Heróis
forjados e heróis construídos na luta e na resistência, sem homenagens, sem
estátuas
Missionária e ambientalista Dorothy Mae Steng assassinada em fevereiro de 2005, Pará
Desde
os tempos mais remotos, quando os acontecimentos importantes passaram a ser
registrados ou documentados, geralmente as informações ou verdades divulgadas apresentavam
apenas uma versão, a dos vencedores, enquanto as verdades dos vencidos foram
apagadas e esquecidas. Essas ditas verdades históricas são sucessivamente transmitidas
e retransmitidas aos estudantes por educadores, muitos dos quais se eximindo de
qualquer reflexão aquilo que é transmitido alegando desconhecer outras versões.
Nas sociedades
ocidentais capitalistas a construção da memória histórica se tornou
imprescindível para a consolidação da unidade de um povo ou nação. Porém essa unidade
não se deu de forma pacífica e espontânea como relatam algumas fontes, mas por
meio da brutalidade, especialmente no Brasil quando os portugueses
desembarcaram e encontraram os índios. Embora
com armamentos menos sofisticados do que os invasores, os índios resistiram bravamente
à ocupação. No entanto não conseguiram resistir às doenças e a doutrinação
crista, abrindo caminho para o português dominar todo território que hoje
chamamos de Brasil.
Quando
os espanhóis chegaram ao continente americano e encontraram civilizações
avançadas culturalmente como os Incas e os Maias, a primeira ação tomada foi
profanar ou destruir templos, monumentos e demais símbolos sagrados. A perda de
referência é o primeiro passa para o domínio de uma cultura sobre a outra. Os
jesuítas fizeram com muita propriedade quando chegaram ao Brasil munidos de uma
cruz e impondo seu deus às culturas locais. A institucionalização do
catolicismo como religião oficial combinada com a construção de igrejas
imponentes com seus inúmeros santos se transformou na principal marca de
dominação européia cristã nas colônias portuguesas e espanholas.
Uma
sociedade se constitui unitária, integrada, coesa, a partir de suas referências
simbólicas, que são construídas coletivamente. O espanhol e o português bem sabiam
que destruindo templos e imagens dos deuses incas, maias, tupis, guaranis,
entre outros, seria meio caminho para consolidar a dominação. Os mesmos
sujeitos que participaram da “limpeza” étnica da America tiveram seus nomes e
imagens eternizados em livros e em praças públicas mediante a construção de
estátuas e que passaram a ser reverenciadas de geração a geração. Porém, tal
reverência a um determinado personagem não ocorre de forma espontânea, ele é
meticulosamente arquitetado e divulgado como única verdade inquestionável. São os livros didáticos que assumem esse papel
de persuasão simbólica. Por isso, ao Estado sempre coube a tarefa de preparar e
distribuir gratuitamente todo material didático às escolas públicos do nível fundamental
e médio.
A o
ensino da história tanto pode contribuir para promover transformações ou
rupturas profundas de uma sociedade como também instrumento de alienação e
dominação política. E a dominação se dá quando apenas uma verdade é
apresentada, omitindo outras versões acerca dos fatos ou personagens
envolvidos. Simplificar a narrativa impede a compreensão da história como
construção dinâmica e complexa. Esse papel é bem utilizado pela mídia quando seleciona
imagens e informações a serem transmitidas ao público. Nada ocorre de forma
aleatória. Quem escolhe já sabe o tipo de reação e comportamento que terá o público.
Quando uma via pública, rodovia, ou
praça são contempladas com placas ou estátuas homenageando personalidades de
relevância social, esse é uma estratégia eficaz adotada por poder público para
a consolidação de uma memória coletiva. As
datas comemorativas, os feriados assumem a função de garantia da memória e a
projeção do tipo de sociedade que se pretende para o futuro.
As
principais referências ou mitos da nossa história que estão materializadas no
imaginário coletivo foram forjados pelas elites políticas, cuja versão oficial
não corresponde com o que realmente ocorreu na época. A figura de Tiradentes é
um exemplo de personalidade forjada. Embora tenha sido uma das referências do
processo que resultou na independência do Brasil, somente quase cinco séculos
depois de sua morte, que sua imagem foi resgatada pela elite econômica
brasileira querendo transformá-lo no principal símbolo da República.
