sábado, 16 de junho de 2018


PROJETOS DE LEI COMO O 490/07 DITAM A OFENSIVA DO AGRONEGÓCIO SOBRE TERRITÓRIOS INDÍGENAS


Os remanescentes indígenas que resistiram à hecatombe ocupacional de suas terras há mais de quinhentos, estão vivendo agora o fantasma diário das investidas criminosas do agronegócio sobre o pouco que ainda resta de suas posses, devastando florestas inteiras, solo, água e todo o frágil ecossistema. Desde a sua ocupação pelos portugueses até o começo da República, o Brasil se especializou na atividade mercantilista do pau-brasil, cana de açúcar, café, algodão, etc, com o emprego da mão de obra escrava indígena e africana. Mesmo com a ascensão da República, a atividade industrial brasileira não se sobrepôs a supremacia do mercado das commodities, atividades primárias (mineração, agropecuária, entre outras).  
Nas últimas décadas do século XX e todo o período do século XXI, os governos passaram a canalizar esforços para a dinamização das commodities para a exportação, na qual garantiria o superávit primário da economia.  A monocultura da soja, cana de açúcar, suco de laranja; a pecuária intensiva deu origem a um poderoso agrupamento social, envolvendo fazendeiros, pecuaristas, empresários, que para fazer valer os seus interesses, passaram a financiar a eleição de representantes do setor nas instâncias dos poderes constituído.
No entanto, é no congresso nacional estão alojados os seus principais porta vozes, deputados federais, senadores e ministros, cujos votos em cada sessão ordinária são suficientes para aprovar ou vetar projetos de interesse ou contra a categoria. Não se exclui aqui o poder executivo, loteado por ministros de bancadas partidárias com laços estreitos com o agronegócio, a exemplo do ministro da Agricultura, considerado um dos maiores produtores de soja do mundo.
Projetos do tipo liberação do comércio de agrotóxicos, supressão de unidades de conservação, fim de licenciamentos ambientais, reforma do código florestal, flexibilização da lei sobre o trabalho escravo, entre tantos outros projetos, foram e estão sendo pautas das votações nas comissões e no plenário da câmara e do senado. As investidas do agronegócio não escapam nem mesmo os frágeis biomas do Serrado e da Amazônia, com extensas áreas de florestas sendo suprimidas para a criação de gado e o cultivo da suja, causadores de danos irreversíveis no solo, rios e aquíferos devido ao emprego de agrotóxicos.
Entretanto, na rota dos poderosos tratores e motosserras estão as valiosas terras habitadas ou reivindicadas por dezenas de comunidades indígenas, muitas das quais não homologadas.  A constituição de 1988 assegurou ao seguimento indígena uma serie de direitos que estão sendo ameaçados pela truculência dos ruralistas, dentre eles o risco do não reconhecimento e a não demarcação de terras que comprovadamente foram habitadas pelos antepassados. Entretanto, deputados vinculados à bancada ruralista buscam a todo custo a aprovação de PLs restringindo tais direitos. O PL 490/2007, é um deles, com tentativa de suprimir dispositivos importantes da Constituição Federal de 1988, como os artigos 231 (reconhecimento das áreas indígenas e demarcá-las), e 232, (o direito de ingressar em juízo para assegurar seus direitos e interesses).
O PL. 490/07, segue a mesma linha de outras propostas insanas que não contemplam interesses dos indígenas, como a PEC 215, ainda não votada, que tenta transferir para legislativo federal a responsabilidade pela demarcação das terras que habitam ou reivindicam. Tal proposta ridícula é o mesmo que colocar uma raposa para cuidar do galinheiro. Quase a metade dos parlamentares representa ou são grandes proprietários de latifúndios desejosos por expandir seus domínios sobre outras áreas.
 Além do PL 490, havia outros 10 projetos similares sobre o mesmo tema, que foram apensados como o projeto de lei n. 6818/2013 que tenta por um fim no processo de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. É óbvio que todo esse confuso conjunto de regulações tende a fragilizar ainda mais direitos assegurados como o descrito acima, como também a autorização de obras de infraestrutura e o fim do direito de consulta prévia dos indígenas sobre projetos. Há atualmente 42 projetos de infraestrutura e 193 processos para mineração em terras indígenas isentos da exigência de pareceres da FUNAI no quesito licenciamento ambiental. São projetos envolvendo edificações de barragens para hidrelétricas, linhões de rede elétrica; rodovias e ferrovias. Todas afetando áreas indígenas.
