O dito e o não dito sobre o polêmico e controverso projeto de fixação da
barra do rio Araranguá
Durante milênios a
humanidade alimentou a crença exacerbada de que o planeta terra e os recursos
naturais existentes poderiam ser explorados e apropriados sem risco de
esgotamento ou impacto ao próprio planeta. Foi, portanto, a partir das últimas
décadas do século XX que apareceram os primeiros sinais alertando de que mantendo
tais ritmos de exploração pautado em uma filosofia de infinitude, rapidamente a
humanidade sentiriria os efeitos desse processo que veriam sob a forma de
catástrofes climáticas. Diante dessa ameaça eminente, a própria ONU (Organização
das Nações Unidas) se viu forçada em promover encontros com a participação dos Estados
membros para discutir a temática ambiental e propor ações conjuntas
emergenciais visando evitar uma possível hecatombe planetária.
A década de 1990, principalmente a partir do
encontro sobre o clima ocorrido no Rio de Janeiro em 1992, iniciou os debates e
o questionamento sobre o modelo de desenvolvimento no qual os países estão assentados,
e a necessidade urgente de repensar tal modelo propondo novas práticas
econômicas não agressivas à biodiversidade. Contudo o encontro resultou numa
agenda de intenções sobre políticas de desenvolvimento sustentável referendada por
quase a totalidade dos países presentes, exceto os mais ricos que contribuem
significativamente com a emissão de gases poluentes como dióxido de carbono.
Entre os compromissos acordados na Conferência do Rio teve destaque a revisão
das políticas produtivas ditas sujas, devendo ser substituídas por tecnologias
mais limpas ditas sustentáveis. O não comprometimento com a agenda construída
na Conferência sobre o clima por países como Estados Unidos, Japão, Rússia,
entre outros, deixou uma sensação de fracasso no ar.
Um dos legados positivos
conquistados na Conferência foi a aprovação de um protocolo de metas para o segundo
milênio conhecido por agenda 21. Tal documento viria se tornar para os gestores
públicos uma espécie de bíblia, na qual nortearia os administradores públicos
municipais na elaboração dos novos planos diretores. Uma nova cultura de organização espacial passou
a ser pensada pelos novos gestores atendendo agora os princípios da
sustentabilidade, cuja organização do espaço deveria ser pensada com o um olhar
direcionado às futuras gerações. Admite-se que para uma sociedade, um município
atingir tais metas é necessário um longo caminho, começando pela desconstrução
de valores ou comportamentos que primam à individualidade, à competitividade,
substituindo-os por outros mais solidários que estimulam diálogo, a
participação coletiva nas discussões de temas de interesse da coletividade.
É com base nesse preceito
da participação coletiva que se abre a discussão para expor algumas
considerações acerca dos equívocos que vem sendo cometidos quanto ao polêmico e
controverso projeto de fixação da barra do rio Araranguá. Não é de hoje que
esse assunto vem provocando tanta polêmica quando a sua verdadeira intencionalidade.
Desde o século XIX a idéia de instalação de um porto na foz do rio para facilitar
o escoamento agrícola sempre pairou no imaginário social da população sul
catarinense. Porém, foi durante as primeiras décadas do século XX, mesmo sem
porto na foz do rio, que o transporte hidroviário obteve destaque quando
embarcações de médio porte adentravam o rio Araranguá transportando pessoas e
produtos.
Portanto, não é de
hoje a obsessão pela fixação da barra, chegando ao ponto de vir da França uma
comissão de técnicos para fazer um estudo mais consistente do local. Os
franceses foram embora e nada de concreto aconteceu. Porém, o desejo da fixação
e de instalação de um porto no local, volta e meia, passa a permear o
imaginário das autoridades locais, tornando-se mais intenso quando da
ocorrência de cheias. Diante de tal fenômeno climático cada vez mais freqüente vem
se construindo no imaginário da população local o sentimento de que tais
episódios serão amenizados ou solucionados com a concretização do projeto de
fixação da barra.
Os cidadãos e
cidadãs mais atentos e desprendidos dessa cultura imediatista e fatalista que
se procura incutir, concordam que não é com a concretização de um projeto tão
complexo como o que vem se cogitando que será possível solucionar definitivamente
as cheias na região, um fenômeno climático que se sucede há séculos. O que a
mídia ou outros meios noticiosos geralmente procuram omitir quando tratam do
tema cheias na região, é quanto à omissão histórica do poder público na
fiscalização tanto das ocupações irregulares nas duas margens do rio como
também da devastação quase que total da floresta ciliar. A obediência de tais
legislações possivelmente não geraria tanta confusão e tensões sociais tornado
as enchentes não um acontecimento diabólico como vem se pregando, mas um
fenômeno natural normal sem prejuízos à sociedade.
Durante décadas o
poder público municipal e demais órgãos ambientais, talvez por desconhecimento
da legislação ou por comprometimento político eleitoral, uma prática
corriqueira na época, foram complacentes quanto à liberação de licenciamento
para construções em áreas de riscos de cheias. Por ser o município de Araranguá
cortado por um rio cuja largura em certos trechos ultrapassa os 100 metros, o
código florestal de 1965 estabelecia que áreas sujeitas às inundações em ambas
as margens deveriam estar cobertas por uma vegetação ciliar, que além de
auxiliar na contenção da erosão se transformaria num extenso corredor ecológico
permitindo o deslocamento da fauna. O não respeito às legislações ambientais, a
permissão para a construção de residências e a prática de uma agricultura mecanizada
que se estende até a borda do rio vem resultando em catástrofes cada vez mais
freqüentes cujos efeitos são devastadores principalmente para a economia
regional.
