terça-feira, 25 de outubro de 2011

Uma lógica municipalista: as armadilhas da descentralização

IONE RIBEIRO VALLE
Centro de Ciências da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina
ionvalle@newsite.com.br
GLÁUCIA ELISA DE PAULA MIZUKI
Programa de Iniciação Científica do CNPq/Pibic para o Centro de Ciências
da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina
glauciamizuki@ibest.com.br
INAIARA MARIA FERREIRA DE CASTRO
Programa de Iniciação Científica do CNPq/Pibic para o Centro de Ciências
da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina


Reestruturados, descentralizados, com menos hierarquia, com procedimentos mais simplificados, os sistemas municipais de ensino conferem maior autonomia às escolas, que, confrontadas entre si, são impelidas a investir mais na eficiência e na qualidade das suas ações educacionais.
Nesse sentido, parece óbvio que a descentralização responsabilize mais os agentes e facilite seu engajamento no funcionamento das redes de ensino, favorecendo as mudanças e inovações desejadas. Além disso, as coletividades locais têm tendência a se envolver com maior intensidade nos projetos educativos, promovidos no âmbito da municipalidade. Todas essas mudanças parecem seguir na direção de um Estado ao mesmo tempo menos centralizado, mais eficaz e adaptável às necessidades da população. Os municípios podem oferecer a oportunidade a cada escola de formar verdadeiras comunidades de aprendizagem, centradas sobre a cooperação e a interdependência no lugar da competição e do individualismo.
Se, de um lado, não se pode esquecer que a educação nacional preenche um papel fundamental na democratização da sociedade brasileira e que a descentralização é necessária em virtude das características históricas e geográficas de nosso país, por outro lado não se pode deixar de mencionar as conseqüências negativas das propostas descentralizadoras sobre o sistema de educação nacional, em termos de exclusão da escola e na escola.
A lógica descentralizadora não se tem mostrado eficaz na eliminação das desigualdades escolares, atestadas por numerosos estudos desenvolvidos no campo educacional. Sob o abrigo da descentralização, não se oferecem as garantias indispensáveis à igualdade de acesso a uma educação básica de qualidade. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, jan./abr. 2004 209 Democratizar, descentralizar, municipalizar. Embora não se possa afirmar que exista uma ligação direta – e automática – entre municipalização e persistência das desigualdades, a descentralização é portadora de novas formas de diferenciação.
Longe de contribuir para a consolidação de uma democracia de proximidade, ela pode acabar instituindo, na esfera local, uma nova estrutura burocrática, que faculta o estabelecimento de relações pessoais e políticas com os detentores do poder municipal, tão distante da comunidade escolar quanto se encontra a burocracia estadual ou federal.
Constituindo-se num dispositivo complexo em que, em tese, ninguém detém o poder, mas todos detêm uma parcela dele, a descentralização possibilita uma opacidade dos mecanismos de decisão, sem evitar, contudo, os excessos da burocracia. A repartição confusa dos papéis acaba diluindo as responsabilidades e gerando uma sobreposição de funções, que coloca as redes municipais numa posição inferiorizada na estrutura hierárquica do sistema de educação nacional.
A estrutura descentralizada pode também provocar diferenças importantes entre pequenos, médios e grandes municípios, dependendo dos recursos financeiros disponíveis ou do grau de mobilização em favor da escolarização. Geralmente, o orçamento contempla distintamente os interesses educacionais, o que significa que os recursos não são programados nem aplicados de maneira idêntica: num município, os custos com transporte e merenda escolar, assim como manutenção das escolas, infra-estrutura esportiva, capacitação de pessoal são imputados à rubrica da educação; noutro, essas despesas podem compor outras rubricas orçamentárias.
Além disso, um pequeno município situado na zona rural (com mil habitantes por exemplo) não poderá conceber os mesmos projetos educacionais que seu vizinho situado na capital ou com 300 mil habitantes ou mais. As mudanças em favor de um ensino de qualidade acabam sendo implementadas apenas pelas redes de ensino mais bem situadas geográfica e economicamente, enquanto a pequena escola municipal de zona rural ou de periferia pena para integrar as inovações e melhorar o nível de habilitação de seu corpo docente.
Se considerarmos ainda que os recursos financeiros permanecem centralizados nos níveis estadual e federal – é nos gabinetes dos ministros em Brasília e dos secretários de Estado que continuam sendo tomadas todas as decisões educacionais –, verificamos que a lógica descentralizadora transforma os municípios em vítimas dessa faceta da democratização. A autonomia preconizada é do tipo: “vire-se por si mesmo”, em se tratando das condições de trabalho, mas submeta-se às orientações e prerrogativas superiores em nome da unidade nacional.
