quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Resquícios de uma sociedade: Sete Povos das Missões e o genocídio guarani



Visitar a região das missões no noroeste do Rio Grande do Sul preconiza aos mais sensíveis momentos de profunda admiração, reflexão e introspeção acerca da maravilha arquitetônica das construções e artes em estilo barrocas e dos milhares de guaranis mortos nas guerras de resistência, que se resumem hoje a pouco mais de 150 indivíduos que lutam desesperadamente para subsistir e manter viva sua cultura em uma pequena faixa de terra distante 40 km da antiga redução jesuítica de São Miguel, capital dos sete povos das missões.
Para compreender a complexidade dessa região é importante esclarecer  que com a chegada dos colonizadores portugueses, espanhóis e padres jesuítas no final do século XV e XVI, as terras que hoje constituem os territórios do Uruguai, sul do Brasil, Argentina e Paraguai já eram habitadas por povos tradicionais como os guaranis há mais de mil anos. Eram considerados culturalmente avançados, pois influenciaram em vários aspectos outras culturas como os nômades do sul.
Com a chegada dos jesuítas, cuja missão era promover a evangelização dos povos indígenas, protegendo-os das incursões reformistas protestantes em expansão na Europa, foram instituídas as reduções com o emprego de técnicas arquitetônicas tradicionais guarani como a madeira e a palha. No entanto o processo de catequização não se processou de modo tão simples como se esperava. Tanto os bandeirantes como a própria resistência guarani forçaram os jesuítas a se retirarem para a margem direita do Rio Uruguai, ficando lá até o final do século XVII quando atravessaram o rio e fundaram os sete povos das missões. Além da fundação dos sete povos em território brasileiro, outros quinze foram homologados na Argentina e sete em território paraguaio, totalizando trinta. Nas reduções, os jesuítas aproveitaram-se dos costumes guaraníticos para consolidar um modelo de sociedade baseado nos preceitos da solidariedade, comunitarismo e propriedade coletiva.
A organização espacial dessas reduções obedecia a padrões preestabelecidos: no centro, um pátio enorme destinado às festas, apresentações teatrais, jogos, etc.; num dos lados, o cemitério; no outro, as oficinas e a casa dos padres também conhecida como colégio; a casa dos índios e a igreja, situada num ponto estratégico das reduções. 

Cada vez mais tais práticas produtivas tornavam tanto guaranis como jesuítas mais autônomos e independentes perante as coroas espanhola, portuguesa e da cúpula católica, transformando-se em ameaça às políticas expansionistas e mercantilistas das respectivas cortes. Nesse aspecto, resguardando os interesses de cada nação, Portugal e Espanha se uniram e patrocinam uma das maiores guerras sangrentas da história, que resultou na quase dizimação da nação guarani. O próprio vaticano seguiu essa mesma linha tornando ilegal a ordem dos jesuítas exigindo que os religiosos retornassem imediatamente para Europa. Com o abandono das reduções, no começo do século XIX as mesmas passaram a ser ocupadas e incorporadas ao domínio Portugal, sendo algumas delas batizadas com os nomes dos seus fundadores.       
Em se tratando de requinte arquitetônico e cultural, foram os jesuítas que no começo do século XVIII trouxeram da Europa todo um conhecimento de traços e linhas clássicas e barrocas que foram empregadas na construção das igrejas e demais obras como vitrais imagens sacras que adornavam os altares e outros cômodos das  mesmas. Todo esse saber foi assimilado pelos guaranis que graças a sua extraordinária capacidade e sensibilidade artística permitiu que confeccionassem fabulosas obras sacras, instrumentos e composições musicais que tornaria o canto guarani um dos mais encantadores e emocionantes já conhecidos.
 A antiga redução de Santo Ângelo Custódio, considerada a mais nova entre as sete reduções, na qual foi fundada em 1707, a imponente catedral em estilo barroco que se descortina entre os trinta arcos construídos a sua frente, dá uma ideia da riqueza e supremacia da congregação jesuítica que apoiada pelos guaranis transformou a região em uma das mais prósperas do sul da América do Sul. A redução de Santo Ângelo se destacou por ser um dos maiores polos produtores de erava mate e algodão entre as demais reduções, cujo auge econômico ocorreu em 1753 quando a população atingiu 5.417 habitantes. Tanto a catedral como o casario que compõem o conjunto arquitetônico, ambos foram construídos sobre as ruinas da antiga redução, que podem ser visualizadas visitando alguns remanescentes arqueológicos espalhados pela praça. Grande parte do acervo que conta a história do município e região das missões está disponível para visitação no museu municipal situado ao lado da praça.       
  
