sábado, 25 de maio de 2013

Heróis forjados e heróis construídos na luta e na resistência, sem homenagens, sem estátuas

Missionária e ambientalista Dorothy Mae Steng assassinada em fevereiro de 2005, Pará

Desde os tempos mais remotos, quando os acontecimentos importantes passaram a ser registrados ou documentados, geralmente as informações ou verdades divulgadas apresentavam apenas uma versão, a dos vencedores, enquanto as verdades dos vencidos foram apagadas e esquecidas. Essas ditas verdades históricas são sucessivamente transmitidas e retransmitidas aos estudantes por educadores, muitos dos quais se eximindo de qualquer reflexão aquilo que é transmitido alegando desconhecer outras versões.
Nas sociedades ocidentais capitalistas a construção da memória histórica se tornou imprescindível para a consolidação da unidade de um povo ou nação. Porém essa unidade não se deu de forma pacífica e espontânea como relatam algumas fontes, mas por meio da brutalidade, especialmente no Brasil quando os portugueses desembarcaram e encontraram os índios.  Embora com armamentos menos sofisticados do que os invasores, os índios resistiram bravamente à ocupação. No entanto não conseguiram resistir às doenças e a doutrinação crista, abrindo caminho para o português dominar todo território que hoje chamamos de Brasil.
Quando os espanhóis chegaram ao continente americano e encontraram civilizações avançadas culturalmente como os Incas e os Maias, a primeira ação tomada foi profanar ou destruir templos, monumentos e demais símbolos sagrados. A perda de referência é o primeiro passa para o domínio de uma cultura sobre a outra. Os jesuítas fizeram com muita propriedade quando chegaram ao Brasil munidos de uma cruz e impondo seu deus às culturas locais. A institucionalização do catolicismo como religião oficial combinada com a construção de igrejas imponentes com seus inúmeros santos se transformou na principal marca de dominação européia cristã nas colônias portuguesas e espanholas.
Uma sociedade se constitui unitária, integrada, coesa, a partir de suas referências simbólicas, que são construídas coletivamente. O espanhol e o português bem sabiam que destruindo templos e imagens dos deuses incas, maias, tupis, guaranis, entre outros, seria meio caminho para consolidar a dominação. Os mesmos sujeitos que participaram da “limpeza” étnica da America tiveram seus nomes e imagens eternizados em livros e em praças públicas mediante a construção de estátuas e que passaram a ser reverenciadas de geração a geração. Porém, tal reverência a um determinado personagem não ocorre de forma espontânea, ele é meticulosamente arquitetado e divulgado como única verdade inquestionável.  São os livros didáticos que assumem esse papel de persuasão simbólica. Por isso, ao Estado sempre coube a tarefa de preparar e distribuir gratuitamente todo material didático às escolas públicos do nível fundamental e médio.
A o ensino da história tanto pode contribuir para promover transformações ou rupturas profundas de uma sociedade como também instrumento de alienação e dominação política. E a dominação se dá quando apenas uma verdade é apresentada, omitindo outras versões acerca dos fatos ou personagens envolvidos. Simplificar a narrativa impede a compreensão da história como construção dinâmica e complexa. Esse papel é bem utilizado pela mídia quando seleciona imagens e informações a serem transmitidas ao público. Nada ocorre de forma aleatória. Quem escolhe já sabe o tipo de reação e comportamento que terá o público.  Quando uma via pública, rodovia, ou praça são contempladas com placas ou estátuas homenageando personalidades de relevância social, esse é uma estratégia eficaz adotada por poder público para a consolidação de uma memória coletiva.  As datas comemorativas, os feriados assumem a função de garantia da memória e a projeção do tipo de sociedade que se pretende para o futuro.
As principais referências ou mitos da nossa história que estão materializadas no imaginário coletivo foram forjados pelas elites políticas, cuja versão oficial não corresponde com o que realmente ocorreu na época. A figura de Tiradentes é um exemplo de personalidade forjada. Embora tenha sido uma das referências do processo que resultou na independência do Brasil, somente quase cinco séculos depois de sua morte, que sua imagem foi resgatada pela elite econômica brasileira querendo transformá-lo no principal símbolo da República.
Tudo foi criteriosamente preparado. Há inexistência de qualquer imagem de Tiradentes quando vivo, levou necessidade de contratação do artista plástico Pedro Américo para representá-lo numa tela. Se observar os detalhes físicos do personagem retratado, é possível perceber que seu rosto muito se assemelha a Jesus Cristo. Por que essa semelhança? Seria mera coincidência ou algo pensado propositalmente. Outra imagem conhecida dos brasileiros através dos livros didáticos ou dos museus é o quadro que retrata a Independência do Brasil. Nada do que está representado no quadro ocorreu daquela maneira. O rio Ipiranga onde aconteceu o ato não passava de um pequeno córrego, hoje completamente poluído por esgoto.