As redes municipais são colocadas numa posição meramente reivindicatória em relação às instâncias superiores. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, jan./abr. 2004 Ione R. Valle, Gláucia E. de P. Mizuki e Inaiara M. F. de Castro. A qualidade dos serviços educacionais e as condições de funcionamento ficam totalmente atreladas às escolhas políticas efetuadas em cada município ou às iniciativas isoladas de prefeitos e secretários, reproduzindo profundas disparidades escolares.
Os municípios são, portanto, os que mais sofrem os efeitos perversos da lógica descentralizadora, que acaba transformando-se numa porta aberta para a reprodução das injustiças em termos de educação. Em conseqüência disso, as redes municipais são reservadas às classes menos favorecidas (os dominados, no sentido dado por Bourdieu, 1998). Quanto mais descentralizado o sistema de ensino mais a escola parece estar aparelhada para selecionar os mais fortes: as portas da universidade permanecem fechadas às camadas populares: “merecedoras”, certamente, mas “mal nascidas”.
Com base em pesquisas realizadas a partir de documentações obtidas de órgãos oficiais como Receita Estadual, Tribunal de Contas, IBGE, TCE, Portal do Cidadão e Secretaria da Educação, entre outros, foi possível fazer um diagnóstico mais preciso acerca das armadilhas que estão montadas para os municípios que porventura aderirem ao processo de Municipalização do Ensino.  De acordo com a legislação brasileira, ou LDB, os sistemas de ensino estão divididos em cinco categorias: Ensino Infantil, Fundamental, Médio, Especial e Superior. Para os municípios a incumbência dos mesmos é de gerirem o ensino infantil e fundamental, aos Estados, além oferecerem o fundamental, fica sob sua total responsabilidade a concessão do ensino médio. Enquanto, as categorias, técnicos e superior, são  de iniciativa da rede de ensino federal.
Como forma de viabilizar a educação fundamental, a LDB 9394/96 criou o Fundef (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental), ou seja, uma espécie de realocação dos recursos financeiros, equivalente a 25 % da receita dos municípios, que são transferidos automaticamente para uma conta específica, sendo posteriormente redistribuídos aos municípios, proporcionalmente as matriculados efetivadas.
Em 2009, com a pretensão de alavancar ou melhorar a qualidade da Educação Pública, o governo federal estendeu os recursos também para o ensino médio, através da criação do FUNDEB (Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Básico). No entanto, o que se constata quanto as mudanças que vem se processando na educação, principalmente em se tratando de financiamento da mesma, continuará sendo  dos municípios, semelhante ao antigo Fundef.  Um dos problemas que ainda assombra o nosso desenvolvimento educacional é a limitação de recursos proveniente do governo federal. Enquanto países como Coréia do Sul, Japão e outros participam com cifras que ultrapassam a 15 e 20% (PIB) Produto Interno Bruto, no Brasil, a pressão é para que o governo aumente de 7 para 10%. É muito pouco para um país que deseja se transformar em potência econômica no futuro. Além do mais, seria necessária uma maior participação da esfera federal no planejamento de uma política educacional, evitando desse modo a sua fragmentação. Uma federalização da educação proporcionaria um controle mais eficaz dos recursos, em vez dos municípios, as próprias unidades escolares, através de seus conselhos deliberativos, se comprometeriam em gerir os recursos que seriam distribuídos diretamente para as unidades.
Porém, o que vem se constata é um caminho inverso, uma profunda fragmentação do sistema, descomprometendo cada vez mais o Estado como principal mediador e entregando toda a responsabilidade às esferas locais, isto é, os municípios. Embriagados pela possibilidade de aumento dos repasses do Fundeb, inúmeros municípios, especialmente aqueles  governados por administradores de pouca criticidade política, estão sendo atraídos pelo “canto da sereia”, de forma silenciosa e progressiva vem negociando com o governo estadual acordos visando a absorção de escolas e estudantes.
      O que muitos administradores desatentos desconhecem é que esse “eldorado” inspirará em 2018, quando o Fundeb perder sua validez. Com o não repasse dos recursos e com o maior número de estudantes e escolas para administrarem, que caminhos adotarão os administradores municípios, especialmente os mais pobres. Certamente não será diferente como vem ocorrendo com a saúde, após a criação do SUS.
