quinta-feira, 24 de novembro de 2016

MESMO LAICO, O ESTADO BRASILEIRO SE MANTÉM SOB FORTE INFLUÊNCIA DO PROSELITISMO RELIGIOSO

Diante do atual conturbado cenário econômico e social que está contribuindo para intensificar a intolerância e a violência contra homossexuais, comunidades indígenas, negros e grupos religiosos de tradição africana, a escolha da religião, como tema de redação no ultimo Enem, deverá servir para ajudar educadores e demais profissionais  a compreenderem melhor a perspectiva dos (as) jovens brasileiros (as) quanto a esse assunto tão controverso em um Estado que se julga Laico. O primeiro ponto passivo de reflexão e que acredito tentará suprimir dúvidas ou confusões envolvendo Estado e Religião é o que realmente se entende por Laico ou sociedade Laica. O termo, portanto, surgiu na Grécia antiga, derivada da palavra Laós, Laikós, que traduzido para o português é designado povo[1].
Também na antiguidade, os hebreus se apropriaram do termo no qual conceberam a expressão “povo”, advinda dos gregos, como os eleitos por Deus, ou seja, restrito a uma reduzida parcela da sociedade.   No entanto, esse domínio religioso do termo Laós, Laikós, Laicus e Laico permaneceu durante a idade média, até a modernidade no século XVIII, quando os iluministas franceses ou positivistas passaram a utilizar como “arma” no combate aos dogmas que predominavam sobre regimes absolutistas.
Anterior a chegada dos portugueses no Brasil no século XVI, a relação entre e poder civil e o eclesiástico da metrópole se misturavam entre si de tal modo que ambos se confundiam quando as suas reais designações no âmbito civil e religioso.  Essa espécie de osmose ou mistura institucional cruzou o oceano quando aqui desembarcou os jesuítas, que a serviço da coroa e a pretexto de “proteger os infiéis ou salvar almas” iniciaram o processo de subordinação ideológica dos povos originários (indígenas) ao domínio português e do clero católico.
A coroa portuguesa, receosa dos riscos ao Estado português advindos do crescimento do poder de influência dos jesuítas sobre os povos nativos, deu atribuições ao ministro da corroa portuguesa o Marques de Pombal para perseguir e expulsar os jesuítas de suas possessões e promover a nacionalização da igreja católica. Tal nacionalização garantia ao próprio monarca português o elevado grau de soberania sobre a igreja, indicando bispos e demais religiosos a cargos eclesiásticos, que com base na hierarquia católica seria função do seu chefe religioso supremo, o papa.
Com a outorgação da primeira constituição do império brasileiro sancionada em 1924 pelo imperador D.Pedro I, o catolicismo se tornou definitivamente  como religião oficial do império. Os demais cultos, seus ritos ficaram limitados aos espaços domésticos sob pena de sanção civil. Tais regulamentações garantiam ao imperador autonomia para indicar clérigos para o exercício dos vários cargos e ritos nas igrejas, sendo esses agora funcionários do Estado e com direito a subvenções salariais.
 Tanto o patrimônio físico quanto as doações obtidas pela igreja, tudo era administrado pelo próprio Estado. Essa prática fez com que sacerdotes abandonassem a função no qual estavam designados pelo fato da incipiente remuneração recebida pelos serviços prestados à igreja. Foi, portanto, na primeira constituição republicana de 1891 que houve, teoricamente, a ruptura oficial entre a igreja católica e o Estado. Porém, o texto constitucional não impediu a permanência dos privilégios favorecendo exclusividade integrante do credo católico. Por outro lado, a constituição de 1891 não assegurou proteção aos demais grupos religiosos para o exercício dos seus ritos, onde continuavam sofrendo perseguições e preconceitos por parte do estado e da população.
O agravamento da criminalização dos demais cultos não católicos se deu durante o regime de Getúlio Vargas, mais especificamente no Estado Novo, quando o governo de Vargas intensificou a violenta e a perseguição aos freqüentadores dos cultos considerados não cristãos como o espiritismo e os de tradição africana como o ritual da Umbanda. A estratégia do estado, como forma de incitar a população contra os praticantes desses ritos, foi acusá-los de charlatanismo, curandeirismo e outros termos discriminatórios, atos esses interpretados como maléficos e prejudiciais à dita moral social.
