PROJETOS
DE LEI COMO O 490/07 DITAM A OFENSIVA DO AGRONEGÓCIO SOBRE TERRITÓRIOS
INDÍGENAS
Os
remanescentes indígenas que resistiram à hecatombe ocupacional de suas terras
há mais de quinhentos, estão vivendo agora o fantasma diário das investidas criminosas
do agronegócio sobre o pouco que ainda resta de suas posses, devastando
florestas inteiras, solo, água e todo o frágil ecossistema. Desde a sua
ocupação pelos portugueses até o começo da República, o Brasil se especializou
na atividade mercantilista do pau-brasil, cana de açúcar, café, algodão, etc, com
o emprego da mão de obra escrava indígena e africana. Mesmo com a ascensão da República,
a atividade industrial brasileira não se sobrepôs a supremacia do mercado das
commodities, atividades primárias (mineração, agropecuária, entre outras).
Nas
últimas décadas do século XX e todo o período do século XXI, os governos
passaram a canalizar esforços para a dinamização das commodities para a
exportação, na qual garantiria o superávit primário da economia. A monocultura da soja, cana de açúcar, suco
de laranja; a pecuária intensiva deu origem a um poderoso agrupamento social, envolvendo
fazendeiros, pecuaristas, empresários, que para fazer valer os seus interesses,
passaram a financiar a eleição de representantes do setor nas instâncias dos
poderes constituído.
No
entanto, é no congresso nacional estão alojados os seus principais porta vozes,
deputados federais, senadores e ministros, cujos votos em cada sessão ordinária
são suficientes para aprovar ou vetar projetos de interesse ou contra a
categoria. Não se exclui aqui o poder executivo, loteado por ministros de
bancadas partidárias com laços estreitos com o agronegócio, a exemplo do
ministro da Agricultura, considerado um dos maiores produtores de soja do
mundo.
Projetos
do tipo liberação do comércio de agrotóxicos, supressão de unidades de
conservação, fim de licenciamentos ambientais, reforma do código florestal,
flexibilização da lei sobre o trabalho escravo, entre tantos outros projetos,
foram e estão sendo pautas das votações nas comissões e no plenário da câmara e
do senado. As investidas do agronegócio não escapam nem mesmo os frágeis biomas
do Serrado e da Amazônia, com extensas áreas de florestas sendo suprimidas para
a criação de gado e o cultivo da suja, causadores de danos irreversíveis no solo,
rios e aquíferos devido ao emprego de agrotóxicos.
Entretanto,
na rota dos poderosos tratores e motosserras estão as valiosas terras habitadas
ou reivindicadas por dezenas de comunidades indígenas, muitas das quais não homologadas. A constituição de 1988 assegurou ao
seguimento indígena uma serie de direitos que estão sendo ameaçados pela
truculência dos ruralistas, dentre eles o risco do não reconhecimento e a não
demarcação de terras que comprovadamente foram habitadas pelos antepassados. Entretanto,
deputados vinculados à bancada ruralista buscam a todo custo a aprovação de PLs
restringindo tais direitos. O PL 490/2007, é um deles, com tentativa de suprimir
dispositivos importantes da Constituição Federal de 1988, como os artigos 231 (reconhecimento
das áreas indígenas e demarcá-las), e 232, (o direito de ingressar em juízo
para assegurar seus direitos e interesses).
O
PL. 490/07, segue a mesma linha de outras propostas insanas que não contemplam interesses
dos indígenas, como a PEC 215, ainda não votada, que tenta transferir para
legislativo federal a responsabilidade pela demarcação das terras que habitam
ou reivindicam. Tal proposta ridícula é o mesmo que colocar uma raposa para
cuidar do galinheiro. Quase a metade dos parlamentares representa ou são grandes
proprietários de latifúndios desejosos por expandir seus domínios sobre outras
áreas.
Além do PL 490, havia outros 10 projetos
similares sobre o mesmo tema, que foram apensados como o projeto de lei n. 6818/2013
que tenta por um fim no processo de demarcação de terras tradicionalmente
ocupadas pelos indígenas. É óbvio que todo esse confuso conjunto de regulações
tende a fragilizar ainda mais direitos assegurados como o descrito acima, como
também a autorização de obras de infraestrutura e o fim do direito de consulta
prévia dos indígenas sobre projetos. Há atualmente 42 projetos de infraestrutura
e 193 processos para mineração em terras indígenas isentos da exigência de
pareceres da FUNAI no quesito licenciamento ambiental. São projetos envolvendo
edificações de barragens para hidrelétricas, linhões de rede elétrica; rodovias
e ferrovias. Todas afetando áreas indígenas.
