FRAGMENTOS
DE QUATRO DÉCADAS DE VIDA PROFISSIONAL DE UM PROFESSOR HISTORIADOR
Durante minha carreira de docente, nas
escolas onde lecionei, sempre, de uma forma ou de outra, buscava trazer e
aplicar aos estudantes o gosto pela investigação científica. Isso acontecia
geralmente com saídas de campo e atividades pedagógicas ao ar livre. Na época,
as dificuldades de inserir essa dinâmica metodológica nos currículos das escolas
eram enormes. Habitualmente um dos principais obstáculos enfrentados quando o
assunto era pesquisa ou saída de campo, era o financeiro, pois tais ações
requeriam aporte de recursos, algo que nenhuma das escolas públicas das quais
trabalhei dispunham.
Isso jamais foi um obstáculo intransponível
para a execução dos meus objetivos. Um dos caminhos possíveis à execução de
tais atividades eram as famosas vaquinhas. O custo da viagem era dividido e
cada um contribuía com uma pequena soma. Muitas vezes, por serem muitos dos
estudantes dessas escolas excessivamente necessitados, o montante dos custos da
excursão era por mim coberto.
Foram dezenas de atividades desse gênero
cujos resultados eram perceptíveis tanto nas atitudes quanto nos resultados das
atividades pedagógicas. O sucesso do bom desempenho pedagógico deve-se
considerar que não depende somente a tais metodologias inovadoras, a postura
dos gestores e do segmento técnico pedagógico conta muito nos resultados. Sensibilização e trabalho focado na
investigação desses profissionais são também determinantes no sucesso. Mas não
era essa a realidade de muitas escolas da época.
O apadrinhamento político e a vinculação
política partidária eram regras na escolha de quem iria gerenciar as escolas.
Às vezes, por sorte, uma determinada escola recebia um gestor com perfis acima
citados. Vencer os obstáculos da postura autoritária e arrogante de certos gestores
foi também decisivo para levar em frente o gosto pela ciência. A participação
ativa em eventos como congressos, seminários e a incessante necessidade de
querer aprender mais e mais me impulsionaram a galgar outros desafios e
horizontes. A experiência de ter trabalhado como professor em uma universidade
aos vinte e cinco anos de idade foi importante.
Atuar nas áreas ambientais, sindicais e
políticas, enriqueceu ainda mais meu currículo e meu desejo por novos desafios
tanto profissional quanto na vida pessoal. A conclusão do mestrado em 2004, na
UDESC, teve papel importante para redimensionar minha trajetória profissional,
pois faltavam poucos anos para minha aposentadoria. Trabalhar na UNIBAVE
(Universidade Barriga Verde) no município de Orleans, por cerca de dez anos e
lecionar para estudantes em vários cursos, em especial pedagogia, foi, sem
dúvida, um dos grandes desafios que enfrentei.
Emoções, decepções, desilusões, estafas,
talvez tudo isso somando se traduziram em num dos maiores recuos profissionais
e pessoais em minha vida. Uma forte crise depressiva tentou me nocautear e
apagar todos os meus sonhos. Nada disso, um ou dois anos de tratamento e
insistentes terapias restabeleceram meu ânimo, permitindo que eu retornasse a
labuta diária, de continuar sonhando e acreditando que era possível transformar
a educação e a sociedade. A despeito de não ter exercendo diretamente a função
de professor em sala de aula, passei a me dedicar à função que sempre me deixou
muito a vontade, a coordenação de trabalhos e projetos com professores e
estudantes.
Os quase cinco anos que atuei na Escola de
Ensino Fundamental Padre Antônio Luiz Dias, no bairro Morro dos Conventos, Araranguá,
foram cruciais para redimensionar minha visão no campo da pesquisa. É quase
impossível mensurar aqui a diversidade de trabalhos que tive participação
direta e indireta nessa escola. Porém, cabe destacar dois que para mim foram
categóricos para elevar ainda mais a certeza de que é possível sim acreditar na
escola pública, na autonomia e capacidade criativa de estudantes que conseguem mesmo
com poucos recursos transformar suas vidas e dos demais.