Tudo
foi criteriosamente preparado. Há inexistência de qualquer imagem de Tiradentes
quando vivo, levou necessidade de contratação do artista plástico Pedro Américo
para representá-lo numa tela. Se observar os detalhes físicos do personagem
retratado, é possível perceber que seu rosto muito se assemelha a Jesus Cristo.
Por que essa semelhança? Seria mera coincidência ou algo pensado propositalmente.
Outra imagem conhecida dos brasileiros através dos livros didáticos ou dos
museus é o quadro que retrata a Independência do Brasil. Nada do que está representado
no quadro ocorreu daquela maneira. O rio Ipiranga onde aconteceu o ato não
passava de um pequeno córrego, hoje completamente poluído por esgoto.
A
própria comitiva de D. Pedro I foi pega de surpresa com a notícia de que a
coroa portuguesa exigia a volta a volta do príncipe para Portugal. Diante da
situação apresentada pouca noção tinha do que representaria sua decisão em
ficar no Brasil e decretar a independência. Diante disso domou a seguinte
decisão, se “colar colou”, se desse resultado, tudo bem. Não era conveniente
pintar uma personalidade e seus soldados que ficariam na memória coletiva trajando
roupas simples e montados em pangarés. Tudo deveria ser minuciosamente
preparado para dar uma idéia de imponência como deveria ser o ato. Portanto,
coube ao pintor representá-los vestidos de trajes de gala e montados em
possantes cavalos. Deixa explícito também na imagem representada pelo artista
que o mesmo teve inspiração nas guerras nacionalistas ocorridas na Europa do
século XIX.
Após
a decretação da independência inúmeras rebeliões se sucederam pelo interior do
Brasil, algumas delas de caráter popular e articulado por escravos e outras personalidades
que lutaram contra a opressão dos proprietários de terras e do próprio governo.
Se fossem entrevistar estudantes e pessoas simples se ambos têm lembranças de
revoltas ocorridas no Brasil no período imperial e os motivos da sua
ocorrência, com muita dificuldade a lembrança será apenas dos nomes de algumas
delas como a Farroupilha, sabinada, confederação do equador, balaiada, etc.
Agora, ter conhecimento que a Revolta da Balaiada foi considerada uma das mais
populares ocorridas nas províncias do Piauí e Maranhão, cujo líder foi o mulato
Manuel Balaio, que junto com mais três, tomaram a cidade Caxias com oito mil
homens aramados e estabeleceram amplo domínio sobre a região. Isso pouca gente
sabe. Que Duque de Caxias mais uma vez foi responsável pela pacificação da região,
massacrando os revoltosos e construindo a oficial de que Manuel Balaio era uma
pessoa má, desordeira, violenta e vingativa.
O que muitos desconhecem é que descendentes de escravos e camponeses
nordestinos consideram Manuel Balaio como uma figura importante de resistência
contra a opressão. Mas, como outros esquecidos pela história, não teve direito
a uma estátua em praça pública.
Guerra da Balaiada - províncias do Piauí e Maranhão
Tanto
Lampião como Maria Bonita também foram duas personalidades significativas para
história dos vencidos como referências de resistência do povo nordestino a
perversidade dos proprietários e governos. No entanto, não há relatos de
cidades que construíram monumentos para homenageá-lo (La). Porém, acredita-se
que muitas residências em todo Brasil, em alguma parte da casa, prateleira ou
estante, tenham uma pequena estatua de barro retratando a imagem de Lampião.
Sua memória, portanto, continua muito vivia como de outras lideranças importantes
na resistência do povo pobre do interior, como João Maria, na guerra do Contestado/SC,
Antônio Conselheiro/BA, guerra do canudos, entre tantas outras batalhas pouco
conhecidas e cujas lideranças não foram agraciadas com estatuas e nem com
placas de ruas.
