segunda-feira, 2 de junho de 2014

O polêmico anteprojeto 305/13 que resultou na controvertida lei 16.336/14 relativa ao Código Ambiental de Santa Catarina

A prorrogação da apreciação e posterior votação do anteprojeto 305/2013 do novo Código Florestal Catarinense prevista para ocorrer em fevereiro de 2014 na Assembleia Legislativa, requer por parte dos cidadãos e cidadãs catarinenses uma compreensão mínima de temas polêmicos como Apps urbanas e Reservas Legais. Segundo especialistas, se tais assuntos forem discutidos considerando apenas aspectos econômicos, os impactos aos ecossistemas serão irreversíveis levando a extinção de espécies endêmicas da fauna e da flora catarinense.
Um Código Ambiental como qualquer legislação na área ambiental deve ser tratado com responsabilidade pelos (as) legisladores (as) e por aqueles que se encarregarão da homologação, que é o poder executivo. No entanto, nos últimos anos a Assembleia Legislativa de Santa Catarina vem acumulando um histórico depreciativo no que tange a legislação ambiental. Um exemplo ilustrativo foi à aprovação da lei 14.675/09, que ainda está sob judice, por desconsiderar dispositivos importantes da lei 4.471/65 (Código Florestal Brasileiro) e da própria Constituição Brasileira. No entanto, com todos os percalços provocados, a legislação catarinense serviu de modelo para a elaboração do polêmico código florestal brasileiro, lei n. 12.651/12, no qual forneceria subsídios para preparar o controverso anteprojeto 305/2013, que possivelmente se transformará em lei a partir de fevereiro de 2014.
Diante desse episódio nada democrático, a proposta desse modesto artigo é oportunizar o público a fazer uma reflexão dos inúmeros pontos polêmicos do anteprojeto, seus  protagonizadores, o que é dito e não dito em cada artigo e parágrafo, e quem serão os beneficiados a partir da sua aprovação. A primeira crítica lançada ao texto apresentado foi a exclusão de entidades ambientais e instituições de ensino superior na sua elaboração. Outro aspecto também questionado foi quanto aos critérios adotados na escolha do relator, o deputado Romildo Titon, do PMDB, que em 2009 coordenou o processo de aprovação da lei do código florestal catarinense. É o mesmo deputado, servidores municipais, políticos e empresários da área de perfurações de poços artesianos, que estão envolvidos em fraudes de licitações públicas e crimes contra a administração pública, cuja operação foi batizada de “fundo do poço”.
Nas inúmeras entrevistas concedidas pelo relator Titon e o Presidente da Assembleia Legislativa, Juarez Ponticelli, os argumentos dão conta de que a legislação federal é excessivamente abrangente, que não clarifica aspectos como as construções consolidadas em APPs urbanas, que outorga aos administradores públicos e vereadores a tarefa de regularização.  Sobre os limites mínimos das áreas de preservação nos perímetros urbanas, o art. 122-A, do anteprojeto, permitirá aos municípios definir sua extensão e abrangência. Sobre a faixa não autorizada a edificação, o Art. 122-C estabelece 15 metros de área protegida em ambas as margens dos cursos d’água, não mencionando qual a largura dos mesmos. Na hipótese da ocorrência de possíveis conflitos ou impasses, o texto transfere para as administrações municipais totais poderes para definir soluções cabíveis em razão das peculiaridades territoriais, climáticas, econômicas e sociais. Segundo Titon, “o código florestal de Santa Catarina vai atribuir aos municípios a criação de regras para a ocupação das APPs no entorno dos rios das áreas urbanas consolidadas, possibilitando regras mais brandas que a lei federal permite”.
A tendência caso o art.122-C não sofra modificações pelos deputados é a possibilidade de tal medida servir de referência para os demais estados bem como para a adequação do próprio corpo da lei 11.651/12 que está em vigor. O agravante é que transferindo para os municípios decisões importantes como definições de limites de APPs, não haverá garantia que tais itens quando levados à discussão e votação, prevalecerão critérios unicamente técnicos e não políticos como é costumeiro.
