O drama da arqueologia no Brasil: Em
entrevista Niède Guindon relata descaso político com a Serra da Capivara
O
tema arqueologia no Brasil sempre foi tratado com certo descaso pelas
autoridades políticas, situação pela qual reflete diretamente na estrutura
educacional cujos currículos das unidades de ensino básico pouca ou nenhuma
ênfase oferece a esse assunto tão importante. O pior é que quando a arqueologia
é abordada nas aulas, especialmente nas séries iniciais, os professores, muitas
vezes despreparados, ainda adotam como principal ferramenta pedagógica, livros
didáticos, com abordagens simplificadas, que impossibilita tanto aos educadores
como aos estudantes, o mínimo de condições para contextualização ou reflexão
mais apurada num contexto mais local.
A
Serra da Capivara situada no município de São Raimundo Nonato, Piauí, é para os
brasileiros o mesmo que as pirâmides no Egito, as ruínas sagradas de Machupicchu
no Peru, e outros tantos monumentos e sítios importantes espalhados pela Europa,
Ásia, etc. Porém, com uma diferença, nesses lugares os acervos e sítios
arqueológicos são tratados estrategicamente como objeto de Estado, enquanto no
Brasil impera o descaso, o abandono dos governos em relação a tudo que se
refere aos ancestrais humanos que transitaram por aqui há milhares de anos.
É,
portanto, uma questão de segurança nacional a proteção das inúmeras pinturas
rupestres da Serra da Capivara cujas pesquisas mais recente dão conta que a
presença humana no continente americano ocorreu muito antes da data na qual era
defendida pelos arqueólogos norte americanos. Outro aspecto revelador é em
relação ao caminho percorrido pelos ameríndios. Até recentemente alguns
correntes de pesquisadores admitiam que as primeiras levas humanas que
adentraram no continente, chegaram atravessando o Estreito de Bering, no
Alasca, se deslocando para o sul. Portanto tais conclusões durante décadas dominaram
e ainda prevalecem nos círculos de debates nos Estados Unidos, referendando que
os achados arqueológicos mais antigos, são aqueles encontrados no território
americano entre dez a onze mil anos atrás.
A
desconstrução de tais teorias, entre outros assuntos relativos à arqueologia no
Brasil e no mundo foi abordada em entrevista realizada no dia 29 de setembro de
2014, no programa Roda Viva da Tv Cultura com a Arqueóloga e Paleontóloga Niède
Guindon. Na entrevista o tema que norteou o debate foi a situação dos sítios
arqueológicos descobertos na Serra da Capivara no município de São Raimundo
Nonato, que segundo a pesquisadora ambos estão em estado desolador correndo
sérios riscos de perder todo um trabalho de décadas desenvolvido na
região.
Niède
relatou que o primeiro contato com a região se deu em 1973 por meio de uma
missão científica na qual foram identificadas mais de mil figuras pintadas nas
paredes das rochas. Dois anos depois de a missão ter se fixado na região, escavações
com profundidade de até um metro e meio foram realizadas cujas conclusões
preliminares confirmaram que os artefatos identificados datavam de vinte mil
anos aproximadamente. Essas datações, portanto, superavam em muito a idade dos
fósseis encontrados em escavações nos EUA identificadas até o momento como os
achados humanos mais antigos nas Américas.
Em
1978 uma nova missão científica constituída por uma equipe interdisciplinar
formada por arqueólogos, geólogos, botânicos, historiadores, entre outros,
estiveram na Serra da Capivara, que depois de estudos feitos se engajaram na
tentativa de chamar a atenção do governo brasileiro sobre a riqueza cultural da
região e a urgente necessidade de estabelecer políticas públicas para protegê-la.
Em 1979, finalmente foi oficializada a criação de um parque no entorno do sítio,
que embora esteja constituído legalmente, até o momento vem sofrendo descaso das
autoridades com a mitigação de recursos financeiros e profissionais capacitados
para mantê-lo funcionando.
A
situação se agravou a beira do desespero em 2002 quando dos 270 funcionários
disponibilizados foram reduzidos para 70, muito dos quais contratados por
empresas terceirizadas, dedicando pouco empenho e responsabilidade pelo parque.
Como comparação, na África do Sul, Austrália, Indonésia, França entre outros
tantos parques, os trabalhadores contratados são todos funcionários públicos.
No Brasil apenas dois são de carreira que atuam no Icmbio (Instituto Chico
Mendes), os demais são terceirizados. O pior é que houve denúncias de que os salários
desses trabalhadores ficaram atrasados por mais de seis meses. O agravante é
que as empresas terceirizadas, que atrasaram os salários, receberam o dinheiro
do governo, porém não passaram para os funcionários.