Ao chegar ao Sítio Arqueológico de São Miguel o que chama atenção na entrada do município é o extraordinário portal cujos ricos detalhas aguçam a curiosidade dos visitantes. Mas, o que realmente desperta a atenção é a inscriçãoCo Yvy Oguereco Yara” no topo do pórtico, que quer dizer (Esta Terra Tem Dono) proferida por Sepé Tiarajú, que foi um dos principais líderes dos guaranis. Andar pelo interior do Sítio São Miguel proporciona instantes de deslumbramento e reflexão, pensar que fé e poder foram imprescindíveis para deslocar pedras de longas distâncias que resultaram em obras arquitetônicas fabulosas como as ruinas da catedral. E não é só isso, toda essa estonteante riqueza de detalhes teve os guaranis como principais protagonistas, preparando a massa, recortando e assentando as pedras, etc. Sem contar a longa jornada estafante para transformar troncos de madeira em imagens sacras, ricamente esculpida que beira a perfeição. Observar atentamente cada metro quadrado do sítio, cada pedra que compõem as construções, cada imagem exposta no museu, faz pensar a força da fé que impulsionava aquele ambiente.   
  
Até que ponto pode-se orgulhar da congregação jesuíta como protagonista de um projeto de sociedade autônoma na região? Teriam os guaranis como os demais povos tradicionais alcançados tais níveis de sucesso sem sua presença? Pretendiam os jesuítas, aproveitando a experiência organizacional dos guaranis, introduzirem na região um tipo de sociedade inspirada nos princípios do coletivismo, ou seja, uma espécie de socialismo cristão? Pode-se admitir que os religiosos também tiveram responsabilidade pelo quase genocídio dos guaranis ou apenas protelaram um processo irreversível, que mais cedo ou mais tarde ocorreria?
  São dúvidas que continuarão permeando o imaginário de muitos que transitam pelo sítio. Outro aspecto que também merece reflexão é quanto a invisibilidade dos guaranis. Não há presença deles tanto no sítio como nas imediações da cidade. De acordo com informações expostas num cartaz afixado na entrada do sitio, o mesmo destaca que foi a partir de 1990 que os guaranis da etnia Mbyá receberam autorização para adentrar no sítio e comercializar seus produtos. 
Contatando com funcionários do sitio a informação que deram era que os guaranis habitavam uma reserva distante trinta quilômetros aproximadamente do centro da cidade, que a cada início de semana um ônibus do município os transportavam da aldeia para o sítio onde vendiam seus produtos. Outra informação repassada era de que na hipótese de querer visitar a comunidade deveria ser desembolsada uma quantia de  180 reais a ser paga ao líder da comunidade. Tanto a distância como o elevado valor estipulado cada vez mais inibia as pretensões de conhecer em loco o jeito de viver dos remanesces guaranis.
No último dia no município de São Miguel já no trevo de saída da cidade um forte impulso fez com que retornássemos e colocasse em prática o desejo de conhecer a aldeia dos Mbyá-guarani. Depois de algum tempo tentando recarregar o celular para proferir ligação ao líder da comunidade, tivemos a sorte de nos deparar com um grupo de mulheres, crianças e jovens num dos bares da cidade lanchando para irem em direção ao sítio. Perguntei para uma senhora de bebê no colo se conheciam o chefe e a mesma me levou para dentro do bar apresentando-me um garoto aparentando 15 a 16 anos que me guiou até a presença do cacique. Depois de quase trinta minutos caminhando chegamos num local onde estava o restante do grupo. Um jovem senhor de trinta anos aproximadamente veio ao meu encontro que se apresentou como líder, onde imediatamente concordou em nos levar até sua aldeia.
Durante o percurso construímos um breve diálogo no qual ficamos sabendo que semanalmente um ônibus se desloca até a comunidade para transportá-los ao centro da cidade de São Miguel, onde comercializam seus artesanatos no interior do Sítio Arqueológico São Miguel. Diariamente, centenas de turistas transitam pelo sítio e se impressionarem com a grandiosidade do que restaram de uma catedral, em ruínas, obras de artes construídas pelas mãos guaranis entre os séculos XVII e XVIII. A sobrevivência dessas famílias depende quase que exclusivamente dos parcos recursos que conseguem vendendo seus produtos, colares, artefatos de caça, e outras bugigangas, além dos alimentos que cultivam nas pequenas roças de milho, mandioca, etc., e criações de pequenos animais como aves. A caça, segundo o cacique, muito esporadicamente, pois não mais animais disponíveis nas florestas.
     