Guerra do Contestado - Santa Catarina
E o
que dizer da estatua existente em um dos pontos de maior circulação da capital
catarinense, homenageando uma das figuras mais sanguinárias que aterrorizou a
população e autorizou o fuzilamento de centenas de pessoas pelo simples fato de
se oporem ao seu governo. O que é estarrecedor é a homenagem concedida a essa
figura, dando o nome à cidade de Florianópolis, cidade de Floriano Peixoto, no
lugar de Desterro. O que impede a população de se mobilizar e exigir a retirada
dessa estátua que tanto mal traz à memória dos catarinenses?
Qualquer personagem que queira se transformar
em herói precisa ser reconhecido e deve estar incutido no imaginário coletivo.
Entram em ação, portanto, os construtores da memória que cobrirão de verniz
dourada a vida desses personagens. Desconfiar das estatuas instaladas nos espaços
públicos das vilas, cidades, como Anhanguera, José de Anchieta, Duque de
Caxias, Getúlio Vargas, entre outros é o primeiro caminho para pensar um novo
Brasil, e remover figuras esquecidas que não foram homenageados por lutarem contra
a opressão. José de Anchieta foi uma dessas personalidades
conhecidas pela sua participação no processo de evangelização e pacificação do
índio e que facilitou a dominação portuguesa. Outro fato emblemático relacionado
a esse religioso foi sua colaboração com os portugueses na expulsão dos
franceses e conseqüente dizimação dos tupinambás. A pena de morte decretada aos
tupinambás foi pela razão de apoiarem os soldados franceses.
Estátua de Floriano Peixoto - Florianópolis/SC
Duque
de Caxias é outro personagem que ocupa páginas e páginas dos livros didáticos
de história e reverenciado por sua participação em “guerras pacificadoras”
tanto dentro do Brasil como fora. O que não é ressaltado é o seu lado
sanguinário de figura perversa cujas batalhas das quais liderou depois de
render e aprisionar o inimigo, os assassinava. A guerra do Paraguai é um
exemplo ilustrativo dessa perversidade, na qual foi relatado pelo capitão
Benjamim Constante quando esteve junto com Caxias no Front. O Conde D’eu,
casado com princesa Isabel e que substitui Caxias na guerra do Paraguai não
ficou atrás em termos de atos de barbárie. Relatou Benjamin, e o próprio Júlio Jose
Chiovenato na sua obra Genocídio Americano confirmou, que o Conde D’eu com sua
espada promoveu uma verdadeira chacina em terra Paraguaia, decapitando
crianças, mulheres, idosos, incendiando hospitais, entre outros. Por sua
bravura Benjamim Constante foi agraciado com uma estátua, porem a mesma foi
removida em 1949. E por que razão? Sabe-se que Benjamin Constante sempre
defendeu a idéia de soldado cidadão, ou seja, que o mesmo tenha autonomia de se
eximir a acatar ordens quando perceber que a mesma resulta e ato de
barbaridade.
Duque de Caxias
Estátua do Conde d'Eu - Orleans/SC
Se
hoje perguntarmos para as pessoas mais antigas que conheceram Getúlio Vargas ou
as mais novas sobre sua pessoa, as respostas, com poucas exceções, serão
unânimes em afirmar que o mesmo foi um estadista que promoveu a modernização do
país e beneficiou milhões de trabalhadores. Poucas serão as referências sobra
sua postura populista, de manipulador das rádios e jornais, de oposição aos
movimentos populares, de ditador e apoiador do regime nazi-fascista europeu.
Não, isso pouco se fala. Poucas são as figuras políticas como Vargas que
receberam tantas homenagens. São raras as cidades brasileiras que não tenham
uma rua, uma escola ou estátua o reverenciando. Há pouco tempo uma
personalidade importante da política brasileira adotou o mesmo gesto de Vargas,
sujando as mãos com petróleo, para simbolizar o controle brasileiro sobre as
reservas de petróleo. Porém, quando esse estadista for agraciado com alguma
estátua ou nome de rua, as pessoas somente saberão um lado da história, pois
serão omitidas outras verdades como a transformação da Petrobrás em cabide de
emprego e o controle da prospecção de petróleo as companhias multinacionais.