Além das hidrelétricas concluídas como a de Belo Monte, que ocupou uma área equivalente a duas São Paulo, que teve um custo orçado em 30 bilhões de reais e cuja água invadiu 40 mil residências, há outras obras do seguimento elétrico previstas como a do São Luiz do Tapajós, no Para, que terá impacto de dimensões imensuráveis às populações tradicionais e aos ecossistemas, semelhantes às faraônicas obras nos rios Xingu, Negro, etc. 
O receio dos indígenas acerca dos projetos de lei em tramitação no congresso é justificável.  Atualmente 223 propriedades indígenas no Brasil estão à espera por demarcação. Somente na região sul do Brasil o número de propriedades para serem homologadas chega a 40. A apreensão dos inúmeros grupos étnicos se torna maior pelo fato de que 65 dessas propriedades espalhadas pelo território brasileiro já se encontram invadidas por posseiros e fazendeiros, que instalaram seus equipamentos e empreendimentos.
O decreto n. 1.775 de 1996 estabelece regras e prazos limites para que o ministério da justiça encaminhe os procedimentos de demarcação de terras, no máximo 30 dias para conclusão dos pareceres. O descaso com o decreto beira ao absurdo. Tem processos de demarcação correndo na justiça há 33 anos. Havendo fato consumado dos projetos como o PL 490 e outros tantos aglutinados, adeus as demarcações. O que pode acontecer nas propriedades há anos esperando pela oficialização da posse, é o governo querer alegar inconsistência da área para a subsistência das comunidades, decorrente da depreciação do solo, da água, das florestas, resultado de anos de ocupação ilegal.     
Com o substitutivo do PL 6818/2013, os municípios, estados, organizações sindicais e fazendeiros terão direito de participar das consultas sobre projetos de exploração mineral e obras estruturantes em áreas indígenas, com direito de voz e voto. Se aprovada a mal intencionada matéria na comissão de constituição e justiça, há grandes possibilidades de que a mesma irá direto para o senado, sem ter que seguir o rito costumeiro na câmara. Outro item que também está gerando preocupação às populações indígenas que há anos esperam pela demarcação de suas terras é a tese do MARCO TEMPORAL, que também consta no substitutivo. O MARCO TEMPORAL trata do direito à posse física da terra, apenas àqueles GRUPOS INDÍGENAS que comprovarem estarem ocupando-a até o dia 05 de outubro de 1988, data da aprovação da Constituição Federal.
Não há dúvida que esse dispositivo tem um explícito caráter de perversidade contra os povos tradicionais, a exemplo dos GUARANIS KAYWAS, do Mato Grosso do Sul, que esperam há anos do governo federal a devolução de suas terras invadidas por fazendeiros. Num momento como o que estamos vivendo, onde quase todas as mídias de massa no Brasil têm o foco voltado ao mundial da FIFA na Rússia, poucos brasileiros se atreverão a sair da frente das TVs e lançar manifestos de apoio a dezenas de indígenas que vários estados que estão mobilizados em Brasília acompanhando as tramitações dos projetos na câmara e senado.
Um grupo de indígenas de Rondônia entregou documento ao presidente da CCJC (Comissão de Constituição Justiça da Câmara) contendo pareceres das várias comunidades afetadas solicitando para que o projeto de lei 490 seja arquivado. No instante que entregaram o manifesto ao presidente da comissão, as representantes indígenas pintaram-lhe as mãos com tinta de Urucun, que nas suas culturas representa o sangue dos povos que podem ser derramado devido a esse projeto. Uma das lideranças indígenas fez a seguinte declaração ao deputado que preside a comissão: “eu vivo sofrendo, na idade que tenho, meus filhos, meus netos, todos sofrendo por causa dessa casa que desobedece às leis”.
