EXPOSIÇÃO
SOBRE ESCRAVIDÃO EM ARARANGUÁ REVELA UM PASSADO POUCO CONHECIDO DA POPULAÇÃO
LOCAL
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Foto - Jairo |
Cento
e trinta anos depois da assinatura da controvertida lei áurea, jamais, em um
passado recente, se ouviram tantas reportagens envolvendo fazendeiros ou
empresários acusados de estar utilizando mão de obra análoga a escravidão. A sensação que se tem hoje é que trabalho
escravo no Brasil jamais teve fim. Outro detalhe importante, a escravidão
descrita nos livros didáticos e ensinada nas universidades e escolas básicas
remonta um sistema quase que exclusivo da região sudeste e nordeste brasileiro.
São mínimas as pesquisas ou fontes bibliográficas que realçam esse perverso
modelo produtivo na região sul do Brasil.
Santa
Catarina como Rio Grande do Sul, ambos tiveram sua história moldada a partir de
uma economia de traço mercantilista para o abastecimento regional, das áreas de
mineração no sudeste brasileira e dos países do cone sul. A pecuária, a farinha
de mandioca e o açúcar foram atividades econômicas que se destacaram no sul do
Brasil, sendo responsáveis pelo afloramento de vilas importantes nos dois
estados do sul que, depois, se transformaram cidades pólos regionais como
Laguna, Araranguá, Lages, etc.
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Foto - Jairo |
Quando
nos referimos a Araranguá estamos nos remontando a um município cuja área
territorial até 1925 lhe credenciava como uma das mais extensas do estado de
Santa Catarina. O que poucos sabem é que essa vastidão de terras na extremidade
sul do estado estava concentrada em mãos de poucas famílias abastadas, cujo
trabalho na lida diária no campo e nos engenhos de farinha de mandioca e açúcar
era quase que exclusiva de trabalhadores escravos, negros africanos.
Durante
décadas documentos que revelaram a existência de cativos no Grande Araranguá
ficaram esquecidos quase que propositalmente dentro de caixas em salas
insalubres no fórum da comarca de Araranguá. A quantidade e a relevância historiográfica
da documentação foram de tal magnitude que despertou a atenção do professor
Cesar Antônio Spriccigo, que não relutou em iniciar sua pesquisa de mestrado
pela UFSC, resultando na dissertação e posterior livro com o título: Sujeitos Lembrados
e Sujeitos Esquecidos.
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Foto - Jairo |
Cada
linha, cada capítulo da obra inédita na região traz informações reveladoras de
um cenário de intensa movimentação de proprietários de terras, negociadores de
escravos, de farinha, de açúcar e demais produtos, transportados em carro de
bois por trilhas e estradas de terra. O
comércio de escravos tornou-se tão atraente e lucrativo que, aquele que possuísse
dois ou três plantéis, lhe asseguraria capital suficiente para a aquisição de braças
de terras e equipamentos para os engenhos.
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Foto - Jairo |
A
pesquisa do professor Cezar rompeu com a historiografia tradicional que excluía
o sul do Brasil do roteiro comercial escravagista. Descortinar tais fatos de um
território distante do eixo produtivo e exportador nordeste/sudeste, trouxe subsídios
que comprovam que o Grande Araranguá, como era conhecido na época, foi entre a
metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX uma das regiões mais
dinâmicas e prósperas do estado de Santa Catarina.
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Foto - Jairo |
Essa
invisibilidade à presença africana no estado de senta Catarina, em particular
no sul do estado por longo tempo, teve como motivação o fluxo imigratório
europeu, que fora forjado por narradores para designar o italiano, alemão, etc.,
como protagonistas da nossa história. É comum hoje em dia a difusão de
estereótipos sobre o estado catarinense, dentre eles a falsa versão de ser a
mini Europa brasileira. Povos sambaquianos, guaranis e outros tantos
agrupamentos sociais, deixaram evidências de terem aqui chegando centenas,
milhares de anos atrás. Já o negro africano, os lusitanos e os açorianos,
também transitaram e ocuparam essas terras muito tempo antes da chegada das
primeiras levas de imigrantes europeus.
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Foto - Jairo |
A
presença desses grupos étnicos pode ser confirmada visitando algumas
comunidades do litoral sul do estado como Garopaba, Laguna, Ilhas e Morro dos
Conventos. Além dos aspectos culturais materiais - artesanato e instrumentos de
trabalho, têm-se os imateriais - rituais religiosos e o folclore local, que dão
clarividência que a região apresenta identidade própria, que permanece viva até
hoje. A presença africana no extremo sul do estado se mostra ter acontecido
muito antes dos primeiros imigrantes europeus, cujos registros datam da segunda
metade do século XIX.
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Atualmente,
alguns bairros de Criciúma e da região têm relevante concentração de famílias cujos
antepassados foram cativos de pequenos e médios proprietários de terras.
