro digno. Segundo Leonardo Sakamoto, o mesmo escreve no seu blog que o triste é que a ditadura militar acabou, mas o Estado brasileiro continua protegendo por ação direta ou sua inação, os que matam por lucro e poder e escondem os corpos pela garantia de impunidade.



Nas últimas semanas expressiva parcela da mídia oficial brasileira reservou seus espaços em jornais e telejornais para noticiar confrontos envolvendo fazendeiros e indígenas pela disputa de terras no estado do Mato Grosso do Sul. Observando atentamente as imagens e as falas divulgadas pela televisão acerca do ocorrido observa-se que as mesmas tentavam induzir o telespectador de que a invasão das terras pelos indígenas compromete o progresso econômico. Nos diversos artigos publicados em blogs ou sítios da internet discorrendo sobre o caso grande parte dos comentários feitos colocam o índio numa condição de vilão, que reivindicam terras, mas não produzem, portanto são vadios. Dentre tantos podemos citar o comentário de um internauta que expõe sua opinião acerca da reportagem publicada no site “UOL Notícia Cotidiano”, em 31/05/2013. Segundo o autor que usou o pseudônimo Sacarrolha “no Alto Araguaia, alguns índios tem pick-ups zero, t.v, de plasme, modernos computadores, e alguns até aviões; suas reservas somam centenas de alqueires para pescar, caçar, vender madeira, receber ganhos com garimpo, encher a cara e dormir. Quando estupram moças ou cometem outras atrocidades são defendidos por lei. Em todo o país existem algumas centenas de reservas indígenas que somam algumas centenas de milhares de alqueires. Esses das fotos auto-dominam-se "guerreiros". Invadem fazendas, queimam plantações, matam a criação e se presos forem, irão exigir salário pensão, como nossos políticos. Outra comparação não trabalha” http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/05/31/.  Como se vê essa visão estereotipada acerca da cultura indígena, de sujeitos indolentes, selvagens, preguiçosos, entre outros tantos adjetivos, vem sendo moldada no imaginário social há séculos. Desconstruir tais concepções equivocadas é tarefa das escolas, das mídias independentes e das redes sociais que vem assumindo um papel importante na construção de opiniões críticas em relação ao cotidiano.  
 Esse imbróglio jurídico que envolve as terras reivindicadas pelos índios Terenas que resultou na batalha campal do dia 30 de maio, levando a morte do índio Oziel Gabriel, de 35 anos, vem se arrastando desde 2001 quando a FUNAI identificou a área como pertencente à comunidade Terena. Dois anos depois a Justiça Federal derrubou a decisão da FUNAI e declarou as terras pertencentes aos produtores rurais. Em 2003, estudos realizados pelo antropólogo Gilberto Azanha e o doutor em arqueologia, Jorge Eremitas, a pedido do Juiz Federal Odilon de Oliveira, atestaram que área de 17,2 mil hectares era de fato dos Terenas. Tendo em mãos essas informações, caberia o juiz decretar a homologação imediata da área aos índios. No entanto a surpresa foi que o Juiz alegando insuficiência de dados técnicos deu ganho de causa aos fazendeiros.  Em 2006 mais uma vez os indígenas obtiveram no Tribunal Regional Federal da terceira região uma liminar que lhes garantiam o direito de posse da área em litígio.
No entanto, quando as coisas pareciam que estavam resolvidas necessitando apenas da homologação do governo federal que demarcaria os seiscentos mil hectares reivindicados, em 2012 os fazendeiros entraram com recursos e derrubaram a liminar do TRF, voltando a estaca zero. Incomodados com a demora para solucionar o impasse, em 15 de maio de 2013, os Terenas decidem ocupam as terras definitivamente esperando que o TRF, com sede em São Paulo, julgasse o recurso movido por eles. Quinze dias depois da ocupação, os fazendeiros protocolam na justiça ofício exigindo a reintegração de posse das terras, que ocorreu de forma violenta.