Além
das hidrelétricas concluídas como a de Belo Monte, que ocupou uma área
equivalente a duas São Paulo, que teve um custo orçado em 30 bilhões de reais e
cuja água invadiu 40 mil residências, há outras obras do seguimento elétrico
previstas como a do São Luiz do Tapajós, no Para, que terá impacto de dimensões
imensuráveis às populações tradicionais e aos ecossistemas, semelhantes às
faraônicas obras nos rios Xingu, Negro, etc.
O
receio dos indígenas acerca dos projetos de lei em tramitação no congresso é
justificável. Atualmente 223
propriedades indígenas no Brasil estão à espera por demarcação. Somente na
região sul do Brasil o número de propriedades para serem homologadas chega a
40. A apreensão dos inúmeros grupos étnicos se torna maior pelo fato de que 65
dessas propriedades espalhadas pelo território brasileiro já se encontram
invadidas por posseiros e fazendeiros, que instalaram seus equipamentos e
empreendimentos.
O
decreto n. 1.775 de 1996 estabelece regras e prazos limites para que o
ministério da justiça encaminhe os procedimentos de demarcação de terras, no
máximo 30 dias para conclusão dos pareceres. O descaso com o decreto beira ao
absurdo. Tem processos de demarcação correndo na justiça há 33 anos. Havendo
fato consumado dos projetos como o PL 490 e outros tantos aglutinados, adeus as
demarcações. O que pode acontecer nas propriedades há anos esperando pela
oficialização da posse, é o governo querer alegar inconsistência da área para a
subsistência das comunidades, decorrente da depreciação do solo, da água, das
florestas, resultado de anos de ocupação ilegal.
Com
o substitutivo do PL 6818/2013, os municípios, estados, organizações sindicais
e fazendeiros terão direito de participar das consultas sobre projetos de
exploração mineral e obras estruturantes em áreas indígenas, com direito de voz
e voto. Se aprovada a mal intencionada matéria na comissão de constituição e
justiça, há grandes possibilidades de que a mesma irá direto para o senado, sem
ter que seguir o rito costumeiro na câmara. Outro item que também está gerando preocupação
às populações indígenas que há anos esperam pela demarcação de suas terras é a
tese do MARCO TEMPORAL, que também consta no substitutivo. O MARCO TEMPORAL
trata do direito à posse física da terra, apenas àqueles GRUPOS INDÍGENAS que comprovarem
estarem ocupando-a até o dia 05 de outubro de 1988, data da aprovação da
Constituição Federal.
Não
há dúvida que esse dispositivo tem um explícito caráter de perversidade contra os
povos tradicionais, a exemplo dos GUARANIS KAYWAS, do Mato Grosso do Sul, que
esperam há anos do governo federal a devolução de suas terras invadidas por
fazendeiros. Num momento como o que estamos vivendo, onde quase todas as mídias
de massa no Brasil têm o foco voltado ao mundial da FIFA na Rússia, poucos
brasileiros se atreverão a sair da frente das TVs e lançar manifestos de apoio a
dezenas de indígenas que vários estados que estão mobilizados em Brasília acompanhando
as tramitações dos projetos na câmara e senado.
Um
grupo de indígenas de Rondônia entregou documento ao presidente da CCJC
(Comissão de Constituição Justiça da Câmara) contendo pareceres das várias
comunidades afetadas solicitando para que o projeto de lei 490 seja arquivado. No instante que entregaram o manifesto ao presidente
da comissão, as representantes indígenas
pintaram-lhe as mãos com tinta de Urucun, que nas suas culturas representa o
sangue dos povos que podem ser derramado devido a esse projeto. Uma das
lideranças indígenas fez a seguinte declaração ao deputado que preside a
comissão: “eu vivo sofrendo, na idade
que tenho, meus filhos, meus netos, todos sofrendo por causa dessa casa que
desobedece às leis”.