A não observância de
itens como os citados acima por parte do poder público e das demais autoridades,
propiciam gastos financeiros desnecessárias especialmente quando se propõem a
elaboração de projetos caros para conter ou amenizar catástrofes climáticas
como o da Fixação da Barra do Rio Araranguá. Sua eficácia técnica ainda hoje é
questionada por expressiva parcela da sociedade civil e do próprio Ministério
Público Federal, que garantem que o projeto não cumpriu todas as etapas recomendadas,
ou seja, a obrigação do empreendedor de promover estudos complementares do
local pretendido de modo que os impactos ao ecossistema sejam o menor possível.
O que se notou
quando da apresentação conclusiva do projeto à sociedade em audiência pública
realizada em 2011, foi a constatação de que o empreendedor descumpriu algumas
metas obrigatório tais como o estudo da viabilidade técnica dos dois pontos
mais ao norte. A recusa do empreendedor de seguir os trâmites estabelecidos no
documento base e tentar convencer a opinião pública de que o fluxo da vazão da
água não apresenta alterações significativas em qualquer um dos pontos
indicados, demonstra que o empreendimento está envolto de suspeitas quanto a
sua real finalidade. Suspeita-se que terrenos situados nas proximidades do
local que se pretende efetivar a fixação da barra foram adquiridos durante o
processo de tramitação do projeto, e que seus proprietários vêm exercendo forte
influência junto aos poderes constituídos tentando impedir que a tal
empreendimento ocorra mais ao norte.
A insistência para
que a obra ocorra mais ao sul tem uma justificativa plausível e fortemente
avalizada pela população de Ilhas, principalmente os moradores mais antigos,
cuja experiência e conhecimento do local deveriam ser considerados pelos
técnicos envolvidos no projeto. Influenciada pelo movimento das correntes
marinhas, ventos e outros fatores climáticos e geográficos, a barra do rio
Araranguá, durante sua existência sofre deslocando intermitente tanto em
direção norte como para o sul. Com base no vasto conhecimento acumulado tanto da
geografia como da geologia da região, sustentam os moradores que a não
observância da ordem natural da vazão do próprio rio pode resultar em prejuízos
irreparáveis ao ecossistema da região.
A intolerância do
empreendedor de não rever sua posição contribuiu para que se desencadeasse
intenso conflito social entre as comunidades tradicionais de Ilhas e Morro
Agudo, que reivindicam a obra próxima as suas comunidades. A tendência é o
agravamento das tensões se não houver sensibilidade e capacidade reflexiva do
poder público na busca de um acordo consensual capaz de reintegrar a harmonia
na região. Desde as primeiras reuniões realizadas para a discussão do projeto cuja
conclusão se deu com a realização de audiência pública no Grêmio Fronteira, ocorreram
manifestações populares alertando sobre os impactos irreversíveis que sofrerá o
bairro de Ilhas se for mantida a proposta originária. A justificativa tem
procedência, pois o rio que atravessa a comunidade perderá força e se
transformará em um lago inerte, cujos efeitos do vento resultarão no seu assoreamento
ameaçando a sobrevivência da população local que tem na pesca sua principal
fonte de subsistência.
Em sociedades um
pouco mais organizadas a liberação de recursos públicos destinados a projetos
de infraestrutura ocorre freqüentemente depois de cessarem as discussões e os
estudos de viabilidade técnica. Cumprindo as etapas propostas e tendo em mãos
as licenças ambientais, dá-se início a liberação dos recursos para as obras
licitadas. Em termos de Brasil, mais especificamente em Araranguá, o processo
referente à barra ocorreu de modo invertido, primeiro se processou a liberação
dos recursos financeiros para o empreendimento ocorrendo depois os estudos de
viabilidade técnica. Não havia, portanto, nenhuma certeza se o projeto seria
aprovado ou não.
Uma comitiva
composta pelo prefeito, vice-prefeito e demais representantes do poder
executivo e legislativo de Araranguá se deslocaram a capital federal, Brasília,
para tentar junto ao órgão ambiental, IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente), liberação da licença para iniciar as obras. No entanto, a resposta
do órgão ambiental não foi distinta daquela proferida em reuniões passadas, ratificando
a obrigatoriedade do empreendedor quanto ao cumprimento dos estudos
complementares e ratificar acordo consensual entre as comunidades envolvidas sobre
o local que será realizada a obra. Presume-se que todos que compunham a
comitiva que foram a Brasília tinham consciência ou deveriam ter de tais
recomendações. Sendo assim, que razões motivaram
tais autoridades em viajarem a Brasília, cujos gastos foram subsidiados pelo
honorário público, para participar de reunião com órgão ambiental federal para
ouvir aquilo que já era sabido por todos.
De acordo com
informações veiculadas por um jornal de circulação diária do município, o
periódico coloca que o poder público fará reunião com a comunidade para
discutir novamente o projeto. Uma questão tão complexa e de forte impacto para
todo extremo sul de Santa Catarina, não deve ser tratada de forma tão
particularizada como se pretende. É preciso que se promova uma nova audiência
pública, discutindo meticulosamente com a sociedade araranguaense cada detalhe
do projeto e seus reflexos no cotidiano da população do vale do Araranguá.
Prof. Jairo Cezar
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