A participação que jamais me esquecerei de
uma professora de língua portuguesa marcará para sempre aquela escola. Sua
habilidade criativa e capacidade de síntese revolucionaram as vidas de um grupo
de estudantes. Por apresentar a população do bairro forte traços das etnias
açorianas e lusas brasileira, com uma simples máquina fotográfica e
criatividade de sobra, a professora e o grupo de estudantes do sétimo e oitavo
anos produziram um rico documentário, de cerca de dez minutos, narrando um
pouco da geografia, história, lendas e demais tradições daquela comunidade.
Na época, um dos fatores importantes na
concretização desse ousado trabalho foi a existência de um laboratório de
informática em bom estado de uso e a habilidade da professora em manipular tais
ferramentas. Infelizmente a professora, dois anos depois, abandonou a carreira
de docente, decepcionada, por enfrentar resistência e falta da estrutura
técnica e pedagógica nas escolas que trabalhou. O meu retorno à escola do
bairro onde nasci e iniciei minha carreira no Estado trouxe à memória o passado
de alegrias, frustrações, decepções e o esforço quase subumano de poder
equilibrar o trabalho com minha vida pessoal.
Foi
ali que a paixão pela pesquisa brotou quando, no começo da década de 1990, num
belo dia, estudantes chegaram a minha casa carregando um artefato estranho.
Notei que era uma espécie de urna funerária guarani, isso mesmo, um objeto pré-histórico
importante encontrado no bairro que mostrou ter sido ali o local habitado por
grupos indígenas, dentre eles os guaranis. Rapidamente me apoderei do artefato
e o transportei à UNESC, pois naquele momento eu exercia a função de professor
de prática de ensino em estudos sociais, no curso de história, cujo coordenador
da área, Edi Balod, possuía formação em antropologia, tendo o mesmo montado um
pequeno museu em sua sala.
A entrega daquele artefato a UNESC ocorreu
pelo fato de o município de Araranguá não possuir ainda um museu. Mais de vinte
anos depois de ter trabalhado na EEF Padre Antônio Luiz Dias, lá retornei, com
intuito agora de levar a frente algo inacabado, o levantamento arqueológico,
histórico e cultural do bairro. Nesse mesmo período que lá cheguei o município
de Araranguá finalmente estava inaugurando seu museu.
Em 2010, tive a felicidade de coordenar um
projeto ousado e cuja realização se deveu ao empenho dos colegas professores
também instigados pelo gosto da pesquisa. Jamais esquecerei o apoio
incondicional do qual tive da coordenadora pedagógica Viviane Vieira, de uma
professora das séries iniciais na qual não lembro o seu nome e do professor
hoje doutor em história, Luciovânio Moraes.
É claro que os demais integrantes daquela
unidade de ensino foram decisivos no sucesso do empreendimento. Durante semanas a escola ficou envolvida na
construção desse projeto cuja temática escolhida foi a reconstrução da memória
cultural do bairro. Quando se tratava da memória do bairro, a ideia era
extrapolar o tempo histórico, estendendo antes da presença lusa brasileira a
partir do século XV.
O desafio era adentrar em períodos mais
longínquos, mil, dois mil e quem sabe ainda mais remotos ainda. Durante um dia
inteiro estudantes, professores e membros da comunidade tiveram envolvidos numa
série de atividades focada na cultura local. Sem desmerecer outras ações
importantes nesse dia, o que realmente marcou e transformou a vida dos
estudantes certamente foi a oficina cerâmica guarani.
Proposta foi fazer os estudantes
experimentarem algo que para eles era inédito, porém, para os povos guaranis
fazia parte de sua rotina diária, a confecção de artefatos, panelas, urnas,
entre outros objetos feitos de barro. O processo da oficina seguiu todas as
etapas, desde a extração da argila, preparação, confecção, secagem e a queima.
Entretanto a conclusão que chegamos era de que a habilidade manual das mulheres
guaranis mostrava-se superior a nossa, onde muitos artefatos depois de secos
não resistiram o calor no momento da queima, formando fissuras. Todavia o
resultado final serviu para que refletíssemos sobre o enorme conhecimento
acumulado por essas culturas hoje extintas na região. Temos muito que aprender
ainda com esses pequenos grupos que tentam subsistir diante de excessiva
pressão do capital.
