MESMO LAICO, O ESTADO BRASILEIRO SE MANTÉM SOB FORTE INFLUÊNCIA DO
PROSELITISMO RELIGIOSO
Diante do atual conturbado
cenário econômico e social que está contribuindo para intensificar a
intolerância e a violência contra homossexuais, comunidades indígenas, negros e
grupos religiosos de tradição africana, a escolha da religião, como tema de
redação no ultimo Enem, deverá servir para ajudar educadores e demais
profissionais a compreenderem melhor a perspectiva dos (as) jovens brasileiros
(as) quanto a esse assunto tão controverso em um Estado que se julga Laico. O
primeiro ponto passivo de reflexão e que acredito tentará suprimir dúvidas ou
confusões envolvendo Estado e Religião é o que realmente se entende por Laico
ou sociedade Laica. O termo, portanto, surgiu na Grécia antiga, derivada da
palavra Laós, Laikós, que traduzido para o português é designado povo[1].
Também na antiguidade, os hebreus
se apropriaram do termo no qual conceberam a expressão “povo”, advinda dos
gregos, como os eleitos por Deus, ou seja, restrito a uma reduzida parcela da
sociedade. No entanto, esse domínio religioso do termo
Laós, Laikós, Laicus e Laico permaneceu durante a idade média, até a
modernidade no século XVIII, quando os iluministas franceses ou positivistas
passaram a utilizar como “arma” no combate aos dogmas que predominavam sobre
regimes absolutistas.
Anterior a chegada dos
portugueses no Brasil no século XVI, a relação entre e poder civil e o
eclesiástico da metrópole se misturavam entre si de tal modo que ambos se
confundiam quando as suas reais designações no âmbito civil e religioso.
Essa espécie de osmose ou mistura institucional cruzou o oceano quando aqui
desembarcou os jesuítas, que a serviço da coroa e a pretexto de “proteger os
infiéis ou salvar almas” iniciaram o processo de subordinação ideológica dos
povos originários (indígenas) ao domínio português e do clero católico.
A coroa portuguesa, receosa dos
riscos ao Estado português advindos do crescimento do poder de influência dos
jesuítas sobre os povos nativos, deu atribuições ao ministro da corroa
portuguesa o Marques de Pombal para perseguir e expulsar os jesuítas de suas
possessões e promover a nacionalização da igreja católica. Tal nacionalização
garantia ao próprio monarca português o elevado grau de soberania sobre a
igreja, indicando bispos e demais religiosos a cargos eclesiásticos, que com
base na hierarquia católica seria função do seu chefe religioso supremo, o
papa.
Com a outorgação da primeira
constituição do império brasileiro sancionada em 1924 pelo imperador D.Pedro I,
o catolicismo se tornou definitivamente como religião oficial do império.
Os demais cultos, seus ritos ficaram limitados aos espaços domésticos sob pena
de sanção civil. Tais regulamentações garantiam ao imperador autonomia para
indicar clérigos para o exercício dos vários cargos e ritos nas igrejas, sendo
esses agora funcionários do Estado e com direito a subvenções salariais.
Tanto o patrimônio físico quanto as doações
obtidas pela igreja, tudo era administrado pelo próprio Estado. Essa prática
fez com que sacerdotes abandonassem a função no qual estavam designados pelo
fato da incipiente remuneração recebida pelos serviços prestados à igreja. Foi,
portanto, na primeira constituição republicana de 1891 que houve, teoricamente,
a ruptura oficial entre a igreja católica e o Estado. Porém, o texto
constitucional não impediu a permanência dos privilégios favorecendo exclusividade
integrante do credo católico. Por outro lado, a constituição de 1891 não
assegurou proteção aos demais grupos religiosos para o exercício dos seus
ritos, onde continuavam sofrendo perseguições e preconceitos por parte do
estado e da população.
O agravamento da criminalização
dos demais cultos não católicos se deu durante o regime de Getúlio Vargas, mais
especificamente no Estado Novo, quando o governo de Vargas intensificou a
violenta e a perseguição aos freqüentadores dos cultos considerados não
cristãos como o espiritismo e os de tradição africana como o ritual da Umbanda.
A estratégia do estado, como forma de incitar a população contra os praticantes
desses ritos, foi acusá-los de charlatanismo, curandeirismo e outros termos discriminatórios,
atos esses interpretados como maléficos e prejudiciais à dita moral social.
