Resquícios
de uma sociedade: Sete Povos das Missões e o genocídio guarani
Visitar
a região das missões no noroeste do Rio Grande do Sul preconiza aos mais
sensíveis momentos de profunda admiração, reflexão e introspeção acerca da
maravilha arquitetônica das construções e artes em estilo barrocas e dos
milhares de guaranis mortos nas guerras de resistência, que se resumem hoje a
pouco mais de 150 indivíduos que lutam desesperadamente para subsistir e manter
viva sua cultura em uma pequena faixa de terra distante 40 km da antiga redução
jesuítica de São Miguel, capital dos sete povos das missões.
Para
compreender a complexidade dessa região é importante esclarecer que com a chegada dos colonizadores
portugueses, espanhóis e padres jesuítas no final do século XV e XVI, as terras
que hoje constituem os territórios do Uruguai, sul do Brasil, Argentina e
Paraguai já eram habitadas por povos tradicionais como os guaranis há mais de
mil anos. Eram considerados culturalmente avançados, pois influenciaram em vários
aspectos outras culturas como os nômades do sul.
Com
a chegada dos jesuítas, cuja missão era promover a evangelização dos povos indígenas,
protegendo-os das incursões reformistas protestantes em expansão na Europa,
foram instituídas as reduções com o emprego de técnicas arquitetônicas
tradicionais guarani como a madeira e a palha. No entanto o processo de
catequização não se processou de modo tão simples como se esperava. Tanto os
bandeirantes como a própria resistência guarani forçaram os jesuítas a se retirarem
para a margem direita do Rio Uruguai, ficando lá até o final do século XVII
quando atravessaram o rio e fundaram os sete povos das missões. Além da
fundação dos sete povos em território brasileiro, outros quinze foram
homologados na Argentina e sete em território paraguaio, totalizando trinta. Nas
reduções, os jesuítas aproveitaram-se dos costumes guaraníticos para consolidar
um modelo de sociedade baseado nos preceitos da solidariedade, comunitarismo e
propriedade coletiva.
A
organização espacial dessas reduções obedecia a padrões preestabelecidos: no
centro, um pátio enorme destinado às festas, apresentações teatrais, jogos, etc.;
num dos lados, o cemitério; no outro, as oficinas e a casa dos padres também
conhecida como colégio; a casa dos índios e a igreja, situada num ponto
estratégico das reduções.
Cada
vez mais tais práticas produtivas tornavam tanto guaranis como jesuítas mais
autônomos e independentes perante as coroas espanhola, portuguesa e da cúpula
católica, transformando-se em ameaça às políticas expansionistas e
mercantilistas das respectivas cortes. Nesse aspecto, resguardando os
interesses de cada nação, Portugal e Espanha se uniram e patrocinam uma das
maiores guerras sangrentas da história, que resultou na quase dizimação da nação
guarani. O próprio vaticano seguiu essa mesma linha tornando ilegal a ordem dos
jesuítas exigindo que os religiosos retornassem imediatamente para Europa. Com
o abandono das reduções, no começo do século XIX as mesmas passaram a ser
ocupadas e incorporadas ao domínio Portugal, sendo algumas delas batizadas com
os nomes dos seus fundadores.
Em
se tratando de requinte arquitetônico e cultural, foram os jesuítas que no
começo do século XVIII trouxeram da Europa todo um conhecimento de traços e linhas
clássicas e barrocas que foram empregadas na construção das igrejas e demais
obras como vitrais imagens sacras que adornavam os altares e outros cômodos
das mesmas. Todo esse saber foi
assimilado pelos guaranis que graças a sua extraordinária capacidade e
sensibilidade artística permitiu que confeccionassem fabulosas obras sacras,
instrumentos e composições musicais que tornaria o canto guarani um dos mais
encantadores e emocionantes já conhecidos.
A antiga redução de Santo Ângelo Custódio,
considerada a mais nova entre as sete reduções, na qual foi fundada em 1707, a
imponente catedral em estilo barroco que se descortina entre os trinta arcos
construídos a sua frente, dá uma ideia da riqueza e supremacia da congregação
jesuítica que apoiada pelos guaranis transformou a região em uma das mais
prósperas do sul da América do Sul. A redução de Santo Ângelo se destacou por
ser um dos maiores polos produtores de erava mate e algodão entre as demais
reduções, cujo auge econômico ocorreu em 1753 quando a população atingiu 5.417
habitantes. Tanto a catedral como o casario que compõem o conjunto
arquitetônico, ambos foram construídos sobre as ruinas da antiga redução, que
podem ser visualizadas visitando alguns remanescentes arqueológicos espalhados
pela praça. Grande parte do acervo que conta a história do município e região
das missões está disponível para visitação no museu municipal situado ao lado
da praça.