Naquele momento o grupo foi convidado a expor
o trabalho no centro cultural, local que hoje abriga o museu de Araranguá.
Dezenas, centenas de pessoas transitaram por aquele recinto para prestigiar um
pouco da história e cultura de uma região rica paisagisticamente e
culturalmente, porém pouco valorizada. Toda essa dedicação contribuiu para que
o projeto memória do bairro fosse escolhido nas duas etapas regionais da feira
interdisciplinar. A maior alegria e orgulho do grupo foi que souberam que o
projeto havia sido selecionado à etapa estadual, onde também foi premiado.
Em 2013, recebemos a visita de um professor e
estudantes da UFSC, Campus Araranguá, que estavam interessados em desenvolver
um documentário narrando a prática do boi de mão na escola. De imediato
aceitamos o desafio, fato que resultou em um rico trabalho cultural que
certamente deve ter orgulhado e elevado a autoestima dos membros daquela escola
e da comunidade.[1]
Minha
etapa naquela escola, portanto, findou-se em 2015, quando retornei à EEBA onde
havia me efetivado há cerca de vinte anos. Atuando na biblioteca, da qual serviu como um
QG, ali comecei a articular estratégias com alguns professores para levar
adiante o projeto iniciado na escola do bairro Morro dos Conventos. Os desafios, porém, tornaram se bem maiores
que o esperado, pelo fato do tamanho da escola e do modelo de ensino ainda
apostilêstico, mediando pelos resultados quantitativos. Mas nada disso impediu
que eu continuasse acreditando e insistindo, até que em 2016, finalmente, um
projeto teve início, focado nas questões ambientais da escola.
No primeiro ano o desafio foi assentar os
tijolos de uma construção que seria longa, porém, duradoura, impossível de ser
desmanchada ao longo do tempo. Construir uma cultura pedagógica na escola
embasada na investigação científica seria, com certeza, um dos principais
desafios que eu teria de enfrentar a partir daquele instante. No segundo ano de
trabalho, o apoio tido da competente professora de geografia, Maria de Fátima
Maccarini, foi imprescindível à continuidade do projeto. Contenção de desperdícios de energia elétrica
e água na EEBA foi a proposta que norteou nosso trabalho.
Conseguimos,
com todas as dificuldades enfrentadas no percurso, chegar em 2018 com o projeto
cheio de resistência. Foram cerca de três anos para conquistar o apoio e a
credibilidade de um grupo de estudantes que passaram a atuar nas atividades
programadas. Finalizou o ano de 2018, o ano letivo de 2019 despontou tendo
pouca certeza da continuidade ou não do projeto. Primeiro motivo foi a saída da
minha co-coordenadora por motivo de aposentadoria. Esse episódio elevou a
preocupação com o futuro da proposta, pois no mês de setembro de 2019, também
estaria me aposentando, depois de 37 anos de atividade docente.
O tempo corria incessante e era necessário
convencer algum colega da escola a abraçar o projeto. Seria uma luta quase em
vão pelo fato de que todos estavam sobrecarregados com tarefas corriqueiras em
suas inúmeras turmas. Quase que diariamente, na biblioteca da EEBA, recebia a
visita de um professor da área de educação física, onde transpirava um desejo
incessante pela pesquisa. Nos poucos ou longos momentos que passávamos juntos
conversando, muitas ideias e estratégias foram pensadas na tentativa de mudar a
forma de ensinar e aprender na escola.
Seu desejo era entrar no mestrado, porém
faltava encontrar um tema específico. No entanto sua mente não relaxava, borbulhava
insatisfação e ao mesmo tempo desejo de transformar o quadro quase estático da
escola e da sociedade. Ele sabia que a investigação científica seria o caminho
necessário para assegurar o futuro da EEBA e das demais escolas públicas, ao
contrário ambas seriam engolidas pelo capital. Nessa mesma ocasião, duas
professoras e três estudantes estiveram na biblioteca apresentando uma proposta
de pesquisa, cuja temática estava vinculada ao projeto sustentabilidade.