Os históricos dos munícipios catarinenses não dão nenhuma garantia dessa imparcialidade, haja vista que expressiva parcela dos legisladores, prefeitos, que terão tais incumbências, além de não apresentarem a mínima competência e independência para tratarem de temas tão complexos como as APPs, suas decisões sempre se propõem a salvaguardar interesses particulares, especialmente de empresários e latifundiários financiadores de suas campanhas.   O próprio Romildo Titon, afirmou em entrevista que considerando apenas o Código Florestal Brasileiro, a maioria dos empreendimentos nas cidades estariam irregulares. “Não podemos ter uma lei, uma regra para todos os municípios”.
Dos 253 artigos e outros tantos parágrafos e incisos que constam o anteprojeto 305/2013, a maioria deles quando interpretados não deixam dúvidas de que o código florestal que se pretende instituir em Santa Catarina oferecerá ampla cobertura ao setor produtivo em detrimento do ambiental.  A começar pelo art. 115-B, inciso IV, sobre regularização de APPs em áreas rurais consolidadas, que permite nas pequenas propriedades o plantio intercalado de espécies exóticas entre as nativas em até 50% da área total a ser recomposta. Porém, o que preocupa na leitura do documento é quanto aos espaços protegidos especialmente nas encostas de morros.
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Enquanto a antiga legislação n. 4771/65 definia como área protegida as encostas com declividade superior a 45°, a recente lei 12.671/12 do código florestal, que está em vigor, como o próprio texto do anteprojeto catarinense, ambos autorizam que encostas com declividade entre 25° a 45°, já ocupadas, poderão continuar sendo utilizadas para manejo florestal e outras atividades, devendo portando adotar  manejo  sustentável observando boas práticas agronômicas. O artigo não define se o manejo deverá ser exclusivamente com espécies nativas ou se podem intercalar variedades exóticas. A realidade do estado de Santa Catarina demonstra que quase a totalidade das propriedades situadas em áreas com tais declividades, teve a floresta original quase que totalmente suprimida, substituída por pastagens, eucaliptos e pinos.
As APPs das margens de rios, lagos e lagoas das áreas rurais não consolidadas, inseridas no texto do anteprojeto, possivelmente serão mantidas os mesmos dispositivos contidos na lei federal que estabelece a exemplo do rio Araranguá, na extensão área central da cidade até sua foz, 100 metros de margem protegida. A dúvida, porém, é como o poder público e os órgãos ambientais atuarão para adequar a legislação à realidade local, quando se sabe que toda extensão das margens do rio teve a vegetação ciliar quase que totalmente suprimida, sendo que a remanescente pouco supera os cinco metros de ambas as margens.  
Sobre as Áreas de Preservação Permanente no entorno dos lagos e lagoas, se estiver os mesmos situados em zonas rurais não consolidadas e ultrapassarem 20 ha de superfície, o artigo 120-A, II, a, diz que o limite mínimo de mata ciliar deverá ser de 100 metros. Na hipótese da superfície ser inferior a 20 hectares, a faixa marginal será de 50m de mata protegida. Os dois mananciais, Lago Dourado e Lagoa da Serra, ambos teoricamente situados em áreas urbanas consolidadas, a proposta apresentada, de acordo com o Art. 120-B, b, estipula 30 metros de área preservada. O anteprojeto não define o limite mínimo de extensão ocupada pelos mananciais. Na hipótese de considerar esse dispositivo da legislação estadual no plano diretor municipal, quase todas as construções hoje situadas nas margens desses mananciais que abastecem o município estão irregulares devendo as mesmas se adequar a nova legislação, ou seguir o que reza o art. 122, A, que deixa a cargo do poder público autonomia para estabelecer parâmetros específicos.