Ao
chegar ao Sítio Arqueológico de São Miguel o que chama atenção na entrada do
município é o extraordinário portal cujos ricos detalhas aguçam a curiosidade
dos visitantes. Mas, o que realmente desperta a atenção é a inscrição “Co Yvy Oguereco Yara” no topo
do pórtico, que quer dizer (Esta Terra Tem Dono) proferida por Sepé Tiarajú,
que foi um dos principais líderes dos guaranis. Andar pelo interior do Sítio
São Miguel proporciona instantes de deslumbramento e reflexão, pensar que fé e
poder foram imprescindíveis para deslocar pedras de longas distâncias que
resultaram em obras arquitetônicas fabulosas como as ruinas da catedral. E não
é só isso, toda essa estonteante riqueza de detalhes teve os guaranis como principais
protagonistas, preparando a massa, recortando e assentando as pedras, etc. Sem
contar a longa jornada estafante para transformar troncos de madeira em imagens
sacras, ricamente esculpida que beira a perfeição. Observar atentamente cada
metro quadrado do sítio, cada pedra que compõem as construções, cada imagem
exposta no museu, faz pensar a força da fé que impulsionava aquele
ambiente.
Até
que ponto pode-se orgulhar da congregação jesuíta como protagonista de um
projeto de sociedade autônoma na região? Teriam os guaranis como os demais
povos tradicionais alcançados tais níveis de sucesso sem sua presença? Pretendiam
os jesuítas, aproveitando a experiência organizacional dos guaranis,
introduzirem na região um tipo de sociedade inspirada nos princípios do
coletivismo, ou seja, uma espécie de socialismo cristão? Pode-se admitir que os
religiosos também tiveram responsabilidade pelo quase genocídio dos guaranis ou
apenas protelaram um processo irreversível, que mais cedo ou mais tarde
ocorreria?
São
dúvidas que continuarão permeando o imaginário de muitos que transitam pelo
sítio. Outro aspecto que também merece reflexão é quanto a invisibilidade dos
guaranis. Não há presença deles tanto no sítio como nas imediações da cidade.
De acordo com informações expostas num cartaz afixado na entrada do sitio, o
mesmo destaca que foi a partir de 1990 que os guaranis da etnia Mbyá receberam
autorização para adentrar no sítio e comercializar seus produtos.
Contatando
com funcionários do sitio a informação que deram era que os guaranis habitavam
uma reserva distante trinta quilômetros aproximadamente do centro da cidade,
que a cada início de semana um ônibus do município os transportavam da aldeia
para o sítio onde vendiam seus produtos. Outra informação repassada era de que
na hipótese de querer visitar a comunidade deveria ser desembolsada uma quantia
de 180 reais a ser paga ao líder da
comunidade. Tanto a distância como o elevado valor estipulado cada vez mais inibia
as pretensões de conhecer em loco o jeito de viver dos remanesces guaranis.
No
último dia no município de São Miguel já no trevo de saída da cidade um forte
impulso fez com que retornássemos e colocasse em prática o desejo de conhecer a
aldeia dos Mbyá-guarani. Depois de algum tempo tentando recarregar o celular
para proferir ligação ao líder da comunidade, tivemos a sorte de nos deparar
com um grupo de mulheres, crianças e jovens num dos bares da cidade lanchando
para irem em direção ao sítio. Perguntei para uma senhora de bebê no colo se
conheciam o chefe e a mesma me levou para dentro do bar apresentando-me um
garoto aparentando 15 a 16 anos que me guiou até a presença do cacique. Depois
de quase trinta minutos caminhando chegamos num local onde estava o restante do
grupo. Um jovem senhor de trinta anos aproximadamente veio ao meu encontro que
se apresentou como líder, onde imediatamente concordou em nos levar até sua
aldeia.