Araranguá, não fugiu a regra dos demais municípios. No município de Araranguá
foram constituídos pequenos aglomerados de famílias descendentes de africanos
em locais pouco visíveis aos olhos da sociedade. Embora não se caracterizem
como um agrupamento quilombola, nos moldes da vila de São Roque, município de Pedra
Grande, a vila Samaria, em Araranguá, apresenta traços nítidos de que muitas
das famílias que ali residem seus antepassados foram escravos.
Entretanto,
tanto essa comunidade como outras no município com maior presença de população
negra, ambas retratam um cenário parecido de discriminação e presença
permanente do Estado como agente repressor. A pobreza, a violência, o trafico
de drogas, são práticas constante, não excluído também outros bairros pobres
que também sofrem com o aumento da violência.
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Tanto
Araranguá como outros municípios antes integrados ao grande Araranguá, são o
que são hoje, alguns mais outros menos desenvolvidos, devido ao seu processo de
ocupação. Portanto, pouco ou muito, índios, caboclos, portugueses, açorianos,
negros, italianos, alemães, tiveram alguma contribuição na construção da nossa
cultura. São alguns desses aspectos, como a participação negra na economia regional
do século XVIII e XIX, que procura descrever o livro do professor César, que
agora faz parte de uma exposição no museu do município, com fotografias, instrumentos
de trabalho, meio de transporte, objetos pessoais e fragmentos de expressões
colhidas nos documentos pesquisados que estão redigidas em banners.
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Foto - Jairo |
Quem
for a exposição no museu certamente será motivado a ler a obra Sujeitos
Esquecidos Sujeitos Lembrados, onde compreenderá que muito do que sabemos sobre
o passado mais remoto da região, foram descritos por cidadãos brancos, muitos
dos quais clérigos católicos, descendentes de europeus. Todo o discurso, talvez
de forma tendenciosa, procurava superestimar as famílias de imigrantes como
heróis desbravadores das terras do interior, resignando índios, caboclos e negros
em meros coadjuvantes do processo ocupacional.
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Quando
uma sociedade inteira deprecia sua cultura material e imaterial, não reagindo a
deterioração de seu valoroso patrimônio, etnias, por exemplo, estamos certos que
a resposta disso são gerações fragilizadas, passivas e subservientes de governos
tiranos. Uma exposição do porte e importância que é Sujeitos Esquecidos e
Sujeitos Lembrados no museu de Araranguá, qualquer nação com grau cultural
pouquinho mais elevado, sobrecarregaria agendas de visita de museus, tamanha
presença de público.
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Foto - Jairo |
A
visita que fiz ao museu de Araranguá para apreciar a exposição sobre a
escravidão em Araranguá, quando perguntei à monitora do espaço sobre o fluxo de
apreciadores, respondeu que estava abaixo das expectativas. São dezenas de
escolas somente no município de Araranguá, cujos professores, de história, por
exemplo, teriam a obrigação profissional e ética de levar seus estudantes até o
museu e fazê-los refletir sobre diversidade cultural na região, incluindo a
africana, que teve participação decisiva na construção da nossa identidade
social.
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Foto - Jairo |
O
contato com a memória desse povo, subjugado por um modelo econômico perverso,
possibilitará novas reflexões que desconstruirá equívocos históricos que
permearam o imaginário social por séculos. Dentre eles a ideia de que não haver
distinção entre sujeito e objeto de trabalho, ou seja, corpo desprovido de
sentimento, alma, tão ou mais valorizado que terras e animais. Outro aspecto
importante da exposição é poder pensar modos comportamentais entre
proprietários e seus escravos, casamentos, batizados, acúmulo de recursos para compra
de alforrias, etc.
Além do mais, permitirão pensar outras tantas
formas de escravidão em evidência hoje no Brasil, que não se dá unicamente com
negros, inclui também brancos pobres marginalizados. Por fim, lendo os nomes de
inúmeros cidadãos/ãs mantidos/as invisíveis na história como Euzébios, Marias,
Anas, e agora lembrados/o na pesquisa, muito outros tantos Euzébios, Marias, Anas,
Felisbertas, Severinos, estão próximos de nos compartilhando o mesmo espaço,
porém nada sabemos sobre suas dores, frustrações, sonhos, esperanças.
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Além
de ouvi-los, por que não oportunizar os estudantes a contatar com cidadãos ganeses,
argelinos, senegaleses, entre outros, que vieram para o Brasil em busca de
esperança. Caminhando pelo calçadão de Araranguá é possível visualizá-los
trabalhando como camelôs. Levá-los à escola para uma conversa poderá enriquecer
muito nossa cultura, desconstruindo preconceitos que ainda dominam nosso
pensamento.
Prof. Jairo Cezar
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