O PRINCÍPIO DO SAGRADO MOLDANDO O IMAGINÁRIO SOCIAL DO POVO
ARARANGUAENSE
Antiga
sede do Hospital Bom Pastor - Arararnguá (1956)
Arquivo
do Centro Cultural Histórico de Araranguá[1]
Para entender
os desdobramentos políticos, econômicos e sociais de cidades históricas
brasileiras importantes como Araranguá, descortinada na primeira metade do
século XVIII por ter se tornado caminho ou travessia de tropeiros para as
feiras de são Paulo, é necessário mergulhar no mundo místico da religião
oficial da época, o catolicismo, e decifrar o extraordinário poder de persuasão
nos cenários público e privado brasileiro. O antigo povoado Capão da Espera,
depois Campinas do Sul e, finalmente, Araranguá, teve sua existência oficializada com
a criação da Paróquia Nossa Senhora Mão dos Homens, uma prova categórica da
autoridade simbólica personificada que permanece imortalizada no imaginário social
há quase dois séculos.
Embora
a primeira igreja tenha sido construída no povoado de Canjicas, hoje Hercílio
Luz,isso em 1816, com o aumento da população na sede do distrito, Campinas do
Sul, em 1856, o cidadão Albino Pereira de Souza e sua esposa Delfina Maria de
Jesus, doaram pedaço de terra para que fosse erguida uma igreja iniciada em
1959,com a benção do terreno dada pelo Padre Antônio Nunes Barreto. A
construção durou cinco anos, ou seja, sua inauguração ocorreu em 1864. No
começo do século XX, Araranguá já constituída como município, a antiga igreja, não
comportava mais o elevado fluxo de fieis que disputavam o pequeno espaço nas
celebrações dominicais. Portanto, deram início as mobilizações para a
edificação de um novo prédio, no mesmo local da anterior.
A
demolição da antiga estrutura ocorreu em 1901, porém, foram necessários oito
anos de intensos esforços para que em 1909, o prédio da nova matriz, mais
espaçoso que o anterior,estivesse concluído e abençoado pelo pároco Ludovico
Coccolo. Quem coordenou a obra da igreja matriz foi o construtor Germano
Becker. O início do século XX,contrário ao século XIX,a hegemonia do
catolicismo é confrontada pela presença de outras doutrinas de tendências
cristãs e não cristãs. A consequência, portanto, foram as acirradas disputas na tentativa
de atrair novos fiéis tendo em vista o fortalecimento de um prestigioso negócio simbólico
autodenominado entreposto da fé. Era primordial, todavia, desatar o nó intangível de
uma complexa rede de interesses diversos envolvendo Estado e instituição
religiosa, ambos submetidos a um tipo específico de contrato simbólico, que
demarcava território de domínio.
O
contato com a pesquisa desenvolvida pelo professor Lúcio Vânio Moraes, cujo
título Mercado Religioso e Práticas
Pedagógicas: A Congregação de Santa Catarina no município de Araranguá-Sc
(1951-1982), que lhe assegurou o doutorado em história pela UFSC. Sua obra
historiográfica transitou por caminhos descontínuos e repletos de nuances políticas
e ideológicas,dando a certeza que o papel da igreja católica, na época, era
expandir suas fronteiras de domínio espiritual,ultrapassando os próprios
limites do território demarcado pela igreja.
Numa
época de limitações orçamentarias e enormes problemas sociais, onde o Estado
por si só não possuía as mínimas condições para comportar serviços básicos
essências como saúde e educação, o município de Araranguá intercedeu apoio à comunidade
para colaborar na execução de obras públicas importantes como a construção de
um hospital vindo a se chamar Hospital Bom Pastor. Se a proposta do estado
republicano era forjar sujeitos adeptos nos preceitos da ordem e do progresso
técnico e científico, os espaços públicos como hospitais, escolas, asilos,
deveriam estar ajustados fisicamente e simbolicamente para cumprir tais
objetivos.
