quinta-feira, 14 de março de 2024

 POLÊMICA SOBRE A REFORMA QUE DESCARACTERIZARÁ A FACHADA DA IGREJA MATRIZ/SANTUÁRIO NOSSA SENHORA MÃE DOS HOMENS


Há poucos dias os cidadãos do município de Araranguá foram surpreendidos com a notícia de que a fachada da quase centenária igreja católica Nossa Senhora Mãe dos Homens passaria por reformas, trocando a atual por outra, cujo argumento dos seus idealizadores era pelo fato de ser mais moderna, compatível com a filosofia do santuário. A notícia correu como um rastilho de pólvora, provocando apreensão, indignação e revolta para expressiva parcela da população que acredita que tal proposta descaracterizante impactará a memória, a cultura, bem como a fé dos araranguaenses.

Historicamente no Brasil são poucas as cidades cujos povoados não surgiram no entorno de uma pequena igreja, edificada em um local estratégico, geralmente num ponto mais elevado. Araranguá serve de exemplo, cuja primeira edificação foi erguida na antiga comunidade de canjicas, hoje Hercílio luz, início do século XIX, tendo como padroeiro São Bom Jesus da Colina. Em meados do século XIX, portanto, com a edificação de uma minúscula igreja de madeira nas proximidades do rio Araranguá, hoje Praça Hercílio Luz, o povoado Capão da Espera começou a crescer, com residências e demais edificações públicas instaladas ao redor da referida igrejinha.

A população foi aumentando significativamente, em 1848 o povoado foi elevado na condição de distrito de Laguna, tendo agora como padroeira Nossa Senhora Mãe dos Homens. Por ser muito pequeno o imóvel católico e não comportar a imagem da santa, tratativas para a construção de uma nova igreja, maior que a primeira, foram articuladas pelos munícipes devotos. Finalmente bem no começo do século XX, entre 1891 e 1892, uma nova edificação com traços arquitetônicos singelos foi construída na qual comportaria no seu interior a padroeira e os fieis católicos do já município, emancipado em 1880.   

Foi na década de 1950 que a atual igreja, hoje santuário Nossa Senhora Mãe dos Homens foi erguida. Com sua arquitetura estonteante sua enorme torre pode ser vista de todos os pontos da cidade e também de quem transita pela Br.101. Além da extraordinária veneração devido as graças concedidas sob a intersecção da santa, o espaço arquitetônico interno e externo também é repleto de simbologias, sentimentos, misticismo, que vão além das fronteiras da fé. Quem conhece um pouco de história ou que já viajou vai perceber que povos culturalmente avançados têm seu patrimônio arquitetônico religioso e não religioso bem preservado. E qual a razão disso? A razão se deve a memória, no fato de as pessoas se sentirem integrados, pertencentes a um coletivo social. Ruas, edificações, monumentos preservados, ambos guardam no inconsciente coletivo traços importantes do passado.

Os colonizadores europeus quando chegaram ao continente americano, final do século XV e começo do XVI, sabiam muito bem como dominar a população nativa local. A estratégia foi destruir tudo que se referia a cultura, a memória do povo. Templos e demais símbolos religiosos, afrescos ricamente desenhados esculpidos, foram os principais alvos dos invasores, pois tinha certeza que destruindo todos os elementos míticos culturais ambos ficariam fragilizados pela falta de referências simbólicas.

Já observaram que quanto mais preservada é a história, a cultura de uma cidade, município, a população se mostra mais empoderada, pois consegue se impor aos ditames autoritários de elites sanguessugas, predadoras. Isso não acontece somente no espaço temporal, no espiritual também é perceptível. Quem visita ou visitou cidades mineiras e baianas, por exemplo, os turistas quando lá chegam uma das primeiras incursões é entrar nas igrejas centenárias e se impressionar com tamanha beleza estética e riquezas simbólicas.

Parece que em Araranguá, uma elite torpe inclui-se nesse grupo membros do clero, foram contaminados pelo vírus do atraso, do retrocesso. Não há porque continuar com tal sandice de querer mudar a fachada da igreja matriz quando se sabe que parcela expressiva da população é contrária. O autoritarismo que sempre perpassou nos meandros dos segmentos civis por gerações tem também suas raízes incrustadas no território religioso. Os argumentos de que a cúria e demais setores hierarquizados da igreja têm o poder de decisão sobre espaços por ela administrado são inconsistentes.

Padres, bispos, papas, todos que compõem a hierarquia de um complexo sistema clerical, são membros não permanentes, ou seja, ficam um tempo em suas funções pastorais e, de repente, são substituídos por outros. Acontece que os espaços onde atuam: capelas, paróquias, basílicas, santuários, ambos são permanentes, compondo o complexo conjunto arquitetônico de um espaço, que se transformam com o tempo em uma espécie de osmose, trocas de energias com seus moradores. Essa energia é mais contagiante entre os fiéis, que tem a imagem do objeto, nesse caso a igreja, seus traços artísticos e arquitetônicos como algo intrínseco ao seu corpo, a sua alma.

Mais uma vez reitero minha revolta, indignação à tamanha barbaridade que querem cometer contra um dos nossos principais símbolos da memória dos araranguaenses. Portanto, venho aqui reiterar que haja profunda discussão futura sobre esses temas com os poderes locais constituídos. Deixar claro que a tentativa de descaracterização não acontece somente como o referido símbolo sagrado dos munícipes, outros espaços também sofreram o mesmo processo de apagamento da memória. Muitos devem lembrar-se do polêmico processo de abertura de Rua no Morro Azul, uns dos símbolos paisagísticos do município que foi totalmente descaracterizado.  Os sítios arqueológicos, no Morro dos Conventos, com datações de quatro a cinco mil anos de história também estão à deriva do vandalismo, sem qualquer perspectiva de alguma ação do poder público para a sua proteção.

Por ser ano eleitoral, a sugestão é que tais assuntos componham o arcabouço de proposições dos/as candidatos/as que concorrerão às vagas do legislativo municipal e do executivo. A cultura de valorização, proteção dos nossos bens históricos materiais e imateriais deve ser disseminada entre todos, pois só assim teremos mais certezas que as próximas gerações desfrutarão daquilo que foi construído pelos nossos antepassados. Quanto mais preservada a arquitetura, a memória, a história temporal e espiritual de um município, mais fortalecidos serão os laços de pertencimento de seus moradores. Arquitetura, cultura, história preservada, auxiliam na construção de cidadãos mais críticos, resistentes as manipulações de políticos, imprensa e membros do clero.

Falando em manipulação, se observarmos o folder de divulgação da festa da padroeira, em 04 de maio, notaremos, claro que nem todos, um implícito instrumento de manipulação. Na capa do folder, está escrito o seguinte lema “Com Maria, Edificamos a Casa do Senhor. Bem embaixo, no canto esquerdo do papel, em tamanho reduzido, está a imagem frontal da igreja, não da atual, mas da seguinte, toda modificada. Se perguntarmos para os fieis, devotos da santa, o que entendem sobre “edificar a casa do senhor”, raros/as serão aqueles/as que de pronto perceberão que a mensagem faz referência à nova edificação/mudança da fachada. Eu mesmo tive dificuldades de perceber essa sutil manobra. 

Prof. Jairo Cesa 

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