A violência contra os Terenas já vem ocorrendo desde Proclamação da República quando o governo do estado do Mato Grosso adquiriu terras públicas do governo federal e transferiu para particulares sem “averiguar” que as mesmas estavam ocupadas por indígenas. Os novos proprietários paulistas e mineiros encaminharam advogados à região para confirmar a posse expulsando das mesmas os índios que foram confinados em pequenas reservas. Diante do quadro de fragilidade no qual estavam submetidos, sem apoio das autoridades e para sobreviver foram forçados a se integrarem às vontades do novo colonizador, sendo transformados em mão-de-obra barata das fazendas.
Foi com Promulgação da Constituição de 1988 que os Terenas começaram a adquirir consciência de seus direitos como cidadãos brasileiros. Isso porque centenas de jovens ingressaram às universidades se especializando em diversas áreas profissionais especialmente na área do direito e da política. Atualmente, a Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul tem um deputado indígena. O problema das terras pretendidas pelos Terenas e fazendeiros é muito mais complexo do que se imagina, e a responsabilidade para solucionar esse imbróglio jurídico é do governo federal. Os fazendeiros alegam que as terras na qual reivindicam pertenciam aos seus pais, avós, que foram adquiridas no começo do século XX, mediante compra. Os índios afirmam que as terras lhes pertencem porque foram expulsos das mesmas com a chegada dos fazendeiros paulistas e mineiros. A solução segundo o antropólogo Gilberto Amanhã é o governo federal indenizar os fazendeiros e devolver as terras aos Terenas. Caso isso não se concretize, acredita-se que os índios em um futuro próximo novamente tentarão ocupá-las, que levará a novos conflitos e possíveis mortes.        
O elevado valor das commodities agrícolas como açúcar, soja, álcool e milho nas bolsas de valores internacionais contribuiu para a valorização substancial das terras da região da amazônica legal, principal palco dos conflitos. Somente em 2012, o aumento foi de aproximadamente 32% que refletiu também nas terras indígenas ainda não demarcadas e propícias para o cultivo agrícola. Certamente ai está um dos principais pivôs dos conflitos que colocaram em lados opostos fazendeiros apoiados pelo governo estadual e índios Terenas que lutam pela demarcação de suas terras, como também pela preservação da sua cultura, suas línguas, tradições e ancestralidades.  
No que tange as demarcações homologadas nas últimas duas décadas, no período que o Brasil foi governado por Fernando Henrique Cardoso 145 propriedades indígenas foram demarcadas, já nos dois mandatos de Luiz Inácio da Silva, ocorreram 79 homologações. Havia uma expectativa que no governo Dilma as demarcações seriam intensificadas, porém, apenas três pedidos de demarcações foram confirmados. Afinal, tanto Lula como Dilma, fazem parte de um partido que nasceu dos movimentos populares que combatiam as injustiças sociais acreditando que tendo um governo nascido das bases, pairava uma certeza de que teríamos um Brasil melhor, mais justo, solidário e igualitário.
Outro fato estarrecedor acerca da problemática indígena ocorreu quando o ex-deputado Aldo Rebelo lançou opinião contrária a demarcação de territórios indígenas em disputa. Segundo ele “o respeito aos direitos dos indígenas não pode implicar o esbulho dos não índios que há muito tempo fincaram a bandeira do Brasil naquela região”. Essa expressão deixa explícita a postura insensível e inconseqüente de muitos políticos brasileiros e certamente co-responsáveis pela situação de terror na qual estão submetidas as diversas comunidades indígenas. A ação dos Terenas de invadir as terras no Mato Grosso do Sul pode ser justificada pela forma como o Congresso Brasileiro está constituído, pois de um total de 513 deputados eleitos, 100 representam a base ruralista. Afinal, alguém sabe quantos índios foram eleitos na última eleição para os cargos de deputados federais e senadores para defender seus interesses? Quantos governadores, prefeitos, vereadores índios foram eleitos?      
Como já não bastava a chacina promovida pelos colonizadores portugueses quando ocuparam o Brasil há mais de quinhentos anos, o processo de extermínio permanece e se intensificou nos últimos anos com confrontos armados, assassinatos, doenças, alcoolismo e suicídios motivados pela perda de identidade cultural. Esse problema está se agravando na região norte e centro oeste do Brasil que concentram a maior parcela da população indígena. Somente na região da Amazônia legal habitam 98% da população indígena e o estado do MS possui a segunda maior população do Brasil. Não há como negar que os responsáveis pela situação de instabilidade dessas regiões são os governos federais e estaduais que ousam adotar políticas desenvolvimentistas duvidosas, favorecendo o agronegócio. Se o objetivo é estimular o agronegócio, nada mais proposital do que entravar a homologação dos processos demarcatórios nos cartórios.  
Se o problema dos Terenas é preocupante, a situação dos guaranis Kaiowás da região de Dourados/MS também merece atenção redobrada. Os mesmos estão confinados como animais em pequenos espaços ou reservas, verdadeiras favelas encravadas no campo, sem saneamento básico onde a desnutrição afeta todas as crianças e idosos, um verdadeiro genocídio assistindo em “berço esplêndido” pelas autoridades brasileiras. Essa situação de miséria absoluta vivida pelos Kaiowás os coloca em uma situação de absoluta submissão frente aos poderosos do agronegócio, transformando os índios em trabalhadores semi-escravos nas usinas de açúcar e álcool da região. Garantir a sobrevivência dessas sociedades depende das políticas públicas que devem ser adotadas pelos governantes. Diante da inoperância e morosidade do Estado, a pressão popular, a unificação dos diferentes povos indígenas em defesa dos interesses comuns se torna o caminho mais eficaz para a conquista da cidadania e o respeito dos governantes e de toda sociedade brasileira.
Prof. Jairo Cezar












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