Como forma de dar fôlego aos legisladores, órgãos ambientais e as administrações municipais, o anteprojeto que trata sobre APPs não consolidadas traz no art. 120-B, parágrafo único, isenção de punição para quem descumpriu a legislação  suprimindo a vegetação protetora. O parágrafo permite a possibilidade de alterações de dispositivos que tratam de situações específicas com a adoção de novos limites mínimos e máximos de área protegida. Tudo indica que esse recurso será muito utilizado nos municípios catarinenses como Araranguá.
O anteprojeto caso seja aprovado com poucas alterações produzirá certamente confusões interpretativas principalmente quando se trata de APPs em áreas não consolidadas e em áreas rurais consolidadas. Enquanto a primeira, área não consolidada trata dos limites mínimos de proteção da vegetação  das margens dos rios, lagos, lagoas entre outros, o Art. 123-B define os limites das APPs que deverão ser respeitados nas áreas rurais consolidadas quando da existência de atividades econômicas vinculadas ao ecoturismo, turismo rural e práticas agrossilvipastoris.     
Embora a legislação tenha assegurado as restingas fixadoras de dunas como área de preservação, o mesmo não ocorre com os ecossistemas de manguezais que estarão seriamente ameaçados caso o texto seja aprovado sem modificações. O Art. 124-F estabelece que a vegetação nativa poderá ser suprimida quando a função ecológica do manguezal estiver comprometida, para tanto, o local pode ser utilizado para fins habitacionais com projetos de urbanização para população de baixa renda. O que é de conhecimento da sociedade é que manguezais são ecossistemas frágeis situados na faixa costeira especialmente na grande Florianópolis, que estão seriamente ameaçados pela ocupação irregular e com pouca ou nenhuma interferência dos órgãos ambientais. Hoje, são áreas extremamente valorizadas cuja ratificação da lei catarinense abrirá inúmeros precedentes para regularização de novas áreas não danificadas, ou que poderão sofrer descaracterização para serem inseridas nesse grupo.
   Durante anos após anos vem ocorrendo no estado a supressão da vegetação nativa nas encostas dos morros para inserir espécies lenhosas, frutíferas, entre outras. Porém, o cultivo dessas espécies não respeitou os limites recomendados por lei, isto é, assegurar o não cultivo e a ocupação humana na faixa acima dos 45° de inclinação, em muitos casos chegando ao cúmulo de ocupar os cumes dos morros. Muitas das catástrofes climáticas ocorridas nas últimas décadas, os impactos certamente foram maiores indiscutivelmente nos locais em que a vegetação primária fora suprimida. Como forma de normatizar as irregularidades cometidas, anistiando os infratores de possíveis multas, o anteprojeto 305/2013, no Art.124-D, IX, torna legal o plantio de “baixo impacto ambiental” de “espécies nativas” produtoras de frutos, sementes e outros produtos vegetais, desde que não implique “supressão” da vegetação existente nem prejudique a função ambiental da área.
Outro dispositivo de certo modo avançado no anteprojeto 305/2013 é o que trata sobre o percentual de 20% da Reserva Legal a ser preservada. No entanto esse mesmo índice constava na lei 4771/65 e no atual código florestal, sancionado em dezembro de 2012. Mais da metade das propriedades rurais de Santa Catarina suprimiram além dos 20% de suas reservas, que de acordo com a legislação na época lhe incorreriam em sansões penais. A lei n°. 12.651/2012 se transformou em importante instrumento da  bancada ruralista para anistiar os desmatadores. A lei diz que todos que cometeram crime de desmatamento anterior a 2008, estarão isentos de multa desde que recomponham a área desmatada.