No município de Araranguá tais
perseguições contra não católicos também se configuravam em praticas
corriqueiras durante os anos 1930 em diante. Algumas figuras religiosas
conhecidas e reverenciadas pelos adeptos do catolicismo como dos párocos Thiago
M. Coccolini e Antônio Luiz Dias, ambos ardorosos combatentes dos ritos
religiosos que ameaçassem do predomínio católico em Araranguá. A pesquisa de
doutorado desenvolvida pelo professor Lucio Vânio Moraes, entitulada Mercado
Religioso e Práticas Pedagógicas: A Congregação de Santa Catarina no município
de Araranguá-SC (1951-1982) tornam explícitas as artimanhas adotadas
por membros do clero como forma de incitar o povo contra todos que freqüentarem
locais de culto não católico. Numa das passagens da obra do professor, ele
transcreve o que falou o Padre Antônio, acerca dos praticantes do espiritismo e
umbandismo, registrado no caderno de rascunhos de 12 de maio de 1934 e que está
nos arquivos da paróquia nossa Senhora Mão dos Homens.
Nas palavras do Padre
Antônio Luiz Dias: “Aumenta o número de praticantes Espíritas em Nossa Paróquia. Em
Urussanguinha existe um grupo de homens e mulheres da cor negra que fazem
oferendas diabólicas em seus terrenos de Macumba. Tenho feito visitas naquella
(sic) localidade e até alguns Católicos têm atacado a Seita, mas parece que
estão crescendo. O Católico que é fraco frequenta as sessões ao serem por eles
convidados. Na Capela dessa localidade proibi na Missa para que nenhum fiél da
Paróquia converse e nem frequente as residências desses acatólicos, Hereges.
Eles poderão jogar o veneno Espírita enganando as almas do aprisco do Senhor”.[2]
É necessário
considerar que este modelo de comportamento discriminatório em relação a certas
religiões não cristãs como as de tradição africana é ainda recorrente hoje em
dia. O ambiente escolar é onde mais ocorrem esses processos discriminatórios. Os
principais alvos são crianças praticantes de ritos afros, geralmente
silenciados e que para não se sentirem rebaixadas, ridicularizadas, mentem
afirmando que pertencem ao catolicismo ou ao culto evangélico. Tais
constatações relativas a hegemonização da violência contra crianças e a todo um
grupo social que tenta manter viva suas raízes históricas de origem africana,
foi obtida pela pesquisadora Estela Guedes Caputo, que concluiu em 2012 sua
tese tratando sobre a Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com
crianças de candomblé.[3] É sem dúvida um trabalho extraordinário,
onde a pesquisadora procurou mostrar que as crianças nos terreiros, desde
pequena, são inseridas em ritos de iniciação, com funções hierárquicas que lhes
asseguram diante dos demais sujeitos certo prestígio e respeitabilidade.
No entanto, nas
escolas municipais do rio de janeiro, especialmente depois da aprovação da lei
que regulariza o ensino religioso, muitos dos professores que lecionam tal
disciplina, ambos são adeptos a uma das diversas igrejas cristãs, evangélicas
ou católica. O fato é que carregam consigo toda uma carga de moralismo e
preconceito como é constatado com crianças praticantes do candomblé.
Ainda no regime de Vargas, de
1930 a 1945, período em que também em Araranguá se promovia perseguição contra
praticantes do espiritismo e do candomblé, o próprio governo atribuía como
justificativa para criminalizar os rituais, afirmando que seus integrantes ou
lideres religiosos apregoavam apologia ao comunismo. Para evitar possíveis atos de violência do
Estado e de seguidores católicos contra os adeptos das demais religiões, a
solução para sua existência e proteção foi se ajustar seguindo um caráter
sincrético, ou seja, os movimentos, os símbolos, os ritos, tinham que aparentar
estar reverenciando elementos sagrados do catolicismo.
Os primeiros sinais do possível
enfraquecimento da supremacia da igreja católica se deram a partir da década de
1950 com a modernização urbana industrial e o fortalecimento dos movimentos pet
encostais. As transformações do cenário econômico e social se intensificaram
nas décadas posteriores levando ao surgimento de uma enorme diversidade de
credos religiosos ditos neopetencostais, acreditando-se que com isso a
constituição de 1988 finalmente incluiria no texto dispositivos que garantisse
ao Estado brasileiro uma fisionomia verdadeiramente laica como se tentou
apregoar na primeira constituição republicana de 1891.
Isso realmente não ocorreu,
demonstrando o forte lobbie envolvendo autoridades ou lideranças evangélicas e
integrantes conservadores do culto católico, entre os constituintes durante a
elaboração da carta constitucional. O texto final da carta apresentou o que
muitos já acreditavam ocorrer, artigos que nitidamente se contradizem e que
comprovam que a idéia de laicidade continua ainda muito longe de se tornar
realidade. Enquanto o artigos 19, I, impede que o Estado estabeleça e
subvencione cultos religiosos, o artigo 210, §1°, abre profundas brechas assegurando
que o ensino religioso deverá ser de matrícula facultativa e cujas aulas
ocorrerão em horários normais para estudantes do ensino fundamental.