Seguindo
essa perspectiva, nada mais conveniente que entregar o controle da gestão hospitalar
do Bom Pastor e do futuro Centro Educandário Madre Regina aos cuidados de uma
congregação religiosa para exercer o papel sagrado de educar e curar os enfermos
da alma e do corpo, conforme os desígnios previstos no regimento da
congregação. Tanto as Irmãs da Congregação da Santa Catarina, como os párocos,
ambos eram concebidos pelas comunidades desassistidas do interior como figuras
imaculadas, “símbolos sagradas da fé”. Esse grau de confidencialidade entre os
religiosos e a população produziu frenéticas disputas entre as facções
políticas quanto a indicação de nomes para celebrações alusivas a padroeira do
município. Estar inserido na lista de festeiros, integrar a alguma irmandade, carregar
o andor da santa, etc., todas eram prerrogativas importantes que asseguraria
aos pretendentes a cargos públicos reais possibilidades de ascensão.
Os
próprios religiosos também se aproveitavam dessa condição que lhes eram convenientes
para galgar cargos públicos. O Padre Antônio Luiz Dias foi um desses protagonistas
que transitou por múltiplos setores do seguimento público, de Conselheiro ou
Vereador Eleito, Secretário Municipal de Educação a Chefe de Saúde do Hospital
Bom Pastor. Antes da transferência do Padre Antônio Luiz Dias para a paróquia
de Araranguá, a pesquisado Professor Lúcio Vânio faz referência ao pároco Thiago
M. Coccolini, um destacado e ardoroso defensor do catolicismo e combatente dos rituais
não católicos, como o espiritismo, umbanda, cultos pentecostais,entre outros, no
qual o padre categorizava tais seguidores de hereges, ateus.
Embora
a construção do hospital bom pastor tenha se concretizado graças ao empenho da
comunidade, seguimentos empresariais e de algumas personalidades de relevância
como o Padre Antônio Luiz Dias, na inauguração do nosocômio, muitos políticos estiveram
no ato, tal como o próprio governador Irineu Bornhausen. No entanto, depois das
festividades, os problemas no hospital se avolumaram, com a falta de médicos e
medicamentos, tendo as irmãs que se desdobrarem para suprir tal carência. Essa
situação de caos na saúde do município de Araranguá continuou durante as
décadas posteriores a inauguração. Um dos pontos importantes abordados na
pesquisa do professor Lúcio trata do rompimento do contrato com a congregação
das irmãs de Santa Catarina na administração do hospital, que veremos mais a
frente.
Diante
das circunstâncias que incapacitavam o poder público municipal em assegurar
serviços públicos de qualidade que se constituíam como obrigação
constitucional, como saúde, educação, etc..O jeito foi formalizar uma espécie
de parceria público privado, que hoje conhecemos como terceirização.
Concomitantemente a gestão da saúde era de responsabilidade de seguimentos da
igreja católica, na educação o rito também vinha se repetindo. Não de modo
integral, compreendendo todas as escolas, porém, parcialmente, na gestão do
único e principal educandário, o Colégio Madre Regina, formador de professoras
para o exercício sagrado da carreira docente.
Um fato
curioso ocorrido anterior à inauguração do educandário Madre Regina, em 1956,
foi que a primeira sala disponível para o exercício docente estava no interior
de um antigo prédio de madeira em estado de abandono onde ficava o hospital bom
pastor, construído em 1927. Os recursos para a restauração do ambiente foram
custeados pela própria congregação. Depois de muitos esforços, sua inauguração
ocorreu em 1956. Com o aumento da demanda, houve a necessidade de adquirir
terreno próprio e lançar a pedra fundamental de uma nova edificação, maior que
a primeira, com uma estrutura capaz de oferecer ensino não somente para
normalista, como também os ginasianos. Portanto, em 1959 estava concluía a obra
do educandário. Além do colégio Madre Regina, o colégio Nossa Senhora Mãe dos
Homens, hoje Colégio Murialdo; Grupo Escolar Castro Alves, Grupo Escolar David
do Amaral; entre outros tantos espalhados pelas comunidades e distritos do
município de Araranguá.