O que surpreendente no trajeto são as vastas áreas de terras empregadas para o cultivo, especialmente no entorno da aldeia onde, acredita-se, vem impactando todo ecossistema local.  Depois de quase uma hora transitando em estrada de chão batido, se via de longe, distante uma da outra, algumas pequenas casas de madeira, cobertas com telhas comuns e palhas, várias delas, afixadas à parede, antenas de tv por assinatura.  Um cenário diferente daquele vista no museu municipal de Santo Ângelo, onde se podia ver exposta num dos cômodos, réplica de uma moradia coletiva guarani, coberta de palha e capaz de abrigar várias pessoas no mesmo cômodo.
Ao chegar ao centro da comunidade, a antena de tv, símbolo da modernidade, se contrastava com uma realidade que em nada se assemelhava com que  certamente visualizavam na telinha. Uma sociedade um tanto quanto abandonada, esquecida pelas autoridades, lixo espalhado por todos os cantos, sujeira na frente das residências, uma escola fechada, uma unidade de saúde recém-restaurada, um centro comunitário e um espaço cultural não finalizado com estrutura arquitetônica inspirada nas primeiras moradias. No local algumas crianças, aparentemente com pouca higiene, que brincavam com seus estilingues, contrastando com um adolescente, sentado e munido de um celular e fone de ouvido, indiferente da nossa presença, se deliciava como os demais jovens da sua idade, provavelmente do lixo musical midiático que aliena as mentes e corações de toda uma geração.

   
Por que as residências dos guaranis estavam dispostas tão distantes uma das outras, se nos livros didáticos e nas imagens divulgadas pelas mídias de massa ainda tentam  mostrar uma organização espacial em forma de círculo concêntrico? A forte influência capitalista estruturada num modelo de organização individualizado pode estar influenciando nas mudanças dos costumes desses povos, precarizando as relações coletivas, transformando-os em sujeitos fragmentados, que os impedem de compreender sua essência, sua singularidade, expondo-os a lei da massificação cultural, da exploração e do consumo desenfreado de supérfluos.
Outro aspecto intrigante observado é o fato dos antepassados dos poucos guaranis que restaram terem protagonizado tamanho empreendimento cultural junto com os jesuítas construindo inúmeras igrejas, obras sacras e instrumentos musicais que hoje revertem em riquezas para toda uma região, porém, para seus descendentes, apenas miséria. Onde estão as habilidades de um povo marcado pela sensibilidade musical, escultural e arquitetônica, referendado pelo seu principal líder, o cacique Sapé Tiajarú, que foi brutalmente assassinado pelos soldados a mando das coroas e da vossa santidade, o papa? Será que todo esse esplendor se dissipou  com a morte do seu líder ou continua impregnado nos genes de cada indivíduo necessitando apenas de um impulso para despertar?

