DONA FÁTIMA SOUZA, A PRIMEIRA PROFESSORA DA
COMUNIDADE DA CANJIQUINHA, CUJA CARREIRA INICIOU EM 01 DE AGOSTO DE 1958
O dia 14 de dezembro de 2023 será relembrado
como uma data especial para as famílias que habitaram a canjiquinha durante as
décadas de 1950 a 1980. Pois foi o dia que mantive contato depois de quase cinqüenta
anos com a professora Fátima Souza, a primeira professora da comunidade que
começou a lecionar em 1958. Por ter sido também minha professora,
alfabetizadora. Tendo completado 90 anos de idade, me senti motivado em
visitá-la e ouvir suas histórias, sua trajetória de vida no distrito de
Hercílio Luz, onde residia junto com a sua família.
Chegando a sua casa, hoje residindo no bairro
Vila Nova, Içara, por volta das 9 horas, quem me recebeu no portão foi a sua
cuidadora, que fica com D. Fátima durante as manhãs, realizando os serviços domésticos
e o seu almoço. Quando entrei na aconchegante casa fui recebido por um
carinhoso abraço. Dona Fátima como era e é ainda conhecida, quando a vi, seu
corpo, rosto, olhar límpido e vibrante não refletiam em nada os 90 anos de
idade que haviam sido completados há pouco mais de um mês.
A cuidadora, D. Evanir, me confessou que D.
Fátima estava um tanto ansiosa durante aquela manhã, pois alimentara expectativas
do seu encontro comigo. Informou também que havia preparado um pudim de leite
para que fosse servido após a refeição, acreditando que eu almoçaria com ambas.
Claro que jamais recusaria convite vindo de alguém como D. Fatima, de poder
compartilhar momento tão singular, tão repleto de significados.
O fato é que eu estava na casa de alguém que me
ensinou a ler, escrever, a dar os primeiros passos de uma carreira também de
professor alfabetizador, iniciado aos 18 anos de idade. Foi exatamente o
ingresso no magistério que me motivou seguir a carreira docente, primeiro alfabetizador,
depois professor de história e por fim mestre em educação pela UDESC. Depois de
alguns minutos de conversa, D. Fátima se dirigiu até uma sala e trouxe algumas
caixas com fotos e documentos de quando era professora e de seus familiares. O
que chamou a atenção em relação as fotos apresentadas foram três que retratavam
momentos vividos na escola da canjiquinha.
Uma delas estava trinta e dois estudantes
distribuídos lado a lado em frente da escola. Claro que são pessoas que eu as
conheci, pois viviam na comunidade da Canjiquinha e cujas idades hoje se
aproximam aos sessenta anos. Mas antes de esmiuçar os momentos bons e não tão
bons experienciados por D. Fátima na canjiquinha, como professora
alfabetizadora, é conveniente discorrer fragmentos de sua vida, seus pais, onde
nasceu, estudou, por que escolheu ser professora e as dificuldades enfrentadas
na carreira.
Relatou D. Fátima que embora tenha nascido nas
Canjicas, como era conhecido no passado o distrito de Hercílio Luz, sendo a
mais velha de seis filhos tidos por Danúbio Celúrios de Souza, seu pai, quando
tinha cinco anos de idade foram morar no Maracajá/SC. Lá foi para a doutrina e
fez a primeira comunhão. Seus pais ergueram uma loja de tecidos e alimentos.
Essa foi a época do trem, que sempre usavam esse transporte para se deslocar,
para ir a Araranguá, Criciúma e Tubarão.
Afirmou que mais tarde a família se transferiu para o centro de
Araranguá, vindo a residir em uma casa que foi de Domício Pereira, que era pais
da D. Lia, esposa do seu Severiano, seu primo irmão. A residência situava-se
próxima ao colégio Castro Alves, no centro da cidade.
Ficando lá um tempo, seu pai decidiu retornar
para as Canjicas, cuja mudança foi realizada de Lancha, embarcação de
propriedade do S. Valter Hahn. Foi optado por esse transporte pelo fato de
naquele momento não existir outro meio alternativo. Foram morar em uma casa
antiga, grande, que pertencia ao seu avô. A residência Possuía seis quartos e
uma cozinha espaçosa. O frontal da casa possuía traçado ou estética que se
assemelhava a uma igreja. Disse que muita gente quando transitava pela frente
tirava o chapéu acreditando que ali era uma igreja.