Durante
o percurso construímos um breve diálogo no qual ficamos sabendo que semanalmente
um ônibus se desloca até a comunidade para transportá-los ao centro da cidade
de São Miguel, onde comercializam seus artesanatos no interior do Sítio
Arqueológico São Miguel. Diariamente, centenas de turistas transitam pelo sítio
e se impressionarem com a grandiosidade do que restaram de uma catedral, em
ruínas, obras de artes construídas pelas mãos guaranis entre os séculos XVII e
XVIII. A sobrevivência dessas famílias depende quase que exclusivamente dos
parcos recursos que conseguem vendendo seus produtos, colares, artefatos de
caça, e outras bugigangas, além dos alimentos que cultivam nas pequenas roças
de milho, mandioca, etc., e criações de pequenos animais como aves. A caça,
segundo o cacique, muito esporadicamente, pois não mais animais disponíveis nas
florestas.
O
que surpreendente no trajeto são as vastas áreas de terras empregadas para o
cultivo, especialmente no entorno da aldeia onde, acredita-se, vem impactando
todo ecossistema local. Depois de quase
uma hora transitando em estrada de chão batido, se via de longe, distante uma
da outra, algumas pequenas casas de madeira, cobertas com telhas comuns e
palhas, várias delas, afixadas à parede, antenas de tv por assinatura. Um cenário diferente daquele vista no museu
municipal de Santo Ângelo, onde se podia ver exposta num dos cômodos, réplica
de uma moradia coletiva guarani, coberta de palha e capaz de abrigar várias
pessoas no mesmo cômodo.
Ao
chegar ao centro da comunidade, a antena de tv, símbolo da modernidade, se
contrastava com uma realidade que em nada se assemelhava com que certamente visualizavam na telinha. Uma sociedade
um tanto quanto abandonada, esquecida pelas autoridades, lixo espalhado por
todos os cantos, sujeira na frente das residências, uma escola fechada, uma
unidade de saúde recém-restaurada, um centro comunitário e um espaço cultural não
finalizado com estrutura arquitetônica inspirada nas primeiras moradias. No
local algumas crianças, aparentemente com pouca higiene, que brincavam com seus
estilingues, contrastando com um adolescente, sentado e munido de um celular e fone
de ouvido, indiferente da nossa presença, se deliciava como os demais jovens da
sua idade, provavelmente do lixo musical midiático que aliena as mentes e
corações de toda uma geração.
Por
que as residências dos guaranis estavam dispostas tão distantes uma das outras,
se nos livros didáticos e nas imagens divulgadas pelas mídias de massa ainda
tentam mostrar uma organização espacial
em forma de círculo concêntrico? A forte influência capitalista estruturada num
modelo de organização individualizado pode estar influenciando nas mudanças dos
costumes desses povos, precarizando as relações coletivas, transformando-os em
sujeitos fragmentados, que os impedem de compreender sua essência, sua
singularidade, expondo-os a lei da massificação cultural, da exploração e do
consumo desenfreado de supérfluos.
Outro
aspecto intrigante observado é o fato dos antepassados dos poucos guaranis que
restaram terem protagonizado tamanho empreendimento cultural junto com os
jesuítas construindo inúmeras igrejas, obras sacras e instrumentos musicais que
hoje revertem em riquezas para toda uma região, porém, para seus descendentes,
apenas miséria. Onde estão as habilidades de um povo marcado pela sensibilidade
musical, escultural e arquitetônica, referendado pelo seu principal líder, o
cacique Sapé Tiajarú, que foi brutalmente assassinado
pelos soldados a mando das coroas e da vossa santidade, o papa? Será que todo
esse esplendor se dissipou com a morte
do seu líder ou continua impregnado nos genes de cada indivíduo necessitando
apenas de um impulso para despertar?
Permeia
na comunidade, a olhos vistos, uma brutal fraqueza, desesperança e impotência
mórbida, cujo mundo vislumbrado não ultrapassa as fronteiras do território esquecido,
de mulheres, homens e crianças apáticos, cuja esperança de dias melhores
depende da boa vontade de entidades governamentais como a FUNAI que pouco fazem
para mudar o atual cenário. Mantê-los distantes do mundo “civilizado”,
conformados com a condição de vida miserável no qual estão submetidos torna-se
propositalmente vantajoso para aqueles que almejam poder e lucros.