Em relação a municipalização, é importante, antes de tomar qualquer iniciativa, que os administradores municipais tenham conhecimento desses dados pesquisados. A preocupação do pesquisador foi fazer um relato comparativo acerca da distribuição dos estudantes entre os níveis infantis, fundamental e médio, de 2006 a 2010, das redes municipais e estaduais. E as conclusões foram as seguintes:
Em 2006, a rede estadual de ensino atendia cerca de 1.517 estudantes, quatro anos depois, esse número foi reduzido para 67.  Quanto ao ensino pré-escolar, dos 19.921 matriculados em 2006,  desse total, apenas 81 continuam no estado. Na educação fundamental, eram 437.682 em 2006,  porém, em 2010, os matriculados reduziram para 383.125, ou seja, 53.557 a menos, possivelmente transferidos para os municípios. Já o ensino médio, não houve alterações significativas, dos 226.712,  matriculados em 2006, desse total, em 2010, o índice foi reduzido para 208.437.
Em relação aos dados relativos as matriculas da rede estadual, entre os anos de 2006 e 2010, o que podemos concluir acerca dos índices de estudantes matriculados nos diferentes níveis de ensino é que vem ocorrendo uma lenta mais progressiva redução da participação do estado no investimento da educação. Nos últimos cinco anos, dos 697, 245 estudantes incluídos no quadro de matrículas, apenas 602.297, continuam vinculados a rede. O que deixa mais perplexo quanto se observa esses números, é que a receita financeira do Estado vem crescendo, alcançando cifras que ultrapassam a 51%. Por outro lado, na contramão do processo, os municípios não vêm acompanhando o mesmo desempenho, ou seja, o crescimento da receita é pouco superior a 44%.
Enquanto no Estado, presenciamos um crescimento negativo das matrículas, nos municípios o processo é inverso. De 612, 543 matrículas, no começo de 2006,  em 2010 esse índice chegou a 632.104.
Com base nessa política de municipalização, quando o governo estadual argumenta que transferindo aos municípios a responsabilidade para com o ensino fundamental,  sua dedicação será totalmente atribuída ao médio, essa afirmação não condiz com a realidade. Há, de forma explícita, uma armadilha preparada pelo e governo e cujos prefeitos não estão se dando conta. Em 2010, segundo os dados de fontes ligadas ao estado, a população de estudantes até 14 anos, do total de 1.362.313, que deveriam estar sendo atendidas pelas diversas redes, apenas 1.146,244 frequentavam as escolas, ou seja, são 216.069 estudantes excluídos do processo.
É sabido que a parcela significativa desses estudantes, que estão fora da escola, deveria estar freqüentando o ensino médio. Se o Estado tem como pretensão descomprometer-se com o ensino fundamental e assumir integralmente o médio, com índices de matrículas decrescentes, porém, com aumento receita, cabe parafrasear uma passagem da obra de Willian Shakspeare, em sua obra Hamlet, quando diz que há algo “podre no Reino da Dinamarca”.
Tanto a sociedade como os administradores públicos precisam ficar atentos ao esquema da municipalização que está sendo montado. Muitos prefeitos, desatentos, desconhecem que os recursos do Fundeb encerram em 2018,  após essa data os mesmos terão que buscar meios alternativos para manter as unidades escolares financiando. Nesse sentido, se a receita do Estado está crescendo, mesmo atendendo os dois níveis de ensino, como estará a receita do Estado sete anos depois, sabendo que seu compromisso do mesmo convergirá  apenas com o médio, que está em declínio.
Não podemos permitir que faça com a educação o mesmo que se fez com a saúde, através da criação do SUS.  A educação não pode como ocorrera no passado vir a se transformar mais uma vez em instrumento para beneficiar grupos políticos ou partidos entrincheirados nas instâncias municipais. Como pensar em qualidade na educação, através da municipalização, se a esmagadora parcela dos municípios catarinenses não possui um processo democrático de gestão, cujos diretores e demais funcionários da escola são indicados por cabos eleitorais ou políticos de plantão sem nenhum compromisso real com a educação.
Outro agravante nisso tudo é que com a municipalização ocorrerá um processo de desarticulação do movimento de lutas dos trabalhadores, que foi  responsável, nesses últimos trinta anos, por certas conquistas que proporcionou ao magistério uma condição de profissão. Com a fragmentação do ensino, os professores terão pouca resistência, ficando-os  vinculados as decisões de entidades sindicais, muitas das quais, com pouca representatividade e controladas por personalidades próximas aos administradores municipais.   
TEXTO REVISADO E ATUALIZADO PELO PROFESSOR JAIRO CEZAR           



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