No município de Araranguá tais perseguições contra não católicos também se configuravam em praticas corriqueiras durante os anos 1930 em diante. Algumas figuras religiosas conhecidas e reverenciadas pelos adeptos do catolicismo como dos párocos Thiago M. Coccolini e Antônio Luiz Dias, ambos ardorosos combatentes dos ritos religiosos que ameaçassem do predomínio católico em Araranguá. A pesquisa de doutorado desenvolvida pelo professor Lucio Vânio Moraes, entitulada Mercado Religioso e Práticas Pedagógicas: A Congregação de Santa Catarina no município de Araranguá-SC (1951-1982) tornam explícitas as artimanhas adotadas por membros do clero como forma de incitar o povo contra todos que freqüentarem locais de culto não católico. Numa das passagens da obra do professor, ele transcreve o que falou o Padre Antônio, acerca dos praticantes do espiritismo e umbandismo, registrado no caderno de rascunhos de 12 de maio de 1934 e que está nos arquivos da paróquia nossa Senhora Mão dos Homens.  
Nas palavras do Padre Antônio Luiz Dias: “Aumenta o número de praticantes Espíritas em Nossa Paróquia. Em Urussanguinha existe um grupo de homens e mulheres da cor negra que fazem oferendas diabólicas em seus terrenos de Macumba. Tenho feito visitas naquella (sic) localidade e até alguns Católicos têm atacado a Seita, mas parece que estão crescendo. O Católico que é fraco frequenta as sessões ao serem por eles convidados. Na Capela dessa localidade proibi na Missa para que nenhum fiél da Paróquia converse e nem frequente as residências desses acatólicos, Hereges. Eles poderão jogar o veneno Espírita enganando as almas do aprisco do Senhor”.[2]
É necessário considerar que este modelo de comportamento discriminatório em relação a certas religiões não cristãs como as de tradição africana é ainda recorrente hoje em dia. O ambiente escolar é onde mais ocorrem esses processos discriminatórios. Os principais alvos são crianças praticantes de ritos afros, geralmente silenciados e que para não se sentirem rebaixadas, ridicularizadas, mentem afirmando que pertencem ao catolicismo ou ao culto evangélico. Tais constatações relativas a hegemonização da violência contra crianças e a todo um grupo social que tenta manter viva suas raízes históricas de origem africana, foi obtida pela pesquisadora Estela Guedes Caputo, que concluiu em 2012 sua tese tratando sobre a Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé.[3] É sem dúvida um trabalho extraordinário, onde a pesquisadora procurou mostrar que as crianças nos terreiros, desde pequena, são inseridas em ritos de iniciação, com funções hierárquicas que lhes asseguram diante dos demais sujeitos certo prestígio e respeitabilidade.
No entanto, nas escolas municipais do rio de janeiro, especialmente depois da aprovação da lei que regulariza o ensino religioso, muitos dos professores que lecionam tal disciplina, ambos são adeptos a uma das diversas igrejas cristãs, evangélicas ou católica. O fato é que carregam consigo toda uma carga de moralismo e preconceito como é constatado com crianças praticantes do candomblé.  
Ainda no regime de Vargas, de 1930 a 1945, período em que também em Araranguá se promovia perseguição contra praticantes do espiritismo e do candomblé, o próprio governo atribuía como justificativa para criminalizar os rituais, afirmando que seus integrantes ou lideres religiosos apregoavam apologia ao comunismo.  Para evitar possíveis atos de violência do Estado e de seguidores católicos contra os adeptos das demais religiões, a solução para sua existência e proteção foi se ajustar seguindo um caráter sincrético, ou seja, os movimentos, os símbolos, os ritos, tinham que aparentar estar reverenciando elementos sagrados do catolicismo.
Os primeiros sinais do possível enfraquecimento da supremacia da igreja católica se deram a partir da década de 1950 com a modernização urbana industrial e o fortalecimento dos movimentos pet encostais. As transformações do cenário econômico e social se intensificaram nas décadas posteriores levando ao surgimento de uma enorme diversidade de credos religiosos ditos neopetencostais, acreditando-se que com isso a constituição de 1988 finalmente incluiria no texto dispositivos que garantisse ao Estado brasileiro uma fisionomia verdadeiramente laica como se tentou apregoar na primeira constituição republicana de 1891.
Isso realmente não ocorreu, demonstrando o forte lobbie envolvendo autoridades ou lideranças evangélicas e integrantes conservadores do culto católico, entre os constituintes durante a elaboração da carta constitucional. O texto final da carta apresentou o que muitos já acreditavam ocorrer, artigos que nitidamente se contradizem e que comprovam que a idéia de laicidade continua ainda muito longe de se tornar realidade. Enquanto o artigos 19, I, impede que o Estado estabeleça e subvencione cultos religiosos, o artigo 210, §1°, abre profundas brechas assegurando que o ensino religioso deverá ser de matrícula facultativa e cujas aulas ocorrerão em horários normais para estudantes do ensino fundamental.