Sobre a desobediência das leis, a representante Hosana Puruborá, liderança indígena de Rondônia, fazia referência aos artigos 231 e 232 da CF, ou seja, “quebra do pacto constituinte que reconheceu o caráter multiético e cultural do país e os direitos originários dos povos indígenas sob suas terras originais”.  O descumprimento da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) também será outro afrontamento proveniente desse projeto, caso seja aprovado. A convenção estabelece “que as comunidades tradicionais sejam consultadas seguindo rito legal quando houver projetos que adentram sobre os limites de suas propriedades. As informações deverão ser repassadas atendendo certas especificidades como o emprego do idioma dos grupos afetados”.    
  A região centro oeste e norte do Brasil, inquestionavelmente, são as que mais estão sendo afetadas pelas impiedosas proposições, MPs e PLs, protagonizadas por seguimentos políticos regionais e federais. Na realidade muitos dos projetos são reconhecidamente eleitoreiros, pois em nenhum momento seus autores abordaram seus impactos ambientais e sociais. O que gera perplexidade é que durante o regime militar milhares de indígenas foram mortos ou deportados de suas próprias terras para dar lugar a obras estruturais de integração brasileira como a transamazônica, jamais concluída. Não se estaria hoje, com esses projetos, repetindo o mesmo erro cometido pelos militares, abrindo precedente para novos massacres de comunidades indígenas inteiras, que só querem ter o direito como qualquer outro cidadão brasileiro, de posse de suas terras para tirar seu sustento e criar seus filhos?    
Atualmente os povos remanescentes Uaimiri Atroari, onde 90% foram mortos por conseqüência direta das forças armadas, vivem hoje o mesmo pesadelo. A comprovação de ter havido esse quase genocídio a tal grupo social específico, foi possível após a homologação da Comissão Nacional da Verdade, em novembro de 2011. Esse programa teve e tem como prerrogativa investigar a participação de membros do alto comando do exército em crime de tortura e morte durante a ditadura.
Entrevistas e pesquisas documentais resultaram num livro “os fuzis e as flechas, história de sangue e resistência indígena na ditadura, publicado em 2017 pelo jornalista Rubens Valente. O livro relata a participação do exército brasileiro em ações no norte do Brasil que levou ao quase extermínio de nações indígenas como do povo Uaimiris-Atroaris. Na época, seguindo o programa desenvolvimentista dos governos militares, a região amazônica era a fronteira a ser ocupada pelo “progresso”. No entanto, na rota do dito progresso estavam os povos indígenas, que como os Uaimiris, resistiram bravamente à invasão das máquinas e operários dos projetos como a construção da BR-174 (Manaus - Boa Vista)
Os militares não autorizaram o uso de armas, porém, seria quase inevitável que isso não ocorresse. Em 1970, quando deu início aos projetos como a abertura de estradas, obras de mineração e de hidrelétricas, como a de Balbina, inaugurada em 1987, havia cerca de 3 mil indígenas dessa etnia. Treze anos depois, em 1983, o número havia sido drasticamente reduzido para 350 pessoas. Quem pensou que fosse utilizado apenas armamento convencional para combater a resistência dos índios, enganou. O emprego de aviões para o lançamento de bombas, armas químicas e doenças, também teve vez nas operações dos militares, conforme descrito na obra de Rubens Valente.
Os projetos pretendendo reduzir ao máximo de direitos dos povos tradicionais podem levar no encolhimento dessa população. A destruição das florestas e a contaminação dos recursos hídricos tende a comprometer o suprimento de alimentos e água para essas populações. Não é só de alimentos e água que dependem os indígenas para manter-se vivo. Os rituais de adoração aos deuses, o culto aos antepassados, entre outras manifestações, somente são possíveis mantendo intactos suas florestas e rios. A supressão desses ecossistemas produz um profundo vazio existencial, cuja lacuna tende a ser preenchida com a ingestão de álcool. Alcoolismo, doenças oportunistas, fome, e outros males, são hoje responsáveis pela expressiva parcela de óbitos que atingem quase todas as comunidades indígenas, maior ainda naquelas sob forte pressão do agronegócio.
Prof. Jairo Cezar             



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