Sobre
a desobediência das leis, a representante Hosana Puruborá, liderança indígena
de Rondônia, fazia referência aos artigos 231 e 232 da CF, ou seja, “quebra do pacto constituinte que
reconheceu o caráter multiético e cultural do país e os direitos originários
dos povos indígenas sob suas terras originais”. O descumprimento da convenção 169 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho) também será outro afrontamento
proveniente desse projeto, caso seja aprovado. A convenção estabelece “que as comunidades tradicionais sejam
consultadas seguindo rito legal quando houver projetos que adentram sobre os
limites de suas propriedades. As informações deverão ser repassadas atendendo
certas especificidades como o emprego do idioma dos grupos afetados”.
A
região centro oeste e norte do Brasil, inquestionavelmente, são as que mais estão
sendo afetadas pelas impiedosas proposições, MPs e PLs, protagonizadas por
seguimentos políticos regionais e federais. Na realidade muitos dos projetos são
reconhecidamente eleitoreiros, pois em nenhum momento seus autores abordaram
seus impactos ambientais e sociais. O que gera perplexidade é que durante o
regime militar milhares de indígenas foram mortos ou deportados de suas
próprias terras para dar lugar a obras estruturais de integração brasileira
como a transamazônica, jamais concluída. Não se estaria hoje, com esses
projetos, repetindo o mesmo erro cometido pelos militares, abrindo precedente
para novos massacres de comunidades indígenas inteiras, que só querem ter o
direito como qualquer outro cidadão brasileiro, de posse de suas terras para
tirar seu sustento e criar seus filhos?
Atualmente
os povos remanescentes Uaimiri Atroari, onde 90% foram mortos por conseqüência
direta das forças armadas, vivem hoje o mesmo pesadelo. A comprovação de ter
havido esse quase genocídio a tal grupo social específico, foi possível após a
homologação da Comissão Nacional da Verdade, em novembro de 2011. Esse programa
teve e tem como prerrogativa investigar a participação de membros do alto
comando do exército em crime de tortura e morte durante a ditadura.
Entrevistas
e pesquisas documentais resultaram num livro “os fuzis e as flechas, história de sangue e resistência indígena na
ditadura, publicado em 2017 pelo jornalista Rubens Valente. O livro relata
a participação do exército brasileiro em ações no norte do Brasil que levou ao
quase extermínio de nações indígenas como do povo Uaimiris-Atroaris. Na época,
seguindo o programa desenvolvimentista dos governos militares, a região
amazônica era a fronteira a ser ocupada pelo “progresso”. No entanto, na rota
do dito progresso estavam os povos indígenas, que como os Uaimiris, resistiram
bravamente à invasão das máquinas e operários dos projetos como a construção da
BR-174 (Manaus - Boa Vista)
Os
militares não autorizaram o uso de armas, porém, seria quase inevitável que
isso não ocorresse. Em 1970, quando deu início aos projetos como a abertura de
estradas, obras de mineração e de hidrelétricas, como a de Balbina, inaugurada
em 1987, havia cerca de 3 mil indígenas dessa etnia. Treze anos depois, em
1983, o número havia sido drasticamente reduzido para 350 pessoas. Quem pensou
que fosse utilizado apenas armamento convencional para combater a resistência
dos índios, enganou. O emprego de aviões para o lançamento de bombas, armas
químicas e doenças, também teve vez nas operações dos militares, conforme
descrito na obra de Rubens Valente.
Os
projetos pretendendo reduzir ao máximo de direitos dos povos tradicionais podem
levar no encolhimento dessa população. A destruição das florestas e a
contaminação dos recursos hídricos tende a comprometer o suprimento de
alimentos e água para essas populações. Não é só de alimentos e água que
dependem os indígenas para manter-se vivo. Os rituais de adoração aos deuses, o
culto aos antepassados, entre outras manifestações, somente são possíveis mantendo
intactos suas florestas e rios. A supressão desses ecossistemas produz um
profundo vazio existencial, cuja lacuna tende a ser preenchida com a ingestão
de álcool. Alcoolismo, doenças oportunistas, fome, e outros males, são hoje
responsáveis pela expressiva parcela de óbitos que atingem quase todas as
comunidades indígenas, maior ainda naquelas sob forte pressão do agronegócio.
Prof.
Jairo Cezar
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