É
preciso criar uma infraestrutura na região para intensificar o turismo que dinamizará
a economia local e do próprio estado do Piauí. Para isso é preciso concluir
urgentemente as obras do aeroporto de São Raimundo Nonato iniciadas em 1997, na
qual impulsionará a economia da região através da construção de hotéis e de toda
uma rede de infraestrutura necessária. Niède relatou que uma equipe do BID (Banco
Interamericano) esteve em São Raimundo Nonato realizando estudos da
potencialidade econômica, que após diagnosticarem constataram que o solo apresenta
alto teor de salinidade que o incapacita para o desenvolvimento da agricultura e
pecuária. No entanto, a região deverá aproveitar seu potencial turístico, podendo
se constituir na principal maquina motriz do desenvolvimento da região.
Destacou
que existem empresas europeias do setor hoteleiro interessadas em se instalar
na região, porém, no exato momento se torna inviável devido à falta de
infraestrutura. Com a conclusão do aeroporto, disse ela que duas empresas aéreas,
a Avianca e a Emirates, já se credenciaram em promover voos da Europa para
região. Atualmente, para se chegar à
região o caminho mais próximo é por Petrolina, Pernambuco, onde está o
aeroporto, distante 400 km do parque. Seguindo por terra, o turista pode ter o
incômodo de ficar encalhado devido às chuvas ou sofrer acidentes por serem as estradas
muito perigosas. Sobre o público que frequentemente procura esses lugares, são geralmente
indivíduos mais velhos, de classe média alta e com elevado nível cultural. Disse
também Niède que os principais parques existentes no planeta recebem por ano cerca
de cinco milhões de pessoas. Enquanto o parque da serra capivara, anualmente,
circula por lá pouco mais de vinte e cinco mil visitantes anualmente.
Voltando
a política do Banco Interamericano de disponibilizar recursos para a área
cultural, segundo Niède, foram liberados 2.5 milhões de dólares para serem
aplicados na infraestrutura do parque. Com esses recursos foram construídas 28
guaritas, sistemas de rádio comunicador e geradores para produção de energia
solar. Desse total das guaritas construídas, apenas nove possuem funcionários,
ou seja, estão em funcionamento. No interior do parque existem 400 km de
estradas que fazem ligações com as trilhas espalhadas por todos os cantos.
Porém, todas as estradas e trilhas estão abandonadas, sendo que a manutenção deveria
estar sendo realizada pelo próprio governo federal, que não faz. Em relação ao
futuro parque, Niède se diz preocupada porque as dificuldades são inúmeras. Para
ela o principal problema hoje são as brigas contínuas e o stress de ter que ir
a Brasília e mendigar recursos junto aos ministérios e demais órgãos federais.
Quando perguntada sobre por que no Brasil poucas são as publicidades divulgando
e incentivando o turismo no parque da Serra da Capivara, a mesma respondeu que
não há como estimular o turismo para uma região que não oferece o mínimo de infraestrutura
satisfatória, isso poderia ter um efeito negativo para a região.
Durante
todo período que vem coordenando os trabalhos de pesquisa e administração do
parque, Niède relatou que foi em 2002 que o parque recebeu a única visita de um
chefe de estado, na época o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Sua
breve visita se deu em decorrência dos cerimoniais comemorativos aos quinhentos
anos de descobrimento do Brasil. De lá para cá apenas alguns ministros, porém,
sempre foram visitas rápidas. Paradoxalmente, o parque recebe mais delegações
estrangeiras que brasileiras. Em agosto desse ano, o parque recebeu delegação
da UNESCO brasileira como também a visita do embaixador francês, que rotineiramente
se desloca para lá para acompanhar os trabalhos da missão científica francesa
na região.
Em
relação às últimas escavações realizadas que resultaram mudanças conceituais
profundas no que tange as metodologias adotadas nas investigações, Niède
ressaltou que definitivamente a teoria de CLOVIS[1] está superada, que as
amostras retiradas em escavações e enviadas para os laboratórios franceses dão
testemunhos de que os vestígios da Pedra Furada são sim os mais antigos. A
metodologia que vem sendo aplicada nas investigações parte do pressuposto de
que as escavações devam ocorrer até a base rochosa, profundidade média de 8,5
metros. Até esse limite é possível adotar a técnica do carbono 14 com datação
máxima de 58 mil anos. Abaixo desse limite é necessário adotar a técnica do
termoluminescência que garante uma datação aproximada de cem mil anos.
