A REFORMA DO ENSINO MÉDIO É UM
ATAQUE FRONTAL AO CURRÍCULO, A DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO
Atualmente
não tenho dúvidas que a decisão por mim tomada há mais de trinta anos em
escolher história como carreira docente, teve como motivação as aulas de sociologia
oferecidas no terceiro ano do ensino médio. Seguramente o processo de maturação,
criticidade e compreensão dos fenômenos sociais, poderia ter se processado mais
precocemente, se no ensino infantil e fundamental o currículo tivesse sido incluídas
as disciplinas de sociologia e filosofia. Terminando a universidade e de
imediato ingressando como docente na rede pública estadual, todos os finais de
bimestres ou ano letivo, parcela expressiva dos/as professores/as compartilhavam
da mesma opinião, afirmando que as dificuldades dos/as estudantes na análise crítica
dos episódios históricos, bem como interpretação dos conceitos matemáticos,
físicos e químicos, se deviam a ausência das disciplinas sociologia e filosofia
nas primeiras fases do processo educativo.
Com
a inclusão dessas respectivas áreas do conhecimento no currículo do ensino
médio, que se deu em 2009, houve mudanças significativas no processo comportamental
e social do estudante, porém, os resultados no campo avaliativo global das
instituições não demonstraram ser tão contundentes, pelo fato do modelo
pedagógico permanecer impregnado de vícios históricos. Os maus resultados,
porém, não devem ser atribuídos aos profissionais ou as instituições de ensino,
como insistem apregoar os governos e as mídias conservadoras atreladas aos
detentores do poder.
Infelizmente
quando é pensado e montado um currículo, seus mentores costumeiramente dão mais
ênfase a certas disciplinas que outras, contendo cargas horárias maiores. Esse
fracionamento desigual e discriminatório corrobora para o desencadeamento de atritos
e tensões entre os profissionais. Em sociedades repressoras excludentes como a
brasileira, a construção do currículo segue sempre um viés funcional anti-rupturas.
A construção de cidadãos/ãs críticos e comprometidos com a transformação social
são prerrogativas que embora estejam inseridas nos PPPS e Propostas Curriculares,
se configuram como conceitos vazios frente ao modelo tradicional de educação
que insiste permanecer.
É
claro que a sociologia e a filosofia têm as suas próprias epistemologias, pautadas
em metodologias de desconstrução de praticas burgueses de dominação e controle
social. A escola deve ser concebida como estrutura que converge todas as
manifestações e tensões sociais. Não há
como impedir ou achar que construindo enormes muros ou instalando câmaras de
vigilância, torne as escolas protegidas da violência, das injustiças que contaminam
todo cenário nacional. Não devemos ser
ingênuos ao ponto de acreditar que a sociologia, matemática, biologia, física,
etc., são áreas do saber neutras dentro de qualquer contexto político social. A
própria neutralidade no campo pedagógico já tende a se caracterizar como um ato
político, a favor ou contra o modelo vigente estrutura.
Aqui
está, talvez, um dos tantos motivos que estão despertando a ira de movimentos políticos
conservadores como o arque-conservador “Escola Sem Partido”, que,
insistentemente, vem pressionando o congresso nacional e o poder executivo para
agilizar reformas como a do ensino médio. O desejo é enorme para erradicar disciplinas
do currículo como sociologia e filosofia, que chegam ao extremo de utilizar as
mídias para convencer a opinião pública de que os baixos rendimentos em
matemática, português, entre outras, sobretudo nos exames do ENEM, são devidos
ao elevado volume de disciplinas desnecessárias, que sobrecarregam o currículo.
E
olha que tais postulados toscos lançados são respaldados por jornais como Folha
de São Paulo, que publicou em 16 de abril de 2018 reportagem contendo o
seguinte título: filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em
matemática.[1]
Quem está distante do cotidiano das salas de aula ou tem dificuldade de refletir
criticamente reportagens como essa publicada pela folha, avaliada como tendenciosa,
passa a acreditar, criando sentimentos de demonização contra disciplinas e profissionais
dessas áreas.
Pode
ser que o argumento manifestado pelo jornal em defender a publicação da
reportagem, se fundamente por conter dados obtidos por pesquisadores/as,
membros de organizações e universidades. Num dos parágrafos do texto, os/as pesquisadores/as
foram unânimes em afirmar que em decorrência da reduzida carga horária no
ensino médio, a inserção de novas disciplinas (sociologia e filosofia) refletiu
negativamente no ensino das demais áreas, como matemática e linguagens. O que é
curioso nessa publicação é que em nenhum momento o jornal se prestou a ouvir
algum integrante ou representante dessas duas disciplinas, para ouvir suas argumentações
sobre o que afirmaram os pesquisadores.
Oito
dias depois da Folha de São Paulo ter publicado a bombástica reportagem sobre
os impactos negativos da filosofia e sociologia no desempenho das demais
disciplinas, a revista digital Carta Capital, rebate acintosamente o texto do
jornal paulista, contendo a seguinte manchete: qual o interesse em retirar
Sociologia e Filosofia do currículo? A autora do texto argumenta que o material
publicado pelo jornal peca em vários aspectos, especialmente no metodológico, pois
os dados ou resultados obtidos por estudantes são fundamentados em exames do
Enem. Ficou excluída da pesquisa aspecto importante como a precariedade do
sistema público de ensino, enraizado em um modelo tradicional, fragmentado,
conteudista e excludente de aprendizagem.[2]
Enquanto
as legislações e planos educacionais dão relevância a uma aprendizagem
integral, interdisciplinar, com temas e metodologias que estimulem a
investigação e a contextualizarem, o que acontece no dia a dia da escola, com
raras exceções, são aulas guiadas por livros didáticos ou apostilas, apresentando
uma única finalidade, os exames do ensino médio. É claro que baseado nesse
modelo de ensino e avaliação, os resultados no desempenho não poderiam ser
diferentes. Agora alegar o excesso de disciplinas ou a incipiente carga horária
do currículo do ensino médio às baixas notas obtidas no ENEM em disciplinas
como matemática, é de certo modo um argumento malicioso.