Permeia na comunidade, a olhos vistos, uma brutal fraqueza, desesperança e impotência mórbida, cujo mundo vislumbrado não ultrapassa as fronteiras do território esquecido, de mulheres, homens e crianças apáticos, cuja esperança de dias melhores depende da boa vontade de entidades governamentais como a FUNAI que pouco fazem para mudar o atual cenário. Mantê-los distantes do mundo “civilizado”, conformados com a condição de vida miserável no qual estão submetidos torna-se propositalmente vantajoso para aqueles que almejam poder e lucros.
A realidade decadente dos remanescentes guaranis dos sete povos das missões não é diferente dos demais compatriotas espalhados por outras regiões e países vizinhos, Paraguai, Argentina, Uruguai e litoral sul e sudeste do Brasil que formavam o grande agrupamento guarani do sul da América do Sul. Embora, acredita-se, que o pequeno agrupamento guarani de São Miguel tenha suas terras demarcadas, tal realidade não se constata em outras regiões brasileiras onde lideranças indígenas como as pertencentes as etnias Kaiowás do Mato Grosso do Sul, são assassinados por defenderem suas terras contra a ganância de fazendeiros e grileiros, com aval dos próprios governos estadual e federal.   Sem contar as mortes decorrentes de doenças por desnutrição, o alcoolismo e  os inúmeros casos de suicídios. É uma forma moderna de holocausto que atinge tanto indígenas como parcela da população negra e pobre que habitam os guetos das pequenas, médias e grandes cidades, avassaladas pelo tráfico e consumo de drogas.    
Em Santa Catarina, os remanescentes guaranis especialmente os que residem nas imediações do Morro dos Cavalos vivem atualmente momentos de extrema apreensão em decorrência do pedido de anulação da portaria 771/08, do Ministério da Justiça, protocolada pela Procuradoria Geral do Estado, que defende o não reconhecimento de uma área de 1.988 ha como pertencentes aos indígenas. O impasse envolve governo federal, estadual e universidade federal. A área preterida pelos 200 guaranis que ali habitam, também é ocupada por cerca de 70 famílias que não admitem sair sem serem indenizadas. No entanto, o governo federal justifica que por ser de fato e de direito, área indígena, ressarcirá apenas os empreendimentos, sendo compromisso do governo do estado o pagamento da propriedade.
 

A alegação do próprio governo estadual é que várias informações contidas no relatório elaborado por pesquisadores foram forjadas para beneficiar os indígenas que ali residem. Dentre eles que as terras hoje ocupadas ocorreu depois da promulgação da Constituição de 1988, não por remanescentes guaranis, os carijós, que habitavam a região quando da chegada dos colonizadores. Segundo estudos, os últimos carijós desapareceram no século XVII, sendo que os atuais guaranis chegaram ao local na década de 1960 provenientes do Paraguai e Argentina.
Diante de tais episódios, o que está por trás desse imbróglio jurídico são as corporações e grupos empresariais do ramo imobiliário interessados pela área pretendida pelos guaranis. Nesse mesmo local onde residem os guaranis, continua o impasse sobre a construção ou não do túnel Br.101 ou se fará um desvio alternativo. Os próprios indígenas que ali residem concordam com o túnel admitindo que com isso será possível a construção de um corredor ecológico, hoje bloqueado pela rodovia.      
Se tal questão não for tratada com seriedade e imparcialidade a região em litígio poderá se tornar palco de acirrada violência envolvendo índios e não índios. Segundo denúncias o processo já vem ocorrendo com a destruição dos marcos e placas identificatórias, como do corte das mangueiras que transportam água para a comunidade.
Sendo os guaranis que habitam a região do morro dos cavalos não remanescentes dos antigos carijós, isso não justifica a decisão da Procuradoria Geral do Estado de anular a portaria 771/08. Se levarmos em conta a história dos guaranis, independentes das etnias na qual pertencem, os mesmos habitavam essas terras muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Portanto, a situação dos guaranis da Palhoça/SC pouco se distingue dos  que habitam a região dos Sete Povos das Missões. Tanto lá como aqui ainda são tratados com preconceito pela população branca e pelas autoridades, cujo desconhecimento da sua história, da sua cultura os rotulam como seres indolentes, preguiçosos, que querem muitas terras, mas não produzem, que em nada contribuem para o “progresso” da nação.   
Diante desse modelo econômico perverso que reduz o ser humano a um mero consumidor descartável, a preservação dos costumes da sociedade guarani, suas práticas comunitárias, seus saberes provenientes dos elementos da natureza, sua agricultura milenar, suas práticas religiosas, tudo isso compõem um extraordinário mosaico de informações e saberes que certamente contribuirá para a construção de uma nova sociedade, mais fraterna e com justiça social. 

Prof. Jairo Cezar  

Nenhum comentário:

Postar um comentário