Busto de Getúlio Vargas
Durante
décadas vem se construindo no imaginário social brasileiro a idéia de sociedade
do futuro, de que deus é brasileiro, de terra abençoada, etc. São discursos
construídos por uma elite conservadora com o propósito de perpetuar o status
quo de dominação política. Trabalha-se insistentemente a ideologia de que se
hoje a país apresenta uma condição de subdesenvolvimento, de dependência
econômica, com esforços individuais nos tornaremos uma nação rica e poderosa.
Pois já conquistamos o título da sexta economia do planeta onde mais da metade
das residências não tem saneamento básico. Incutir no imaginário tais
inverdades incapacita os cidadãos (ãs)
de compreenderem a dominação da elite capitalista que se alimenta das
contradições produzidas por elas mesmas.
O
Brasil já nasceu capitalista a partir do instante que desembarcaram nas terras
alem mar os invasores portugueses sedentos por riquezas. Diferente do que
ocorreu nos Estados Unidos quando os ingleses desembarcaram para construir uma
nova pátria, aqui a intenção era ocupar e espoliar tudo que desse lucro e
transferir para metrópole portuguesa. O processo brasileiro foi tão perverso
que a universalização do ensino fundamental somente ocorreu na década de 1990.
Já o caso americano foi bem antes, um século atrás. O que foi vergonhoso foram
os atos promovidos pela classe política visando comemorar tal “conquista”. Nos
quinhentos anos de ocupação portuguesa o número de não índios residentes no
Brasil pulou de doze mil para cento e noventa milhões, enquanto os índios pularam
de cinco milhões para quinhentos mil. A cada um século um milhão de índios foi
morto. Se o processo de ocupação das terras indígenas continuarem ocorrendo por
barragens, garimpeiros, grileiros, etc., não serão necessários mais cinco
séculos para concluir com seu extermínio, serão bem menos.
Na semana do Dia do Índio, centenas de
indígenas ocuparam Brasília. Não para celebrar, mas para se defender do ataque
a seus direitos. (©Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados)
Algumas
mentiras que ainda hoje relutam em permanecer nos livros didáticos e
apresentadas como verdades por profissionais desatentos são em relação à
substituição do trabalho indígena pelo escravo africano. Relatos equivocados como
pouca resistência ao trabalho forçado, preguiça, são adjetivos ainda presentes
nessas obras. O que deve ser mencionado é o papel da elite comercial da época
que descobriu no comércio de escravos da África uma fonte rentável de ganhar
dinheiro. Sendo assim, nada melhor do que construir uma imagem de indolência do
índio que não produz, do trabalho manual como atividade reservada aos não
escolarizados. Nada pior do que aos domingos na hora do fantástico ter que
ouvir a música de abertura dando mostras de que a segunda feira está próxima,
dia de sofrimento. Afinal quem molda a cultura brasileira? São os
livros ou um caixa de mentira que ocupa 98% dos lares brasileiros, chamada
televisão. É claro que não são os livros, pois se fossem não estaríamos mais
sendo comandados por uma pequena corja de políticos corruptos que se aproveitam
da ingenuidade de milhares de pessoas que conhecem o Brasil pela tela da
Televisão.
Hábitos
de consumo, de comportamentos, culto a aparência, são hoje ditados pelo
programas televisivos como as novelas que são responsáveis pela educação do
povo. Tudo construído por profissionais que montam o cenário e o enredo de
acordo com aquilo que a população deseja. Aquilo que não está na televisão não
está no mundo, pois a única verdade é aquela transmitida por imagens. Como
acreditar na existência da democracia quando se sabe que algumas personalidades
até então desconhecidas, do dia para noite se transformam e presidentes da
república, pelos simples fato da imagem de bom moço ter sido divulgada pela
televisão. Sem contar os big brother que também assume esse papel. Uma
democracia somente se constituirá como tal no momento em que a sociedade se
organizar e promover a luta pela transformação, devendo começar pela reflexão
da vida das pessoas que hoje dão nome as ruas, aos prédios públicos, monumentos
e estátuas espalhadas por todos os lados. Conhecer as diversas faces de um
sujeito leva as pessoas a sabem o histórico dessa pessoa e a se rebelarem, pois
uma nova sociedade só se constrói quando nos indignamos com algo e decidimos
participar da resistência, da ruptura social.
Prof.
Jairo Cezar
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