Casa da congregação
das irmãs de Santa Catariana – Arararanguá – 1962
Centro Histórico
Cultura de Araranguá[2]
Interessante
é que o grupo o colégio madre Regina, mesmo tendo uma designação de público, as
irmãs tinham autonomia de tomar decisões seguindo suas próprias conveniências.
Uma delas era a cobrança de taxas, mensalidades para alunos mais abastados,bem
como estabelecer critérios de contratação de professores, obrigatoriamente ter
vinculo religioso com o credo católico. Todo o ensino de preparação docente
condicionava o currículo, no campo das disciplinas, de uma reformulação
sistemática, conferindo as áreas do saber, matemática, geografia, história,
etc. aos desígnios da doutrina cristã, da fé católica. Todas as escolas
distribuídas pelo município havia a disciplina de educação religiosa, uma
maneira salutar de intensificar ainda mais o poder de doutrinação da população.
E não
foi exclusividade somente das escolas e da igreja o papel de doutrinação. As
catequeses também contribuíram na difusão doutrinária, atuando com afinco em ambientes
particulares, galpões, salões e outros cômodos, que oferecessem o mínimo desconforto para acomodar as crianças indefesas. Portanto, estava consolidado o “triunvirato”,
reunindo três seguimentos, congregação das irmãs, párocos e poder público, ambos
atuando objetivo e subjetivamente, moldando corpos infantis e adultos, como
forma de amplificar o domínio territorial da fé católica no município. Para
isso, seria necessário impulsionar uma verdadeira cruzada contra os infiéis, ou
seja, aqueles que não cultuavam o credo católico.
No
inicio da década de 1980, a hegemonia da Congregação das Irmãs de Sta Catarina
no domínio da saúde público chegaria ao fim. O rompimento do contrato com a
congregação, segundo consta da obra do professor Lúcio Vânio, tem relação com
os desentendimentos da instituição religiosa com o poder público. Em certo
momento houve suspeita de que recursos oriundos do hospital estavam sendo
desviados para outros empreendimentos da própria entidade. Porém, tais
suspeitas jamais foram confirmadas. No entanto, o fato é que as irmãs se
sentiram ofendidas com a divulgação das denúncias de suspeitas. Na gestão do
prefeito Osmar Nunes, a pesquisa faz referência das tentativas de negociações
entre a administração pública e a congregação acerca da transferência ou não do
hospital para o controle definitivo da congregação. As tentativas foram
infrutíferas. Um fato que marcou esse momento das negociações foi à posse de
Martinho Herculano Ghizzo como administrador do Hospital.
Mesmo
rendendo críticas acirradas à administração municipal, principalmente advindas
do pároco local, Paulo Hobold, responsabilizando o poder público e a política
local pelo desenlace negativo, um novo hospital foi construído, maior que o
primeiro, e cujo homenageado, que teria seu nome descerrado na placa de
inauguração, foi Affonso Ghizzo, ex-prefeito e pai do médico Martinho Ghizzo.
Desde a sua inauguração até os dias atuais, o hospital regional passou por
várias administrações. Foi gerenciado por congregações, universidades, Estado
e, atualmente, por uma OS (Organizações da Sociedade Civil), ou seja, novamente
terceirizado, como há 84 anos, quando da fundação do hospital Bom Pastor. De lá
para cá, embora tenha perdido sua conotação de purificador do corpo e da alma, tornando-se
oficialmente laico, por muitos anos se transformou em ambiente fisiológico,
eleitoreiro, colocando frente a frente partidos e políticos oportunistas que se
utilizavam da instituição para autopromoção ou assegurar a permanência de
facções políticas no poder municipal e estadual.
Prof.
Jairo Cezar
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