E como não bastasse tal anomalia constitucional, a legislação que criou a LDB, lei n. 9394/96, intensificou ainda mais a confusão dando tratamento diferenciado ao ensino religioso em comparação as demais disciplinas. Pois vejamos o que expressa o art. 33, § 1°: Os estabelecimentos de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos, bem como normas para escolha e habilitação de professores. Tal dispositivo permite que municípios como o Rio de Janeiro fosse aprovada legislação estabelecendo o ensino religioso como parte do currículo das escolas municipais. Para evitar impasses, as escolas foram divididas ou loteadas entre as principais religiões obedecendo aos percentuais de adeptos de cada religião nas comunidades onde as escolas estão situadas.  
O fato é que as religiões, nas últimas décadas,  vêm adquirindo cada vez mais notoriedade na vida privada e pública, chegando ao extremo do absurdo de o congresso nacional ter uma das maiores bancadas constituída por deputados e senadores representantes de distintos cultos evangélicos. Isso talvez passasse despercebido em outras culturas teocráticas, mas em se tratando de Brasil, constitucionalmente laico, traz riscos às liberdades individuais.
Não há dúvida de que o crescimento dos credos religiosos de tradição neopentecostal no Brasil tem relação com o próprio enfraquecimento do estado como agente disseminador de políticas públicas que atendam as necessidades básicas da população. São nas comunidades mais desassistidas, mais carentes, que os credos evangélicos conservadores tem maior penetração, tanto na promoção de serviços assistencialistas, bem como de práticas ritualísticas de cura e de exorcismo.
É na disputa desses espaços de influência e do mercado da fé que muitas religiões se utilizam de artifícios nada éticos para discriminar outros cultos especialmente os praticantes dos rituais afrobrasileiros, como o candomblé. Acredite, toda essa problemática que envolve religião, discriminação, violência tem também a escola como ambiente de reprodução de práticas normatizadoras especialmente das de culto cristão sobre outras de tradição africana, tratadas com desdém e forte preconceito.
Como forma de tentar minimizar um problema histórico que foi a sujeição de milhares de índios, bem como negros africanos ao trabalho escravo e submissão durante séculos, em 2003 foi aprovada no congresso nacional lei 10639/03 e depois alterada para 11.645/08 no qual estabelece a inclusão nos currículos das escolas públicas e particulares do ensino fundamental e médio temas relacionados a cultura africana. Também foi atribuído ao dia 20 de novembro como dia nacional de consciência negra, em homenagem ao líder do quilombo dos Palmares, Zumbi.
Quem adentrar as bibliotecas das escolas públicas estaduais de Santa Catarina vai perceber a enorme quantidade de livros didáticos disponibilizados pelo governo para trabalhar com os estudantes aspectos econômicos, sociais e culturais da africanidade no Brasil e dos países africanos. A frustração é que poucas são as escolas que reestruturam seus currículos incluindo a cultura africana como tema gerador. A conseqüência disso é a não utilização desse acervo bibliográfico de elevado custo financeiro para os cofres públicos.
Se todas as escolas realmente se dedicassem ao ensino da cultura e tradições afro-brasileiras, possivelmente teríamos um país mais tolerante e respeitador das diversidades. Talvez não acontecesse o que ocorreu no Rio de Janeiro quando uma criança negra vestida com trajes, representando sua crença, foi apedrejada na rua. Agora imaginamos o grau de discriminação que poderá haver com crianças freqüentadoras de terreiros de candomblé, cujas escolas que freqüentam o ensino religioso são lecionada por um professor que prega a moral cristã como normal.
Quem acompanhou os noticiários dos telejornais e principais sites na internet desse sábado, 19, talvez nem tenha percebido que nenhum destaque foi dado ao dia 20 de novembro, dia da consciência negra. Diante da onda conservadora que atingiu os diferentes seguimentos de decisão política do Brasil, além dos ataques contra direitos dos trabalhadores, o alvo também é a população negra com a supressão de leis como que ocorreu no Rio Grande do Sul, quando a justiça derrubou o feriado da consciência negra. Decisão semelhante está sendo pensado para o município de São Paulo, a partir da próxima gestão do prefeito João Dória Junior. Portanto, estamos sob um ciclo longo de retrocessos sociais, cuja solução é a resistência, o confronto. É na escola deve ser exercitada tal resistência, como espaço democrático e laico para promover a liberdade e a tolerância às diferenças.
Prof. Jairo Cezar                   






[1] https://guilhermeazevedo.jusbrasil.com.br/artigos/306883636/laicidade-estatal-e-a-obrigatoriedade-de-oferecimento-de-ensino-religioso-nas-escolas-publicas-do-brasil
[3] file:///C:/Users/Biblioteca/Downloads/52057-212064-1-SM%20(2).pdf

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