 
A própria comitiva de D. Pedro I foi pega de surpresa com a notícia de que a coroa portuguesa exigia a volta a volta do príncipe para Portugal. Diante da situação apresentada pouca noção tinha do que representaria sua decisão em ficar no Brasil e decretar a independência. Diante disso domou a seguinte decisão, se “colar colou”, se desse resultado, tudo bem. Não era conveniente pintar uma personalidade e seus soldados que ficariam na memória coletiva trajando roupas simples e montados em pangarés. Tudo deveria ser minuciosamente preparado para dar uma idéia de imponência como deveria ser o ato. Portanto, coube ao pintor representá-los vestidos de trajes de gala e montados em possantes cavalos. Deixa explícito também na imagem representada pelo artista que o mesmo teve inspiração nas guerras nacionalistas ocorridas na Europa do século XIX.

Após a decretação da independência inúmeras rebeliões se sucederam pelo interior do Brasil, algumas delas de caráter popular e articulado por escravos e outras personalidades que lutaram contra a opressão dos proprietários de terras e do próprio governo. Se fossem entrevistar estudantes e pessoas simples se ambos têm lembranças de revoltas ocorridas no Brasil no período imperial e os motivos da sua ocorrência, com muita dificuldade a lembrança será apenas dos nomes de algumas delas como a Farroupilha, sabinada, confederação do equador, balaiada, etc. Agora, ter conhecimento que a Revolta da Balaiada foi considerada uma das mais populares ocorridas nas províncias do Piauí e Maranhão, cujo líder foi o mulato Manuel Balaio, que junto com mais três, tomaram a cidade Caxias com oito mil homens aramados e estabeleceram amplo domínio sobre a região. Isso pouca gente sabe. Que Duque de Caxias mais uma vez foi responsável pela pacificação da região, massacrando os revoltosos e construindo a oficial de que Manuel Balaio era uma pessoa má, desordeira, violenta e vingativa.  O que muitos desconhecem é que descendentes de escravos e camponeses nordestinos consideram Manuel Balaio como uma figura importante de resistência contra a opressão. Mas, como outros esquecidos pela história, não teve direito a uma estátua em praça pública.
Guerra da Balaiada - províncias do Piauí e Maranhão