Quando
pesquisas são publicadas por instituições e profissionais de renomada
competência técnica, costumeiramente nem se questiona o método aplicado, muito
menos os resultados. No caso da pesquisa realizada sobre maus resultados nas
avaliações do ENEM alegando o excesso de disciplinas, poderia até passar
despercebida e dar como verdadeira, inquestionável, se não houvesse elementos suspeitos
na mesma. Estamos nos referido a um dos envolvidos no trabalho, que segundo
informações divulgadas, é apoiador do movimento escola sem partido e, também,
conselheiro econômico do pré-candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro.
Esse
dado faz sim muita diferença no conjunto da pesquisa. É sabido que a reforma do
ensino médio tende a ajustar o currículo do ensino básico seguindo os preceitos
do sistema capitalista de produção. Até aqui isso não é mais segredo para
ninguém. O fato é que a prevalência de disciplinas focadas no campo da lógica e
da tecnologia são partes importantes desse programa reformista em curso no
Brasil.
A
tendência é as escolas públicas brasileiras tornarem-se extensões das empresas
(Sistema 5-S) formando trabalhadores, técnicos, como mão-de-obra barata e
descartável. Portanto, para o mercado, o
modelo de escola vigente é incompatível com os preceitos modernistas exigidos
pelos donos do capital. A promoção de reformas pontuais, compatibilizando baixa
disponibilidade de recursos, eficiência técnica e qualidade na produção, são
princípios norteadores desse complexo sistema chamado capitalismo.
A
diminuição da oferta de disciplinas faz parte desse contraditório e conturbado arcabouço
produtivo patrocinado pelo sistema financeiro global. Os estados, pressionados para
a quitação de suas dívidas públicas, executam seus programas de reformas
estruturais. O ajuste fiscal é uma dessas medidas, limitando investimentos em setores
estratégicos como saúde e educação. A pesquisa apresentada pelo jornal pode
estar condicionada a fins específicos, ou seja, convencer a opinião pública de
que um problema (notas baixas em matemática nos exames do ENEM) pede ter relação
com o número elevado de disciplinas no currículo, e não o modelo de escola e de
ensino ultrapassados.
Já
que o reforma do ensino médio está na sua fase conclusiva, os governos aproveitam
de artifícios espúrios para fazer valer uma reforma à luz do mercado, que não
ficou imune às críticas e aos protestos, tamanho o retrocesso que provocará à
educação. Se não houver uma pressão mais consistente dos/as profissionais das
áreas que estão no centro do epicentro do desmonte, desconstruindo o aparte de
inverdades disseminadas, é provável que o texto final do documento, as mesmas
(filosofia e sociologia) já estejam excluídas.
Para
o movimento Escola Sem Partido, composto por integrantes e apoiadores, um
ensino médio o mais enxuto possível é a porta do sucesso para suas pretensões políticas
e econômicas. Os governos estaduais torcem para que as investidas desses seguimentos
conservadores tenham sucesso. A aprovação de um documento do ensino médio, que minimize
ao máximo a oferta de disciplinas e a carga horária, irá contemplar com os
programas reformistas em curso. A PEC (Proposta
de Emenda Constitucional 95) que congela investimentos em educação e saúde por cerca
de 20 anos são uns dos itens desse pacato de maldades. Terceirização,
assinatura de convênios, flexibilização dos contratos, ensino a distância, redução
da oferta de disciplinas nos currículos, são alguns exemplos de maldades
contidos no grande pacote de ajustes neoliberais.
Tanto no decurso de implantação da BNCC, como
no decreto de reforma do ensino médio, ínfima foram as manifestações de
resistência de toda a categoria em escala nacional, onde deveria ter redundado
em paralisação por tempo indeterminado. Houve, no entanto, manifestações
isoladas, que pouco ou nada alterou as diretrizes liberais descritas nos
planos.
Nessa
faze de tramitação da base curricular comum para o ensino médio, o que está em
jogo é a oferta ou não de disciplinas no currículo como Artes, História,
Educação Física, Sociologia e Filosofia. Em nenhum momento, profissionais
dessas respectivas áreas se propuseram fazer algum tipo de manifestação,
repudiando as aberrações e os ataques contra o currículo e a carreira docente. A
possível supressão de disciplinas no currículo, como da sociologia e filosofia,
é conseqüência da pressão dos movimentos ultraconservadores infiltrados nas
instâncias de decisões dos poderes constituídos.
As
bancadas conservadoras no congresso, o movimento escola sem partido, MEC,
associações empresariais, entre outras entidades de caráter privatista como o
todos pela educação, estão à frente desse violento processo de desmonte da
escola pública, afetando milhões de pessoas. Resistir a tudo isso é necessário,
é urgente. A articulação de encontros com profissionais das áreas afetadas,
junto com outros, solidários à causa, pode se constituir em excelente estratégia
para o debate e tomada de decisões. A elaboração de manifestos e a coleta de milhares
de assinaturas, contrários a exclusão de áreas no currículo, pode se configurar
em um extraordinário instrumento de luta em defesa de um currículo mais democrático
e transformador.
Prof. Jairo Cezar
[1] https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2018/04/filosofia-e-sociologia-obrigatorias-derrubam-notas-em-matematica.shtml
[2] https://www.cartacapital.com.br/politica/qual-o-interesse-em-retirar-sociologia-e-filosofia-do-curriculo
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