Os
conflitos de datações entre pesquisadores americanos e franceses se dão,
resultantes das metodologias adotadas. Enquanto os franceses procuram executar
escavações mais profundas, os arqueólogos americanos mantém sua investigação
nas Camadas Pleistocenas, de até doze mil anos, onde acreditam não encontrar
mais nada abaixo dessa camada. Sobre a possibilidade de encontrar algum fóssil
humano que poderia definitivamente esclarecer a origem do homem na região, Niède
ressaltou que tal possibilidade é remota em decorrência do clima quente e úmido
da região, antes ocupada pela floresta amazônica. Diante de tal condição
adversa não haveria qualquer possibilidade de manter intactos fósseis com idade
superior a 12 mil anos. O que traz esperança são as cavernas calcárias
existentes que poderá existir sobre seus escombros possíveis fragmentos de fósseis
humanos. No entanto, inexistindo vestígios fósseis, os artefatos líticos
encontrados não deixam dúvidas da presença humana muito antes do que se
acreditava.
As
próprias escavações realizadas no sul do Chile, na região de MONTE VERDE, os
achados fósseis datam de 15 a 16 mil anos atrás, muito mais antigos que os encontrados
nos Estados Unidos. Além do Chile, os
fósseis e artefatos descobertos no Uruguai e Golfo do México, são suficientes
para questionar as antigas teorias sobre a presença e as datações dos primeiros
humanos no continente. Se há ainda enormes discussões sobre as datações e localizações
dos primeiros vestígios humanos na América, não estão excluídas desse processo
os caminhos utilizados pelos grupos étnicos que aqui chegaram. Para Niède,
baseada em observações físicas de grupos indígenas que habitam o Piauí,
admite-se que primeiros habitantes devam ter sofrido cruzamento entre africanos
e asiáticos. É uma questão de intensificar as pesquisas para que tais hipóteses
sejam confirmadas.
Sobre
a presença africana na formação do homem da serra da capivara, no Piauí, há fortes
indícios que deve ter ocorrido. Acredita-se que algum ou alguns africanos devam
ter chegado ao Brasil seguindo o oceano atlântico, possivelmente munidos de uma
embarcação que partiu da costa africana, talvez atingida por uma tempestade cuja
corrente marítima a empurrou para o litoral do Ceará e Piauí. Há 100 ou 120 mil anos aproximadamente o norte
da África sofreu uma longa estiagem, que pressionou os habitantes do interior a
se deslocarem para o litoral, tendo o mar como uma das principais fontes de
subsistência. Talvez a ocupação na Serra da Capivara tenha se dado seguindo
esse contexto climático. Novas pesquisas também confirmam que a presença do
homo sapiens se deu a cerca de 180 mil anos atrás, muito antes do que vinha se
presumindo. Sobre as datações arqueológicas que ainda norteiam os debates no
Brasil, prevalecem as de origem americana, que trazem dados muitas vezes
contestados por outras escolas arqueológicas como a europeia.
No
Brasil impera a falta de compromisso com as promessas assumidas no quesito
arqueologia. Uma delas ocorreu quando em 2013 do Deputado Federal Paes Landim
conseguiu agendar reunião com a Ministra da Cultura Marta Suplici para que
fosse discutido o tema Parque da Serra da Capivara. Na ocasião, a ministra
prometeu que atenderia a solicitação repassando recursos para sua manutenção.
No entanto, segundo Niède, até o momento nenhum dinheiro foi repassado, que
confirma o total desrespeito à cultura e a pesquisa arqueológica no Brasil. No
que tange às medidas de conter o estado de degradação das pinturas rupestres,
tanto pela água como pelos cupins do parque, um dos entrevistadores sugeriu que
as mesmas fossem cobertas para evitar desgastes. Niède ressaltou que tal ação é
inviável por ser a rocha um elemento vivo. Quando perguntada sobre a existência
de outros sítios arqueológicos no Brasil que poderiam corroborar para
fortalecer a teoria da presença humana no território muito antes do que se imagina,
a mesma afirmou que no Brasil o principal problema é a falta de pesquisas, que
apenas na Serra da Capivara é que ocorrem pesquisas o ano inteiro.