O § 2°, do Art. 125-C, do anteprojeto, sobre localização da reserva legal define que a mesma poderá ser constituída na forma de mosaico, junto as áreas ambientalmente protegidas, entre as quais as de APPs, formando corredores ecológicos. Diferente da legislação federal que vigorou em 2012, o anteprojeto catarinense leva em consideração dispositivos da lei 12.651/12 na qual garante ao proprietário infrator a inclusão no cálculo da sua reserva legal áreas de preservação permanente, corredores ecológicos e unidades de conservação, ambas localizadas dentro dos limites do mesmo imóvel ou em outro imóvel mediante forma de compensação. Há, nesse dispositivo, o risco do proprietário infrator, como forma de compensar a supressão da Reserva Legal na sua propriedade, adquirir áreas constituídas por APPs improdutivas situadas em pontos distantes do mesmo bioma. No caso específico da região de Araranguá, um proprietário que tenha destruído sua RL (Reserva Legal) na comunidade de Volta Curta, poderá compensar a falta adquirindo 20% ou mais de área florestada em outro município do vale do Araranguá?  
O proprietário infrator que em 22 de setembro de 2008 tivesse a área de sua reserva legal extensão abaixo do permitido por lei, o Art. 127-E, § 2°, exime de penalidade desde que promova recomposição da área destruída num prazo de 20 anos, mediante o plantio intercalado de espécies nativas com exóticas ou frutíferas. O mesmo parágrafo estabelece que as espécies exóticas não poderão exceder 50% da área total a ser recuperada. Quem duvida que no prazo estabelecido de vinte anos novas resoluções ou regularizações possam novamente ocorrer para anistiar possíveis infratores que descumpriram o código florestal.
Nos casos referentes às pequenas propriedades que em 22 de julho de 2008 detinham até quatro módulos fiscais, ou seja, aproximadamente 100 ha, cujos remanescentes de vegetação nativa apresentassem percentual inferior ao previsto pelo Art. 125-A, a RL será constituída com a área ocupada com vegetação nativa existente. Quem garante que os proprietários infratores que possuam áreas  superiores a quatro módulos fiscais, para livrar-se das penalidades impostas pela nova legislação não desencadeiem um violento processo de fracionamento de suas propriedades.
Muitas das áreas preservadas no estado de Santa Catarina estão inseridas em Unidades de Conservação gestada pelo governo federal, estadual ou municipal. Isso foi possível graças a legislação n°. 9.985/2000 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza que estabelece critérios e normas para sua criação, implantação e gestão.  Dentre os objetivos do SNUC destaca-se: proteger as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica, arqueológica, cultural, etc.; recuperar ecossistemas degradados; incentivos à pesquisa científica e monitoramento ambiental; recuperar ecossistemas degradados; proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando se conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente.
O que é mais importante quando se refere a criação das unidades é a garantia que assegura a legislação federal quanto a participação efetiva das populações locais na sua gestão. Uma das principais dificuldades encontradas pelas entidades executoras na criação das UCAs (Unidades de Conservação Ambientais) é quanto a execução das indenizações das áreas particulares situadas nos limites das APPs. O Art. 12, § 2°, da lei n°. 9.985/00, diz que na hipótese de não houver acordo quanto aos valores indenizatórios entre a entidade executora e o proprietário da área pretendida, a mesma poderá ser desapropriada, de acordo com que dispõe a lei.
Dois anos depois da aprovação da lei que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o governo federal lançou o decreto n. 4.340/02, que regulamenta alguns artigos relativos à lei n° 9.985/00, dentre os mais importantes o que se refere a criação das unidades que se dará por ato do poder público municipal. O decreto estabelece também a gestão compartilhada ou parceria entre o órgão executor e entidades ambientais como OSCIPs, desde que as mesmas preencham os seguintes requisitos: promoção do desenvolvimento sustentável e comprove atividades de proteção do meio ambiente ou desenvolvimento sustentável.
O anteprojeto 305/2013, no que tange a criação das UCAs, insere no Art. 131-F, II, III, dispositivos oriundos da lei 9.985/00 e o decreto 4.340/02, assegurando sua homologação nas áreas que contenham espécies ameaçadas de extinção regional ou global, e cujas florestas existentes sirvam de corredores ecológicos.  No que tange as parcerias nas gestões das unidades, o Art. 137-G, parágrafo único, estabelece que os convênios devam priorizar dentre outras coisas educação ambiental, ecoturismo, vigilância e fiscalização.

Prof. Jairo Cezar  


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