ÁFRICA
DO SUL, O APARTHEID SOCIAL AINDA MANTÉM CERCA DE 80% DA POPULAÇÃO EXCLUÍDA DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Lixos, casas e a fumaça saindo do chão de galeria de carvão abandonada | Foto: Carol Gomide |
Em
2017 durante 10 dias participei junto com outros 20 brasileiros de um tour
pelas principais cidades e áreas turísticas da África do Sul. Com exceção a comunidade
de Soweto, segregada socialmente e um dos redutos mais densamente povoadas do
mundo, os demais locais visitados, discretamente expõem as feridas sociais e
econômicas que afetam cerca de 90% de uma população constituída majoritariamente
por indianos/asiáticos (2,6%); mestiços (8,8%) e negros (79%). A população
branca no país representa 9,6%, formada por colonizadores das etnias alemãs,
holandesas, inglesas, etc.
Como
tantos outros países de economia pautada no extrativismo mineral, petróleo,
carvão e outras commodities para exportação – diamante, platina e ouro, a
África do Sul não apresenta uma estrutura industrial significativa, tornado-se dependente
quase que exclusivamente desse setor. Se o lucro obtido pelo país em 2017 nas
exportações de carvão, petróleo, ouro, platina, cromo, vanádio, manganês, diamante,
etc, foi de 33 bilhões de dólares, era de se prever que toda essa riqueza
resultasse em benefícios para os seus 56 milhões de habitantes.
Nada
disso, hoje ampla parcela da atividade mineradora no país é controlada por
grandes corporações multinacionais, a exemplo da transnacional Anglo American Platinun
que atua no país há 101 anos. Somente no setor de mineração de carvão, são
cinco empresas que controlam 80% da produção. Quase todo o carvão extraído na
África do Sul é de superfície. Transitando pela rodovia que leva ao Parque
kruger, situado na fronteira com Moçambique, leste do país, a visibilidade da auto-estrada
era afetada pela fumaça expelida por dezenas de chaminés de usinas carboníferas
espalhadas por toda a região.
Outro
aspecto curioso observado foi a imensa concentração de residências próximas as
áreas mineradoras, sendo as mesmas habitadas pelos trabalhadores das minas. Não
há dúvida que o percentual de pessoas afetadas por doenças resultantes da
inalação de partículas tóxicas do carvão mineral devam ser absurdamente
elevados. A certeza se dá pelo fato de o país ter se recusado em participar do
acorde de limitação da emissão de gases causadores do efeito estufa.
Os
lucros exorbitantes das empresas do setor de mineração têm vínculo direto com
as relações de trabalho impostas aos mineiros. Um exemplo para elucidar o modo
como se processa a exploração da mão de obra do trabalhador das minas é o
seguinte: um trabalhador negro é 600 vezes mais pobre do que a minoria de 1%
dos trabalhadores brancos miseráveis. Outro aspecto necessário para entender a
atual realidade do país é o “extinto” regime do Apartheid, no qual predominou
no país de 1948 a 1994, ou seja, durante 46 anos.
Durante
esse longo período, uma constituição segregacionista foi outorgada
estabelecendo regras de comportamento e conduta distintas entre brancos e os
demais grupos étnicos. Claro que essa constituição veio assegurar benefícios
ilimitados à minoria branca, identificados por Africâner.
Protegidas
por esse regime tirânico, o lucro das empresas do seguimento das commodities
cresceu de maneira estratosférica. Com o fim do regime do Apartheid, episódio
que levou ao poder o ativista antiapartheid Nelson Mandela, a população
trabalhadora sul africana, especialmente os mineiros, tiveram asseguradas alguns
benefícios sociais, como a redistribuição de 54% dos lucros das empresas aos
salários.
Com
o fim da era Mandela, a África do Sul passou a viver um longo ciclo de retrocessos
de direitos comparados à época do Apartheid. A atividade mineradora continuou
se sobrepondo às outras atividades de força de trabalho, na sua grande maioria formada
por estrangeiros de Moçambique, Zimbábue e do interior do país. Esse foi um dos
fatores pelo rebaixamento violento dos salários pagos e o aguçamento da
xenofobia. Com um exército de trabalhadores disponíveis, os proprietários das
minas passam a adotar a chantagem para espoliar ainda mais o trabalhador sul
africano.
A
prática de trabalho terceirizando já é algo rotineiro nas minas Sul Africanas.
Esse novo sistema de contratação flexível jogou os trabalhadores num abismo
interminável. Antes de haver alguns reparos na legislação, o trabalhador
contratado permaneceria na empresa por seis meses. Expirado o tempo, o funcionário
deveria ser efetivado ou demitido. Atualmente, o tempo de contratação foi
reduzido para três meses. Com essa promiscuidade legal, quando o empregado da
companhia completa o seu tempo, é demitido sem direito algum.
Por
serem estrangeiros, na sua maioria, ilegais, construíram seus barracos próximos
as mineradoras. São solos cobertos por camadas e mais camadas de rejeitos de
carvão incandescentes, que, de repente, abrem crateras engolindo tudo que
estiver sobre o terreno. São verdadeiras cidades sem o mínimo do mínimo de
infraestrutura. Falta tudo, principalmente água que abastecida por carros pipa.
O
cenário dessas comunidades é comparável a alguns bairros de Criciúma,
Siderópolis, cobertos por detritos de carvão. Porém, com um detalhe, aqui
vários projetos de reparos desses passivos ambientais estão sendo executados, tendo
a participação de empresas mineradoras, ministério público e governos
municipais. Na África do Sul, não há
qualquer política desse porte sendo aplicada.