Em
1975 realizou estudos com uma tribo indígena situada no sul do estado e
constatou que seus traços físicos como o formato asiático dos olhos são
diferentes dos demais grupos amazônicos. Tudo indica que esses grupos
investigados sema remanescentes dos antigos habitantes da Serra da Capitava,
que chegaram à região seguindo os rios Piauí e Parnaíba, que cruzaram o
atlântico vindo da África. As novas descobertas arqueológicas ocorridas no
México dão conta de ter havido o contato de grupos asiáticos e africanos na
América, que na Serra da Capivara os fósseis pesquisados demonstram haver
referências aos africanos. Porém, devido às características do clima local os
fósseis possuem pouca composição orgânica para análises de DNA que dariam informações
mais consistentes acerca das datações. No entanto, na Suécia existe um
laboratório que consegue fazer análise desses ossos mesmo apresentando o mínimo
de matéria orgânica, e isso pode trazer resultados mais otimistas em relação à
ocupação da região.
Ressaltou
a importância da Arqueologia e de pinturas rupestres para países como a França,
onde uma pequena que possui uma caverna com cinco figuras rupestres, recebe
anualmente cinco milhões de visitantes e que é necessário se inscrever com
antecedência para poder visitá-la. A teoria de que o homem tenha se originado da
África está completamente superada, visto que nos últimos anos as pesquisas confirmam
que a China poderá ter sido o berço da humanidade e não a África.
Além
do museu do homem construído na região, o BNDS liberou investimentos para a
construção do primeiro Museu da Natureza, que será capaz de reconstituir o
ambiente da região há dez, vinte mil anos atrás quando lá se fixaram os
primeiros povoamentos. Quando aos questionamentos acerca dos fósseis de animais
encontrados, foi citada a figura do Tatu Bola desenhada na parede da rocha. Um
animal que vem habitando a região e o Brasil há milhares de anos, porém hoje
ameaçado de extinção. A FIFA quando da realização da copa adotou esse animal
como mascote, oferecendo a Associação Caatinga que desenvolve ações pela preservação
do animal, 300 mil reais de ajuda. A associação rejeitou a verba em forma de
protesto.
Em
referência ao modo como os primeiros povoadores da região organizavam suas
habitações, Niède destacou que os grupos jamais se aglomeravam ou ficavam no
mesmo local por muito tempo, talvez cinco ou seis anos. Após esse período
ocorria o acúmulo de lixo resultando em doenças. As residências eram
disponibilizadas em circos com cerca de cem metros de diâmetro, cujo centro era
utilizado como espaço para reuniões, celebrações e rituais. O curioso é que num
prazo de trinta a cinquenta anos o grupo retornava para o mesmo local, dando
continuidade ao ciclo.
No
município de São Raimundo Nonato onde está a serra da capivara foi desenvolvido
projeto de educação patrimonial mediante intercâmbio entre o governo italiano e
o governo do estado do Piauí. A Itália se comprometeu em construir as escolas e
estrutura-las disponibilizando recursos por cerca de cinco anos. A partir desse
período o governo do estado assumiria o compromisso de mantê-las. Segundo Niède,
nessas escolas as crianças ficavam envolvidas em atividades durante o período
integral. Além do currículo básico as crianças desenvolviam inúmeras atividades
culturais, teatro, pintura, música, etc. cujos professores recebiam
treinamentos de profissionais da USP e da Universidade estadual Paulista. A
fundação Osvaldo Cruz do Rio instalou um posto de saúde no local para atender
as crianças e a comunidade.
No
momento do encerramento do contrato de cinco anos, quando o governo do estado
do Piauí deveria assumir o projeto, a secretaria da educação argumentou que não
assumiria compromissos assumidos por gestões passadas. Com a saída do governo
italiano do projeto e com a recusa da secretaria da educação do Piauí, Niède se
deslocou a Brasília e obteve recursos para manter o projeto por mais cinco
anos. O parque é pouco visitado pelos moradores da região, que tratam com
desprezo as pinturas. Além da população, as prefeituras pouco valorizam o
local, cujas iniciativas de visitação são geralmente coordenadas pelas próprias
escolas e professores, como de um colégio de São Paulo que todos os anos um
grupo de estudantes vistam a região para estudar arqueologia brasileira.
Prof. Jairo Cezar
[1]
A Cultura Clóvis é uma cultura pré-histórica da América que surgiu há cerca de 13.000-13.500
anos atrás, no final da última Idade. Chama-se assim por causa
dos artefatos encontrados perto da cidade de Clovis
(Novo México). O povo de Clóvis era considerado o mais antigo habitante do Novo Mundo.
Contudo, essa visão tem sido contestada nos últimos trinta anos por várias
descobertas que aparentam ser mais antigas.
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