A
realidade decadente dos remanescentes guaranis dos sete povos das missões não é
diferente dos demais compatriotas espalhados por outras regiões e países
vizinhos, Paraguai, Argentina, Uruguai e litoral sul e sudeste do Brasil que
formavam o grande agrupamento guarani do sul da América do Sul. Embora,
acredita-se, que o pequeno agrupamento guarani de São Miguel tenha suas terras demarcadas,
tal realidade não se constata em outras regiões brasileiras onde lideranças
indígenas como as pertencentes as etnias Kaiowás do Mato Grosso do Sul, são assassinados
por defenderem suas terras contra a ganância de fazendeiros e grileiros, com
aval dos próprios governos estadual e federal.
Sem contar as mortes decorrentes de
doenças por desnutrição, o alcoolismo e
os inúmeros casos de suicídios. É uma forma moderna de holocausto que
atinge tanto indígenas como parcela da população negra e pobre que habitam os
guetos das pequenas, médias e grandes cidades, avassaladas pelo tráfico e
consumo de drogas.
Em
Santa Catarina, os remanescentes guaranis especialmente os que residem nas
imediações do Morro dos Cavalos vivem atualmente momentos de extrema apreensão
em decorrência do pedido de anulação da portaria 771/08, do Ministério da
Justiça, protocolada pela Procuradoria Geral do Estado, que defende o não
reconhecimento de uma área de 1.988 ha como pertencentes aos indígenas. O
impasse envolve governo federal, estadual e universidade federal. A área
preterida pelos 200 guaranis que ali habitam, também é ocupada por cerca de 70
famílias que não admitem sair sem serem indenizadas. No entanto, o governo
federal justifica que por ser de fato e de direito, área indígena, ressarcirá
apenas os empreendimentos, sendo compromisso do governo do estado o pagamento
da propriedade.
A
alegação do próprio governo estadual é que várias informações contidas no
relatório elaborado por pesquisadores foram forjadas para beneficiar os
indígenas que ali residem. Dentre eles que as terras hoje ocupadas ocorreu
depois da promulgação da Constituição de 1988, não por remanescentes guaranis,
os carijós, que habitavam a região quando da chegada dos colonizadores. Segundo
estudos, os últimos carijós desapareceram no século XVII, sendo que os atuais guaranis
chegaram ao local na década de 1960 provenientes do Paraguai e Argentina.
Diante
de tais episódios, o que está por trás desse imbróglio jurídico são as
corporações e grupos empresariais do ramo imobiliário interessados pela área
pretendida pelos guaranis. Nesse mesmo local onde residem os guaranis, continua
o impasse sobre a construção ou não do túnel Br.101 ou se fará um desvio
alternativo. Os próprios indígenas que ali residem concordam com o túnel admitindo
que com isso será possível a construção de um corredor ecológico, hoje
bloqueado pela rodovia.
Se
tal questão não for tratada com seriedade e imparcialidade a região em litígio
poderá se tornar palco de acirrada violência envolvendo índios e não índios.
Segundo denúncias o processo já vem ocorrendo com a destruição dos marcos e placas
identificatórias, como do corte das mangueiras que transportam água para a
comunidade.
Sendo
os guaranis que habitam a região do morro dos cavalos não remanescentes dos
antigos carijós, isso não justifica a decisão da Procuradoria Geral do Estado
de anular a portaria 771/08. Se levarmos em conta a história dos guaranis,
independentes das etnias na qual pertencem, os mesmos habitavam essas terras
muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Portanto, a situação dos
guaranis da Palhoça/SC pouco se distingue dos
que habitam a região dos Sete Povos das Missões. Tanto lá como aqui ainda
são tratados com preconceito pela população branca e pelas autoridades, cujo
desconhecimento da sua história, da sua cultura os rotulam como seres
indolentes, preguiçosos, que querem muitas terras, mas não produzem, que em
nada contribuem para o “progresso” da nação.
Diante
desse modelo econômico perverso que reduz o ser humano a um mero consumidor
descartável, a preservação dos costumes da sociedade guarani, suas práticas
comunitárias, seus saberes provenientes dos elementos da natureza, sua
agricultura milenar, suas práticas religiosas, tudo isso compõem um
extraordinário mosaico de informações e saberes que certamente contribuirá para
a construção de uma nova sociedade, mais fraterna e com justiça social.
Prof.
Jairo Cezar
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