Sem
qualquer fiscalização das autoridades, as corporações deitam e rolam no país criando
suas próprias regras, aonde, rotineiramente, trabalhadores vêm sendo submetidos
a humilhações. Os casos rotineiros
acontecem principalmente nas minas de processamento de platina. Todos os dias
os operários são submetidos a exames de raios-X abdominal para verificar se os
mesmos ingeriram algum metal precioso. Pessoas ouvidas nos bairros revelaram o
aumento de doenças psíquicas devido às tais práticas de desrespeito a dignidade
humana.
No
centro e no entorno da cidade de Johanesburgo estão espalhadas as várias
montanhas de rejeitos das minas de ouro. É, sem dúvida um cenário nada
agradável à quem não está familiarizado com a cultura da mineração. Algo que
chama atenção no centro da capital é a existência de uma mina cuja abertura
ocorreu no final do século XIX, porém desativada há décadas.
Dezenas
ou até mesmo centenas de pessoas hoje em dia acessam os seus profundos
labirintos para garimpar fragmentos de ouro. Para chegar ao seu interior são
necessários quatro dias. Muitos permanecem lá por longo tempo, quatro meses ou
mais. É um sistema de trabalho subumano e não reconhecido pelo Estado. Muitos
mineiros quando retornam das profundezas, suas poucas pedras de ouro
encontradas são roubadas ou comercializadas no mercado negro a preços abaixo do
mercado. O desespero por dinheiro leva a tal situação.
Os
costumes, os rituais, as festas e a própria violência social em Johanesburgo e
outras cidades foram forjados pela mineração do ouro. Muitas das estatuas
edificadas em pontos estratégicos das cidades importantes homenageiam colonizadores
ou heróis brancos que violaram leis em favor dos poderosos. Há pouco tempo estudantes quebraram uma
estatua colocada nas imediações da Universidade na Cidade do Cabo.
A
revolta dos estudantes e da própria população são reflexos das políticas
anti-sociais de governos em benefício dos donos do capital. O afrouxamento
violento das regras trabalhistas por meio políticas de terceirização é um dos
fatores do rebaixamento dos salários e a elevação da miséria social. Em 2017, em diversas oportunidades os guias que
acompanhavam o grupo de turistas na viagem pela pelo país ressaltavam as
dificuldades vividas pela população diante do atual governo acusado de
envolvimento em crime de corrupção.
A
insatisfação e a pressão dos movimentos sociais atingiram níveis insuportáveis
que em fevereiro de 2018, quando o presidente Jacob Zuma decidiu renunciar ao
cargo. Na vacância da vaga assumiu o seu vice, Cyril Ramaphosa. Embora tendo
nascido no bairro pobre de Soweto e um dos braços direito de Nelson Mandela no movimento
antiapartheid, seu carisma e aceitação junto ao povo pobre do país estavam
muito aquém de quando era líder sindical. Em pouco tempo se tornou uma das
pessoas mais ricas da África do Sul. Hoje acumula uma fortuna que supera os 540
milhões de dólares, adquiridas em vários negócios como a mineração.
É
acusado de um dos responsáveis pela chacina que vitimou 35 mineiros em 2012,
quando da realização de uma greve envolvendo trabalhadores da empresa britânica
LONMIN, que atua no setor de mineração. Esse
episódio está pondo em xeque à democracia racial pós-apartheid. O risco de um
colapso social pode se intensificar pelo fato dos envolvidos nos crimes não
terem sido julgados. Algo importante que vem marcando os trabalhadores na
África do Sul é o seu poder de organização. Nos últimos dez anos o número de
greves e protestos se espalhou pelas regiões mineradoras controladas pelas
empresas que atuam no setor como a multinacional Anglo American.
Diante
desse espectro nada favorável às empresas, com perdas de lucros bilionários
devido as paralisações por greves, corporações como a Anglo American estão alterando
seus portfólios internacionais. Em vez
de continuar explorando ouro, platina e outros minerais em países como a África
do Sul, com forte mobilização sindical, estão transferindo suas plantas para
países como o Brasil, explorando o ferro, manganês, bauxita, etc. Outro fator
importante às empresas aqui é a fraga organização sindical dos trabalhadores do
setor.
A
estratégia do capital é sem dúvida reagir com violência quando vê os lucros
ameaçados. Em muitos casos na África do Sul as companhias mineradoras estão se
utilizando de outras estratégias como a cooptação dos líderes religiosos para
manter suas empresas funcionando assegurado lucros. Preocupados com isso, movimentos vem se
replicando no mundo, com a atuação até do vaticano, mobilizando ONGs e demais
organizações, na tentativa de conciliarem mineradoras, religiosos e ONGs para
tornar a atividade mais humanizada. O movimento Rede de Igrejas e Mineração, o
papa denominou “grito contra as mazelas”, termo que propõe sensibilizar a
sociedade sobre todos os males oriundos da mineração.
A
África do Sul embora considerada um dos países mais ricos do continente
africano é também um dos mais desiguais do planeta. O Aparthaid mesmo
oficialmente destituído em 1994, a divisão de classes entre brancos e não
brancos ainda permanece tão forte quanto antes. Para um país onde menos de 10
da população é branca, onde 1 a 2% delas tem o controle de mais 80% das
riquezas, as greves e a mobilização da classe trabalhadora, hoje cada vez
maior, tenderá elevar ainda mais o grau de consciência do povo na tomada do poder.
Que tudo isso sirva de exemplo para o Brasil.
Prof.
Jairo Cezar
https://www.brasildefato.com.br/2018/09/03/especial-or-exploracao-mineral-dor-e-miseria-na-africa-do-sul/
https://www.brasildefato.com.br/2018/08/31/29mineradoras-tentam-cooptar-igrejas-acusa-padre-da-rede-igrejas-e-mineracao/
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