E como não bastasse tal anomalia
constitucional, a legislação que criou a LDB, lei n. 9394/96, intensificou
ainda mais a confusão dando tratamento diferenciado ao ensino religioso em
comparação as demais disciplinas. Pois vejamos o que expressa o art. 33, § 1°:
Os estabelecimentos de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição
dos conteúdos, bem como normas para escolha e habilitação de professores. Tal
dispositivo permite que municípios como o Rio de Janeiro fosse aprovada
legislação estabelecendo o ensino religioso como parte do currículo das escolas
municipais. Para evitar impasses, as escolas foram divididas ou loteadas entre
as principais religiões obedecendo aos percentuais de adeptos de cada religião
nas comunidades onde as escolas estão situadas.
O fato é que as religiões, nas
últimas décadas, vêm adquirindo cada vez mais notoriedade na vida privada
e pública, chegando ao extremo do absurdo de o congresso nacional ter uma das
maiores bancadas constituída por deputados e senadores representantes de distintos
cultos evangélicos. Isso talvez passasse despercebido em outras culturas
teocráticas, mas em se tratando de Brasil, constitucionalmente laico, traz riscos
às liberdades individuais.
Não há dúvida de que o
crescimento dos credos religiosos de tradição neopentecostal no Brasil tem
relação com o próprio enfraquecimento do estado como agente disseminador de
políticas públicas que atendam as necessidades básicas da população. São nas
comunidades mais desassistidas, mais carentes, que os credos evangélicos
conservadores tem maior penetração, tanto na promoção de serviços
assistencialistas, bem como de práticas ritualísticas de cura e de exorcismo.
É na disputa desses espaços de
influência e do mercado da fé que muitas religiões se utilizam de artifícios
nada éticos para discriminar outros cultos especialmente os praticantes dos
rituais afrobrasileiros, como o candomblé. Acredite, toda essa problemática que
envolve religião, discriminação, violência tem também a escola como ambiente de
reprodução de práticas normatizadoras especialmente das de culto cristão sobre
outras de tradição africana, tratadas com desdém e forte preconceito.
Como forma de tentar minimizar um
problema histórico que foi a sujeição de milhares de índios, bem como negros
africanos ao trabalho escravo e submissão durante séculos, em 2003 foi aprovada
no congresso nacional lei 10639/03 e depois alterada para 11.645/08 no qual
estabelece a inclusão nos currículos das escolas públicas e particulares do
ensino fundamental e médio temas relacionados a cultura africana. Também foi
atribuído ao dia 20 de novembro como dia nacional de consciência negra, em
homenagem ao líder do quilombo dos Palmares, Zumbi.
Quem adentrar as bibliotecas das
escolas públicas estaduais de Santa Catarina vai perceber a enorme quantidade
de livros didáticos disponibilizados pelo governo para trabalhar com os
estudantes aspectos econômicos, sociais e culturais da africanidade no Brasil e
dos países africanos. A frustração é que poucas são as escolas que reestruturam
seus currículos incluindo a cultura africana como tema gerador. A conseqüência
disso é a não utilização desse acervo bibliográfico de elevado custo financeiro
para os cofres públicos.
Se todas as escolas realmente se
dedicassem ao ensino da cultura e tradições afro-brasileiras, possivelmente
teríamos um país mais tolerante e respeitador das diversidades. Talvez não acontecesse
o que ocorreu no Rio de Janeiro quando uma criança negra vestida com trajes,
representando sua crença, foi apedrejada na rua. Agora imaginamos o grau de
discriminação que poderá haver com crianças freqüentadoras de terreiros de
candomblé, cujas escolas que freqüentam o ensino religioso são lecionada por um
professor que prega a moral cristã como normal.
Quem acompanhou os noticiários
dos telejornais e principais sites na internet desse sábado, 19, talvez nem
tenha percebido que nenhum destaque foi dado ao dia 20 de novembro, dia da
consciência negra. Diante da onda conservadora que atingiu os diferentes
seguimentos de decisão política do Brasil, além dos ataques contra direitos dos
trabalhadores, o alvo também é a população negra com a supressão de leis como
que ocorreu no Rio Grande do Sul, quando a justiça derrubou o feriado da
consciência negra. Decisão semelhante está sendo pensado para o município de
São Paulo, a partir da próxima gestão do prefeito João Dória Junior. Portanto,
estamos sob um ciclo longo de retrocessos sociais, cuja solução é a
resistência, o confronto. É na escola deve ser exercitada tal resistência, como
espaço democrático e laico para promover a liberdade e a tolerância às
diferenças.
Prof. Jairo Cezar
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