Tanto Lampião como Maria Bonita também foram duas personalidades significativas para história dos vencidos como referências de resistência do povo nordestino a perversidade dos proprietários e governos. No entanto, não há relatos de cidades que construíram monumentos para homenageá-lo (La). Porém, acredita-se que muitas residências em todo Brasil, em alguma parte da casa, prateleira ou estante, tenham uma pequena estatua de barro retratando a imagem de Lampião. Sua memória, portanto, continua muito vivia como de outras lideranças importantes na resistência do povo pobre do interior, como João Maria, na guerra do Contestado/SC, Antônio Conselheiro/BA, guerra do canudos, entre tantas outras batalhas pouco conhecidas e cujas lideranças não foram agraciadas com estatuas e nem com placas de ruas. 
Guerra do Contestado - Santa Catarina
E o que dizer da estatua existente em um dos pontos de maior circulação da capital catarinense, homenageando uma das figuras mais sanguinárias que aterrorizou a população e autorizou o fuzilamento de centenas de pessoas pelo simples fato de se oporem ao seu governo. O que é estarrecedor é a homenagem concedida a essa figura, dando o nome à cidade de Florianópolis, cidade de Floriano Peixoto, no lugar de Desterro. O que impede a população de se mobilizar e exigir a retirada dessa estátua que tanto mal traz à memória dos catarinenses?   
 Qualquer personagem que queira se transformar em herói precisa ser reconhecido e deve estar incutido no imaginário coletivo. Entram em ação, portanto, os construtores da memória que cobrirão de verniz dourada a vida desses personagens. Desconfiar das estatuas instaladas nos espaços públicos das vilas, cidades, como Anhanguera, José de Anchieta, Duque de Caxias, Getúlio Vargas, entre outros é o primeiro caminho para pensar um novo Brasil, e remover figuras esquecidas que não foram homenageados por lutarem contra a opressão.   José de Anchieta foi uma dessas personalidades conhecidas pela sua participação no processo de evangelização e pacificação do índio e que facilitou a dominação portuguesa. Outro fato emblemático relacionado a esse religioso foi sua colaboração com os portugueses na expulsão dos franceses e conseqüente dizimação dos tupinambás. A pena de morte decretada aos tupinambás foi pela razão de apoiarem os soldados franceses.
Estátua de Floriano Peixoto - Florianópolis/SC
Duque de Caxias é outro personagem que ocupa páginas e páginas dos livros didáticos de história e reverenciado por sua participação em “guerras pacificadoras” tanto dentro do Brasil como fora. O que não é ressaltado é o seu lado sanguinário de figura perversa cujas batalhas das quais liderou depois de render e aprisionar o inimigo, os assassinava. A guerra do Paraguai é um exemplo ilustrativo dessa perversidade, na qual foi relatado pelo capitão Benjamim Constante quando esteve junto com Caxias no Front. O Conde D’eu, casado com princesa Isabel e que substitui Caxias na guerra do Paraguai não ficou atrás em termos de atos de barbárie. Relatou Benjamin, e o próprio Júlio Jose Chiovenato na sua obra Genocídio Americano confirmou, que o Conde D’eu com sua espada promoveu uma verdadeira chacina em terra Paraguaia, decapitando crianças, mulheres, idosos, incendiando hospitais, entre outros. Por sua bravura Benjamim Constante foi agraciado com uma estátua, porem a mesma foi removida em 1949. E por que razão? Sabe-se que Benjamin Constante sempre defendeu a idéia de soldado cidadão, ou seja, que o mesmo tenha autonomia de se eximir a acatar ordens quando perceber que a mesma resulta e ato de barbaridade.
 