Relatou que começou a estudar na Canjica, em
uma escola de material que também era residência de Titila Baltazar, prima irmã
de seu pai, que ficava bem próxima ao rio. A segunda escola onde estudou estava situada
na residência dos seus pais, espaço onde havia um armazém. Mais tarde a escola
foi deslocada para uma casinha menor, de material, que segundo ela foi onde
havia nascido. Esse espaço, seu avô mais tarde alugou para que fosse instalada
uma farmácia, sendo a escola transferida para um paiol, onde finalmente se
formou na quarta série. D. Fátima citou os nomes de suas professoras, sendo
elas a D. Amália; Dutilíria e Flavia, essa última filha do cidadão Norberto
Costa.
Dona Fátima fez questão de discorrer de
alguns momentos marcantes dessa época de estudante. Entre tantas lembranças, os
versinhos dos quais tinha que decorar e declamar nos eventos festivos da
escola, como o sete de setembro. Lembrou também dos cadernos cujas capas eram
decoradas com símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil e pipas/papagaios
tendo criança empinando-as. Um dos versinhos que lembrou foi declamado por um
de seus alunos cujo nome era Moacir. Dona Fátima assim declamou: “minha
enxadinha trabalha bem, corta os matinhos num vai e vem, minha enxadinha vai
descansar para amanha recomeçar”.
Quando concluiu o quarto ano na escola
começou a dar aula, cuja primeira experiência de magistério foi em um pequeno
galpão, contendo uma parta e duas janelas, espaço de propriedade de seu Manoel Domingo
Marque, na comunidade da canjiquinha. Fez questão de mostrar um caderno onde
estava registrada a data quando começou a lecionar, dia 01 de agosto de 1958. Comentou que o percurso era um tanto longo,
todo realizado a pé. Primeiro tinha que atravessar o rio Araranguá, de balsa ou
de canoa, depois caminhar uns três km, cruzar uma “pinguela” até chegar ao
local de trabalho. Dona Fátima se lembrou de alguns dos estudantes que lecionou
nessa escola, cerca de 18 ao todo. São eles: Avanir, Cléria, Zequinha,
Eziquiel, Evinha, Valdecir, Vanoir, Vaninha.
Na época que começou a lecionar o prefeito
era José Rocha, do PTB. Com o fim da gestão do prefeito Rocha, quem o
substituiu foi o radialista Osmar Nunes, cuja primeira ação realizada foi
demitir D. Fátima. A alegação da demissão, segundo ela foi por razões políticas,
pois sua família era do PSD e o prefeito eleito, da UDN. Comentou que frequentemente
pessoas iam até a prefeitura fazer fofoca da sua atuação na escola. Diante das
denúncias, o Sr Munir Bacha, inspetor municipal de educação, foi até a unidade
de ensino onde trabalhava verificar in loco o que de fato estava ocorrendo.
Confessou que quando estava escrevendo no quadro um problema para que os
estudantes os resolvessem um senhor entrou de súbito pela porta dando bom dia a
todos/as. O senhor era o inspetor Munir Bacha.
Disse que ficou muito assustada e com
vergonha da presença do inspetor e que suas roupas ficaram encharcadas de suor.
Seu Munir conferiu os cadernos dos/as estudantes, conversou com todos/as e depois foi embora. Que dias depois, em reunião
realizada com os/as professores/as, na prefeitura, o inspetor confessou aos
presentes que D. Fatima era uma heroína, por todo o esforço desempenhado no
cumprimento de sua tarefa de professora.
Relatou que antes da demissão, apareceu em
sua residência um senhor a mando do Sr Arnaldo Copetti, com papel em branco
para que ela assinasse. Disse que ficou furiosa com aquela atitude, que só
assinaria se fosse documento com o timbre da prefeitura e assinado pelo
prefeito, na época Osmar Nunes. Osmar relatou que toda a tramóia criada para a
sua demissão teria sido articulada pelo cidadão Arnaldo Copeti e não ele.
Quando recebeu o papel da demissão, Dona
Fátima e sua colega de profissão, D. Lelausia, atravessaram o rio de balsa e
foram até o Morro dos Conventos, pois precisavam se deslocar até a prefeitura
protocolar o documento de mandato de segurança. Que quando estavam na faixa/estrada
principal esperando um transporte, carona, apareceu um caminhão, do seu Lavino
Tavares, morador do bairro, carregado de farinha de mandioca. Embarcaram no
caminhão e foram até o centro, pois na época não havia ônibus. Que o processo
ou mandato de segurança, depois de protocolado, levou dois anos para retornar.
Tanto D. Fátima quanto sua colega, D.