Aos poucos ia percebendo que os quase quatro
anos de existência do projeto sustentabilidade, quando já acreditava no seu fim
súbito, me apareceu essas pessoas reacendendo as esperanças de que nada estava
perdido. Já fora da escola, não deixei de acompanhar o cotidiano do grupo de
pesquisa que escolheu como tema investigativo o Diagnóstico do Consumo de Água das Escolas Estaduais do Município de
Araranguá. A capacidade de articulação e síntese das duas professoras
coordenadoras do projeto me impressionava a cada reunião que estive presente.
Isso proporcionava segurança e ânimo aos
orientandos que passaram a abraçar a idéia de forma assustadora. Já que a
proposta da pesquisa era a participação na feira interdisciplinar da EEBA,
ambos foram convidados para expor a pesquisa em um evento internacional, o EXPOMATRIX,
que ocorreu numa escola particular do município. De dezenas de trabalhos
avaliados, o grupo da EEBA obteve a medalha de prata, sendo indicado a
participar de outro evento de maior envergadura que o EXPOMATRIX, o MOSTRATEC,
que ocorrerá em outubro em Novo Hamburgo, RS.
Lá serão expostos cerca de 700 trabalhos
entre cerca de vinte países participantes. Antes desse evento, o grupo teria
outro desafio, a feira interdisciplinar escolar e a regional, essa última
programada para o dia 27 de outubro de 2019, na escola Dolvina Leite de
Medeiros. Na feira interdisciplinar que ocorreu na EEBA, fiquei extremamente
feliz quando me deparei com o professor de educação física, o mesmo dos
incontáveis encontros na Biblioteca, coordenando a exposição de um trabalho que
estava sendo apresentado por dois estudantes.
O professor não teve noção o tamanho da minha
satisfação de estar num ambiente onde dois ricos trabalhos, que de uma forma ou
de outra tive alguma participação. Aquilo realmente foi emocionante. Agora o
passo seguinte era a feira regional. Apenas esses dois trabalhos da EEBA haviam
sido inscritos para o evento. Ambos
estavam contados para ficar entre os primeiros entre os participantes. Quando
veio o resultado que a pesquisa coordenada pelo professor Rafael da EEBA havia
obtido o primeiro lugar, me senti lisonjeado como devem ter sentido os demais
integrantes do grupo e o professor.
É claro que no semblante dos estudantes e da
professora do outro projeto representando a EEBA, havia certo ar de decepção.
Quando me aproximei para parabenizá-los pelo empenho, a professora me relatou
que a participação do grupo no evento de Novo Hamburgo estava descartado. A resposta
foi a falta de aporte financeiro para custear a inscrição e os estudantes nos
dias que ficariam na cidade gaúcha.
Naquele momento, me senti um tanto frustrado, pois a desistência poria
em Xeque toda a expectativa do grupo em permanecer na pesquisa.
Há poucos dias outra professora coordenadora
do grupo havia me dito que somente cinco escolas catarinenses haviam sido
selecionadas para o encontro em Novo Hamburgo. Tendo Araranguá, duas indicações,
uma pública, a EEBA, e outra particular. É claro que a escola particular jamais
deixará de estar num evento dessa magnitude, pois a pesquisa faz parte da sua
filosofia.
Aí senti o motivo pelo qual o abissal atraso
da educação brasileira em comparação a de outros países que prezam a pesquisa. Era
função do Estado de Santa Catarina disponibilizar recursos para iniciativas
desse tipo, fazendo jus o que determina os planos nacionais e estaduais de educação
que estão focados no estímulo a investigação científica como forma de
transformação social.
A indicação do projeto “Paradesporto: Estudo
de Caso na EEBA de Araranguá, vencedor na feira interdisciplinar regional,
pode, quem sabe, ajudar a revolucionar o modo de pensar educação naquela
instituição. Cada vez mais fica explícito que a pesquisa deve fazer parte do
cotidiano das escolas públicas do Estado. Mas para isso é preciso repensar e
reestrutura o modelo de escola e ensino ainda praticado.
Prof. Jairo Cezar
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