Duque de Caxias
Estátua do Conde d'Eu - Orleans/SC
Se hoje perguntarmos para as pessoas mais antigas que conheceram Getúlio Vargas ou as mais novas sobre sua pessoa, as respostas, com poucas exceções, serão unânimes em afirmar que o mesmo foi um estadista que promoveu a modernização do país e beneficiou milhões de trabalhadores. Poucas serão as referências sobra sua postura populista, de manipulador das rádios e jornais, de oposição aos movimentos populares, de ditador e apoiador do regime nazi-fascista europeu. Não, isso pouco se fala. Poucas são as figuras políticas como Vargas que receberam tantas homenagens. São raras as cidades brasileiras que não tenham uma rua, uma escola ou estátua o reverenciando. Há pouco tempo uma personalidade importante da política brasileira adotou o mesmo gesto de Vargas, sujando as mãos com petróleo, para simbolizar o controle brasileiro sobre as reservas de petróleo. Porém, quando esse estadista for agraciado com alguma estátua ou nome de rua, as pessoas somente saberão um lado da história, pois serão omitidas outras verdades como a transformação da Petrobrás em cabide de emprego e o controle da prospecção de petróleo as companhias multinacionais.
Busto de Getúlio Vargas
Durante décadas vem se construindo no imaginário social brasileiro a idéia de sociedade do futuro, de que deus é brasileiro, de terra abençoada, etc. São discursos construídos por uma elite conservadora com o propósito de perpetuar o status quo de dominação política. Trabalha-se insistentemente a ideologia de que se hoje a país apresenta uma condição de subdesenvolvimento, de dependência econômica, com esforços individuais nos tornaremos uma nação rica e poderosa. Pois já conquistamos o título da sexta economia do planeta onde mais da metade das residências não tem saneamento básico. Incutir no imaginário tais inverdades incapacita os cidadãos  (ãs) de compreenderem a dominação da elite capitalista que se alimenta das contradições produzidas por elas mesmas.
O Brasil já nasceu capitalista a partir do instante que desembarcaram nas terras alem mar os invasores portugueses sedentos por riquezas. Diferente do que ocorreu nos Estados Unidos quando os ingleses desembarcaram para construir uma nova pátria, aqui a intenção era ocupar e espoliar tudo que desse lucro e transferir para metrópole portuguesa. O processo brasileiro foi tão perverso que a universalização do ensino fundamental somente ocorreu na década de 1990. Já o caso americano foi bem antes, um século atrás. O que foi vergonhoso foram os atos promovidos pela classe política visando comemorar tal “conquista”. Nos quinhentos anos de ocupação portuguesa o número de não índios residentes no Brasil pulou de doze mil para cento e noventa milhões, enquanto os índios pularam de cinco milhões para quinhentos mil. A cada um século um milhão de índios foi morto. Se o processo de ocupação das terras indígenas continuarem ocorrendo por barragens, garimpeiros, grileiros, etc., não serão necessários mais cinco séculos para concluir com seu extermínio, serão bem menos.
Na semana do Dia do Índio, centenas de indígenas ocuparam Brasília. Não para celebrar, mas para se defender do ataque a seus direitos. (©Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)

Algumas mentiras que ainda hoje relutam em permanecer nos livros didáticos e apresentadas como verdades por profissionais desatentos são em relação à substituição do trabalho indígena pelo escravo africano. Relatos equivocados como pouca resistência ao trabalho forçado, preguiça, são adjetivos ainda presentes nessas obras. O que deve ser mencionado é o papel da elite comercial da época que descobriu no comércio de escravos da África uma fonte rentável de ganhar dinheiro. Sendo assim, nada melhor do que construir uma imagem de indolência do índio que não produz, do trabalho manual como atividade reservada aos não escolarizados. Nada pior do que aos domingos na hora do fantástico ter que ouvir a música de abertura dando mostras de que a segunda feira está próxima, dia de sofrimento.        Afinal quem molda a cultura brasileira? São os livros ou um caixa de mentira que ocupa 98% dos lares brasileiros, chamada televisão. É claro que não são os livros, pois se fossem não estaríamos mais sendo comandados por uma pequena corja de políticos corruptos que se aproveitam da ingenuidade de milhares de pessoas que conhecem o Brasil pela tela da Televisão.
Hábitos de consumo, de comportamentos, culto a aparência, são hoje ditados pelo programas televisivos como as novelas que são responsáveis pela educação do povo. Tudo construído por profissionais que montam o cenário e o enredo de acordo com aquilo que a população deseja. Aquilo que não está na televisão não está no mundo, pois a única verdade é aquela transmitida por imagens. Como acreditar na existência da democracia quando se sabe que algumas personalidades até então desconhecidas, do dia para noite se transformam e presidentes da república, pelos simples fato da imagem de bom moço ter sido divulgada pela televisão. Sem contar os big brother que também assume esse papel. Uma democracia somente se constituirá como tal no momento em que a sociedade se organizar e promover a luta pela transformação, devendo começar pela reflexão da vida das pessoas que hoje dão nome as ruas, aos prédios públicos, monumentos e estátuas espalhadas por todos os lados. Conhecer as diversas faces de um sujeito leva as pessoas a sabem o histórico dessa pessoa e a se rebelarem, pois uma nova sociedade só se constrói quando nos indignamos com algo e decidimos participar da resistência, da ruptura social.
Prof. Jairo Cezar


































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