Leláusia, ambas foram indenizadas com a soma de 1,200 cruzeiros cada. Acontece
que ambas receberam o pagamento na residência do Seu Osmar, que ficou com a
metade do valor. Confessou que passou muitas dificuldades depois que foi
demitida, que o dinheiro recebido como professora era insuficiente para
sobreviver. Sua casa era bem modesta, não possuía forro, que quando ocorria
tormenta o vento carregava as telhas. O salário de professora, seis cruzeiros
mensais, não dava para comprar quase nada. Que mais tarde foi reajustado para
12 cruzeiros. Perguntei à ela, o que poderia se comprar com esse valor. Não
respondeu, apenas deu gargalhada.
Contou que os pais dela tinham três cabeças
de gado, que recebeu uma novilha de presente para que ela pudesse tirar leite e
ajudar na renda da casa. Que a novilha cresceu e teve dois filhos. O irmão da
D. Fatima negociou as três rezes com uma casa velha, que vendeu mais tarde.
Nessa casa começou a dar aula, que seu Lauro Jacinto era presidente da colônia
da comunidade, que encontrou uma canoa na Barra Velha, que D. Fatima comprou através
de financiamento feito pelo Banco do Brasil. Foi com essa canoa que o esposo de
Dona Fátima começou a pescar. O peixe pescado, parte dele era comercializado
sendo o dinheiro recebido ajudava na renda da família. Seu genro, muitos anos
mais tarde conseguiu resgatá-la, reformá-la e pintá-la, estando hoje guardada
em uma residência na Vila Nova, Içara.
Contou que lavava buchada de boi e fazia
morcela, popularmente conhecida por murcilha, de porco para vender. Que em sua
casa não havia nem bule para fazer café. Confessou que “pobre casada com pobre
não tinha direito a essas utilidades”. Afirmou também antes do seu casamento
seu pai foi a Porto Alegre comprou um casaco de veludo, tecidos para fazer o
vestindo de noiva, bem como um véu e um buquê de flores.
O mandado de segurança fez com que D. Fátima
fosse recontratada pelo município, vindo, portanto, a dar aula na comunidade de
Morro Agudo. Durante o mandato do prefeito Gercino Pasquali, foi construída uma
escola na canjiquinha deixando de funcionar a improvisada que ficava na
residência do Sr Manoel Domingos Marques. Nessa escola trabalhou três anos. Com
a mudança de prefeito, agora Lino Jovelino Costa, que era o seu tio, o mesmo
mandou construir outra escola, em um terreno doado por um morador da comunidade,
popularmente conhecido pelo nome de Luiz Manezinho.
NFoto - Jairo
essa escola quem trabalhou primeiro foi a
filha adotiva do prefeito Lino, Sra Rozinha. D. Fátima por 18 anos lecionou
nessas duas escolas até o momento da aposentadoria durante o prefeito Eduardo
Guizzo, inicio da década de 1990. Dona Fátima afirmou que gostava muito de
lecionar na canjiquinha, pois a comunidade a tratava com muito carinho. Era
habito as famílias fazerem convites à professora para que lanchasse ou
almoçasse juntos, e ai dela se recusasse. Quando morreu o seu pai, o mesmo
tinha muito dinheiro emprestado a juros. Um tal de Copeti, dentista da
comunidade, pagou uma conta e cujo dinheiro deu para comprar um carro zero.
Relatou Dona Fátima que a foto em que aparece
com estudantes na escola da canjiquinha, a escrita identificando-a como unidade
de ensino municipal da Sangra Negra não condiz com a realidade. Que de fato
Sanga Negra ficava na comunidade da volta curta, margem esquerda do rio
Araranguá. Discorreu que a comunidade da canjiquinha participava de forma ativa
nas atividades da escola. A APP participava junto com os estudantes da horta
escolar, cujas verduras e legumes eram diariamente colhidas para o preparo das
refeições dos estudantes. Quem era responsável pela merenda e a organização da
escola era a D. Rosinha, que permaneceu na escola até a sua aposentadoria.
Durante a entrevista com dona Fátima, ela citou
alguns de seus estudantes que estudaram nessa primeira escola, instalada em uma
varanda anexada a residência de seu Domingos Marques. Entre os citados estava o
Eziquiel Rufino, conhecido por Zélio. Para sanar dúvidas advindas da fala de D.
Fátima, agendei entrevista com Zélio em sua residência no Morro dos conventos. A
entrevista ocorreu, onde por cerca de uma hora o mesmo discorreu fatos e curiosidades
que vão ser esmiuçadas em outra oportunidade nesse blog.
Prof. Jairo Cesa
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